• Nenhum resultado encontrado

Outras perspectivas de compreensão do bullying escolar

Como destacado anteriormente, estamos considerando que o

bullying é mais uma entre as diferentes formas de violência que

existem. Nossa opção pela compreensão do bullying em articulação com a estrutura social mais ampla justifica-se a partir da ideia de estudarmos a realidade de determinado assunto em sua totalidade com múltiplas determinações (Vigotski, 1993, 2006; Vigotski, Lu- ria & Leontiev, 1989).

Sobre isso, Duarte (2000) esclarece, a partir de Marx, o porquê de não podermos ignorar a perspectiva macro em nossos estudos:

[...] se considerarmos que muitos pesquisadores rejeitam a pers- pectiva da totalidade, limitando-se ao micro, ao caso isolado, ao particular transformado em única instância real, sendo que por vezes isso é justificado como tentativa de dar conta da riqueza do caso singular, riqueza essa que esses pesquisadores afirmam ser perdida em todas as tentativas de visão totalizadora do real. Outras vezes esses pesquisadores não chegam propriamente a negar a ne- cessidade da compreensão do todo, mas tal compreensão é poster- gada a estudos futuros que porventura venham a ser desenvolvidos por alguém. É como se, de milhares de estudos microscópicos e fragmentários, pudesse surgir, por um passe de mágica, uma visão articulada do todo. Se a visão do todo que dirige essas pesquisas do caso singular em si mesmo são dirigidas pela representação caótica do todo, o fato é que elas não são capazes de realizar aquilo a que se propõem, isto é, captar a riqueza do singular justamente porque o singular só pode ser entendido em toda sua riqueza quando visto como parte das relações que compõem o todo. (p.92)

Conforme Almeida, Lisboa & Caurcel (2007), Oliveira & Votre (2006) e Olweus (1995), o bullying ocorre por meio da perseguição e intimidação de um aluno por um ou vários companheiros de es-

cola. As situações são marcadas pela intencionalidade de causar danos e sofrimentos, pela repetitividade das ocorrências de vio- lência, bem como pela assimetria de poder no controle ao outro.

Beaudoin & Taylor (2006) salientam ainda que as gozações ou até mesmo atitudes violentas contra o outro são desencadeadas por não sabermos lidar com as diferenças, o que culmina com a cultura do desrespeito dentro das escolas. O preconceito ligado às dife- renças físicas, sexuais, religiosas, políticas, econômicas, raciais e intelectuais apenas reforçam a ausência de respeito com aqueles que fogem aos padrões de normalidade constituídos ao longo do tempo nas diferentes sociedades.

Nessa vertente, de acordo com Rogoff (1995), Rogoff & Ange- lillo (2002), Rogoff et al., (1995), Vigotski (1993, 2006) e Vigotski, Luria & Leontiev (1989), há um interesse pelo estudo da natureza social do ser humano, bem como pelo entendimento de que as va- riações entre os sujeitos não residem em aspectos individuais, mas sim no engajamento e contato com as atividades da cultura, que são socialmente estruturadas.

Um aspecto que nos parece importante e necessário, e que vem sendo negligenciado em diversos estudos, seria compreender o as- sunto para além de determinismos biológicos, os quais justificam a condição de sujeitos predispostos ao bullying. Dessa forma, po de- ríamos contribuir para a superação de uma compreensão indivi- dualizante desse fenômeno social, como se somente o agressor e a vítima fossem responsáveis pela sua ocorrência, sem considerar a força dos valores e crenças culturais que inspiram práticas pouco empáticas e solidárias entre os sujeitos de nossa sociedade de forma mais ampla.

Vários sinônimos têm sido utilizados em português para fazer referência ao termo bullying, visto que não há uma única palavra em nosso vocabulário que consiga dar conta da terminologia, tais como: maus-tratos, vitimização, intimidação, agressividade e vio- lência entre pares (Bandeira, 2009; Lisboa, 2005). Dentre as dife- rentes conceituações sobre o bullying, tanto em âmbito nacional como internacional, ainda não encontramos alguma que consiga

romper drasticamente com as questões mais individualistas, e que, por conseguinte, enfocasse a influência dos aspectos histórico-cul- turais em sua dinamicidade. Nesse sentido, utilizamos a definição adotada por Almeida, Lisboa & Caurcel (2007), por percebermos um avanço, no aspecto em que os comportamentos e atitudes re- lacionados ao bullying não são vistos como algo necessariamente provocado pelas vítimas. Mesmo assim, tal conceituação não é su- ficiente:

Así, los malos tratos se distinguen de otras formas de agresión por su carácter repetitivo o sistemático, por la intencionalidad de causar daño o prejudicar a alguien que habitualmente es más débil o está en una posición fragilizada y que difícilmente se puede de- fender. La recurrencia, la intencionalidad y la asimetría caracte- rizan las situaciones de agresión como abuso de poder, sin embargo, también puede añadirse que estos comportamientos o actitudes no son necesariamente provocados por las víctimas. (Almeida et al., 2007, p.108)

Dentre os diferentes papéis que os alunos assumem nas situa- ções de bullying destacam-se os seguintes: autores (agressores), alvos (que podem ser classificados em típicos ou provocadores) e os espectadores (testemunhas) (Bandeira, 2009; Lisboa, 2005; Pizarro & Jiménez, 2007).

Não podemos deixar de refletir que, por mais que os sujeitos ocupem papéis diferentes nas ocorrências de bullying, ambos fazem parte de um círculo de relações sociais que contribuem para pro- liferar a violência para com o outro. Até mesmo porque tais in- divíduos são parte de um processo histórico, cujas influências culturais e sociais podem marcar ou demarcar suas ações dentro desse quadro de ocorrências, ao fazer com que eles expressem de- terminadas atitudes em razão das maneiras com que foram encora- jados ou ensinados a agir.

