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OS SUFIXOS PRÉ-DESINENCIAIS EM RELAÇÃO AO VERBO

CAPÍTULO 3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: ESTUDOS ANTIGOS E

4.3 OS SUFIXOS PRÉ-DESINENCIAIS EM RELAÇÃO AO VERBO

Agora que está estabelecida a definição para o aspecto verbal e que objeto de pesquisa da presente tese é concebido como marca de noções aspectuais, é importante tratar com maior aprofundamento dessa categoria. Esta seção apresenta estudos modernos sobre o aspecto verbal e discute como suas observações podem ser aplicadas aos sufixos pré-desinenciais dos verbos latinos.

4.3.1- O aspecto

De acordo com Bybee (1985: 15), uma vez que o radical do verbo representa uma ação ou um estado, o aspecto é altamente relevante para o seu conteúdo semântico. Desse modo, é de se esperar que a expressão lexical do aspecto seja um fenômeno mais comum do que ocorre com outras categorias, como a concordância com o sujeito, e que também apareça mais frequentemente como categoria flexional. A autora também observa, em seu estudo tipológico com uma amostra aleatória de 50 línguas variadas, que, quando uma língua tem expressão morfológica de aspecto no verbo, é mais provável que ela ocorra em uma posição mais próxima ao seu radical.

Essas observações de Bybee vão ao encontro tanto do tradicional aspecto latino, que se manifesta binariamente nos dois radicais de cada verbo (infectum e perfectum), como das noções aspectuais manifestas nos sufixos pré-desinenciais, situadas em posição anterior às desinências flexionais. Bybee também utiliza verbos incoativos do Latim (amasco, calesco e obdormisco – começar a amar, esquentar, adormecer) para exemplificar a expressão de aspecto por meio derivacional.

Outra observação de Bybee (1985: 141) é que a maior parte das línguas que têm uma categoria de aspecto a opera por meio de uma oposição binária, geralmente entre perfectivo/imperfectivo ou habitual/contínuo. O Latim, assim, segue a maior parte das línguas, fazendo oposição perfectivo/imperfectivo.

Acerca de sua trajetória, o aspecto era a categoria mais importante do verbo indoeuropeu. Manifestava-se formalmente no radical verbal, a partir do qual se constituíam os demais processos flexionais ou até mesmo derivacionais. O verbo

indoeuropeu apresenta três temas aspectuais: um tema para um aspecto dinâmico e inconcluso – presente; um tema para um aspecto estático e concluso – perfeito; e um tema para um aspecto pontual, indefinido, sobre o qual não incidem a presença ou ausência de telicidade ou dinamicidade – aoristo28. Cada um desses temas tem independência e seus próprios processos de formação. Como se sabe, o Latim deixa de lado o aoristo, em prol dos outros dois temas aspectuais.

Uma amostra da independência entre os temas aspectuais dos verbos latinos são as séries de verbos que só ocorrem em um desses temas (apenas no infectum ou apenas no perfectum). Exemplos desse tipo de verbo são: por um lado, odi, -isse (odiar); memini, -isse (lembrar-se), que têm apenas tema de perfectum; por outro lado, tumeo, - ere (estar inchado); herbesco, -ere (brotarcom apenas tema de infectum.

Sobre a originalidade dos três temas aspectuais existentes no sistema verbal indoeuropeu, discute-se como eles teriam se estabelecido historicamente. Émile Benveniste (apud MONTEIL, 1974: 267) propôs que o aoristo tivesse se constituído posteriormente aos demais, devido, sobretudo, ao seu vocalismo zero no radical e ao uso de desinências secundárias; ele teria sido construído com base ou nos outros dois temas ou em temas nominais. Contudo, Mallory & Adams (2006: 63) apontam para a ausência dos temas de perfeito nas línguas anatólias, o que indicaria que esse tema, por si, teria surgido posteriormente à separação deste grupo.

A oposição binária entre os temas aspectuais, conhecida desde a Antiguidade, determina se a situação é acabada ou inacabada. O sistema aspectual latino é, por sua vez, uma continuidade do sistema indoeuropeu, cujos verbos se distribuíam em três temas aspectuais:

1º Um aspecto dinâmico e progressivo, correspondente ao tema chamado „presente‟, caracterizado no ativo por um vocalismo pleno radical de timbre ĕ, e por desinências primárias; 2º um aspecto estático e atingido, correspondente ao tema chamado „perfeito‟ caracterizado originalmente por um vocalismo radical pleno de timbre ŏ e uma série específica de desinências. Um redobro não-obrigatório se unia muito frequentemente a essas características; 3º enfim, um aspecto „zero‟, nem dinâmico nem estático, nem progressivo nem alcançado, correspondente a um tema chamado „aoristo, caracterizado pelo vocalismo radical reduzido e completado por desinências secundárias. (MONTEIL, 1974: 267)29

28

Do grego ἀόριστος, que significa ‘sem limite, indefinido’ 29

1º Um aspect dynamique et progressif, correspondant au thème dit “present”, caracterisé à l’actif par

un vocalisme plein radical de timbre ĕ, et des desinences primaries; 2º un aspect statique et achevé, correspondatn au theme dit “parfait”, caracterisé anciennement par un vocalisme plein radical de timbre

Como já vimos, o Latim procede a uma redução desse sistema ao binarismo infectum/perfectum. O antigo aoristo indoeuropeu deixa apenas vestígios nos dois temas que restaram no Latim. É possível ver a oposição entre os dois temas aspectuais na fábula a seguir:

(4.6)

Mons parturibat, gemitus immanes ciens, eratque in terris maxima expectatio.

At ille murem peperit. Hoc scriptum est tibi, qui, magna cum minaris, extricas nihil.

(Fedro, IV, 24) A montanha estava prestes a parir, proferindo gritos tremendos,

E havia na terra uma máxima expectativa.

Mas ela pariu um rato. Isso foi escrito para você, Que ameaça muito e não cumpre nada.

No texto, as formas verbais parturibat e peperit (estava prestes a parir / pariu) são, respectivamente, um pretérito imperfeito e um pretérito perfeito. Essa diferença pouco se altera em relação às línguas românicas, que mantêm os mesmos pretéritos: perfeito e imperfeito.

Assim, é possível observar que os temas aspectuais indoeuropeus, que originalmente eram independentes uns dos outros, foram perdendo essa independência ao longo de sua trajetória nas suas línguas descendentes, de modo que as línguas românicas guardam apenas alguns vestígios dessa característica primitiva.

4.3.2- Aspecto e morfemas pré-desinenciais

Os sufixos pré-desinenciais desempenham papel importante na mudança na expressão morfológica do aspecto que se pode observar na trajetória do Indoeuropeu e do Latim. O sufixo incoativo –sc, mais antigo, aparece apenas nos temas de infectum, o

ŏ, et une série specifique de désinences. Un redoublement, non-obligatoire, s’ajoutait três frequemment a ces charactéristiques; 3º enfin, un aspect “zero”, ni dynamique ni statique, ni progressif ni achevé, correspondant au theme dit “aoriste”, caracterisé par le vocalisme radical rediut et affublé des desinences secondaires.

que mostra que esse morfema surgiu na língua ainda em um momento no qual os temas eram independentes e cada um tinha seus próprios processos de formação; já os sufixos –turi meditativo e –ta frequentativo aparecem em ambos os temas, o que mostra que foram incorporados em um momento em que essa independência não era tão marcante.

Outra possibilidade de estudo da relação entre os sufixos pré-desinenciais e os temas aspectuais se volta à definição de perfectividade e imperfectividade. Enquanto a tradição das gramáticas latinas concebe os dois aspectos em sua telicidade, isto é, no seu caráter de situação concluída ou não-concluída, Comrie (1976: 16) traz uma definição distinta, porém oportuna a esta pesquisa:

A Perfectividade indica a visão de uma situação como um todo singular, sem distinção das várias fases separadas que constituem a situação; enquanto que o imperfectivo presta atenção essencial à estrutura interna da situação30

Essa definição pode ser usada para explicar o fenômeno estudado. Ainda de acordo com o autor, a imperfectividade, por se voltar às fases que constituem uma situação, está mais propensa a ter diversas subdivisões, das quais, aquelas mais comuns são organizadas na figura a seguir:

30

Perfectivity indicates the view of a situation as a single whole, without distinction of the various

separate phases that make up that situation; while the imperfective pays essential attention to the internal structure of the situation.

Aspecto

Perfectivo Imperfectivo

Habitual Contínuo

Não-

Figura 4.1: Classificação das oposições aspectuais (COMRIE, 1976: 25)

Essa concepção das noções aspectuais se relaciona diretamente com o fato de o sufixo incoativo ter se ligado somente ao radical de infectum, e também de os sufixos frequentativo e meditativo poderem aparecer em ambos os radicais apenas após a perda da independência por parte deles. Pode-se constatar, desse modo, que, por exemplo, o sufixo –ta frequentativo está próximo da noção aspectual de imperfectividade habitual, e o –sc incoativo está próximo de uma imperfectividade progressiva.

4.3.3 Outras referências a morfemas pré-desinenciais como marca de aspecto

A consulta a estudos anteriores sobre morfemas pré-desinenciais nos verbos da língua portuguesa conduz à combinação de sua forma com noções aspectuais, configurando-os como meios de expressão distintos para a expressão dessas noções.

Mattoso Câmara Jr. (1970: 90) lista um conjunto de sufixos derivacionais, situados entre o radical do verbo e suas desinências, como meios de expressão do aspecto verbal, a saber: -itar, -ejar (frequentativo); -ecer (incoativo). Outro estudioso de língua portuguesa a fazer o mesmo é Luft (1976), que também lista sufixos pré- desinenciais como meio de expressão do aspecto (TRAVAGLIA, 2014: 266). De modo semelhante, Castilho (1968) também fala de sufixos aspectuais frequentativos (bafejar, bodejar) e incoativos (amanhecer, anoitecer). Desses, os dois trabalhos mais completos acerca desse tipo de expressão aspectual são os de Castilho (1968) e Travaglia (2016).

Nadalin (2005), em seu trabalho sobre a língua polonesa, fornece alguns exemplos do mesmo fenômeno em Alemão, como os verbos lieben (amar) - liebeln (amar superficialmente); lachen (rir) - lächeln (sorrir). Ele fornece também exemplos do Polonês. O autor, contudo, opta por trabalhar com a distinção entre aspecto e aktionsart, classificando os sufixos pré-desinenciais como marcas de aktionsart nos verbos poloneses. Sua escolha, contudo, não contradiz a presente decisão de tratá-los todos como noções aspectuais.

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