Sendo assim, os grupos são formados e alguns alunos assumem determinadas posturas, muito mais para se afirmar perante os pares

do que por mobilização própria, ou seja, buscam o pertencimento para fugir das perseguições a que estão submetidos. Entretanto, outros são excluídos por não se adequarem às exigências grupais.

Nesse sentido, Munarin (2007) aponta que

Essa tentativa de agrupamento dos alunos é uma relação egoísta, copiada da sociedade em que vivem. Assim como a sociedade se organiza por grupos diferenciados por classe social, por situação financeira, por interesses convergentes, os estudantes imitam essa busca de identificação social para garantir a perpetuação do statu

quo. Porém, essa forma de organização social capitalista é injusta,

pois é alicerçada sob a base da garantia dos direitos adquiridos pela própria estrutura societária que garantem a manutenção da ordem e da estabilidade de seus bens sociais e econômicos. (p.46)

Destarte, ao trabalharmos com essas categorizações de envol- vidos com o bullying em nossas pesquisas, deveríamos comparti- lhar as ideias apontadas por Rogoff (1995) e Vigotski (1993, 2006), a fim de abordar tais papéis diante do pressuposto de que a cons- ciência humana desses sujeitos é um produto sociocultural.

Apesar de reconhecermos que o bullying se trata de um proble- ma de relacionamento (Pepler et al., 2008), ele não se manifesta de forma isolada de aspectos sociais contemporâneos, marcados por individualismo, cultura da vaidade, efemeridade das relações so- ciais que impedem o desenvolvimento da empatia, dificultando a compreensão do ponto de vista alheio e vice-versa. Tais aspectos do psiquismo humano, de acordo com Leontiev (1978), Vigotski, Lu- ria e Leontiev (1989) e Vigotski (2006), são determinados de acordo com as condições reais de vida em que os sujeitos se encontram.

Fica claro que não é o pensamento que determina o real, mas sim o real que o determina. Ou seja, qualquer atividade de abs- tração humana: um pensamento, conceito, ideia ou ação tem sua origem determinada pela realidade objetiva e concreta. Tais as- pectos vão confirmar que a consciência humana é um produto so- ciocultural.

Sobre isso, Vigotski (2006) salienta que os signos, construídos socialmente, vão ser repassados culturalmente. Ainda em Vigotski (1993), fica evidente que a comunicação entre duas pessoas só po- derá ocorrer de forma indireta: “o pensamento tem que passar pri- meiro pelos significados e depois pelas palavras” (p.129).

Crochik (1997) salienta que uma cultura que não se apresenta de forma racional a seus integrantes, que não valoriza a busca de sentido para a vida, acaba por impedir tanto a autorreflexão quanto a reflexão sobre a sociedade, o que, por sua vez, contribui para o surgimento de estereótipos e preconceitos, os quais, por sinal, apontam para a dificuldade de se identificar com alguém que siga normas distintas daquelas que acreditamos ser as verdadeiras ou absolutas em nossos relacionamentos sociais.

Diante do exposto, podemos pensar que a não aceitação das di- ferenças reflete o esquema vigente em nossa sociedade. Muitas vezes, as diferenças religiosas, raciais, físicas, de orientação sexual, sociais e culturais não são respeitadas, em função de (pré)conceitos construídos e propagados ao longo da história. As situações de

bullying, por vezes, carregam muitas dessas marcas, ao passo que a

exclusão de determinado aluno, bem como sua perseguição, são marcadas pela não aceitação de suas características, modos de agir, pensar e ser, que, não raro, transgridem os padrões normativos ins- tituídos.

Concordando com essa visão sobre o bullying, que não se limita a compreendê-lo como sendo de responsabilidade exclusiva de um sujeito particular, Antunes & Zuin (2008) elucidam que, frequen- temente, nos esquecemos de olhar a raiz do problema, ou seja, as mediações sociais que as determinam. Portanto, não estamos refor- çando a perspectiva de que os adolescentes que são expostos ao

bullying devam ser “tratados” para se acomodar à situação vivida,

mas entendemos que possa haver condições favorecedoras de forta- lecimento do sujeito que os encaminhem às formas construtivas e emancipatórias de enfrentamento, associadas aos processos de resi- liência (Libório & Ungar, 2010; Ungar, 2004).

Num primeiro momento, quando falamos em consequências do

timas, contudo, todos os envolvidos são afetados. Entretanto, uns sofrem mais e outros menos. As consequências, em decorrência, variam de indivíduo para indivíduo ou contextualmente, mesmo quando expostos a situações semelhantes.

Autores como Donnon & Hammond (2007) apontam que al- guns jovens conseguem superar com êxito as condições adversas, ou seja, os fatores de risco aos quais são submetidos, tais como a disfunção familiar ou a constante presença de situações violentas em seus bairros, o que os leva a não se envolver em casos de bullying, bem como em outras formas de violência.

Nesse sentido, Libório, Castro & Coelho (2006) enfatizam que um aspecto importante é buscar a compreensão de como alguns fa- tores conseguem funcionar de forma protetiva na vida de algumas crianças e adolescentes, mas sem nos centrarmos em traços indi- viduais ou estereótipos. Acrescentam ainda que as pessoas são sin- gulares e respondem de forma diferente às mesmas adversidades (fatores de risco), de forma que fatores protetivos estão vinculados à sua história de vida, permeada pelos aspectos sociais, culturais e relacionais, e minimizam o impacto dos riscos em suas vidas.

Com base nos apontamentos feitos, fica evidente a necessidade de pensarmos em programas de intervenção no que se refere a prestar maiores esclarecimentos sobre o bullying, bem como sobre suas consequências a todos os envolvidos nos segmentos escolares.3