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A Paisagem e a Perspectiva Antropológica

1. PAISAGENS

1.1. A PAISAGEM

1.1.2. A Paisagem e a Perspectiva Antropológica

A percepção da paisagem, sendo um acto humano, é susceptível de ser valorada qualitativamente utilizando conceitos como (Hurtado, 2001: 297):

- a qualidade visual (um parâmetro complexo composto de uma série de variáveis dependentes da percepção que expressa a qualidade estética muitas vezes traduzida por termos de uma escala que vai de excelente, muito boa, boa, regular a má) em que intervêm aspectos como a composição, contornos e diversos gradientes como a luminosidade, a cor, a textura, a dimensão;

- e a singularidade (a raridade ou a pouca frequência) expressa habitualmente numa escala de valores que vai de muito elevada, elevada, normal, escassa a muito escassa.

Outros conceitos como a fragilidade e a capacidade de uso que afectam a potencialidade de uso da paisagem:

- a fragilidade pode ser interpretada como a susceptibilidade de uma paisagem à mudança quando se desenvolve nela um uso (Villota et al., 1996b in Hurtado, 2001: 298) ou a vulnerabilidade à deterioração pela incidência de actuações. Pode ser classificada como muito alta, alta, média, baixa e muito baixa;

- uma capacidade de uso alta representa o potencial de uma paisagem para absorver as actividades humanas.

Na paisagem deve ainda considerar-se a multi-utilidade e a multifuncionalidade como os usos e funções úteis às comunidades humanas (De Groot, 2006 in Cancela d’Abreu, 2007: 76). A análise da paisagem pode ainda revestir a forma descritiva que envolve as características intrínsecas da paisagem ou a forma de potencialidade pela aptidão de acolher certas funções e de destacar as suas qualidades (Hurtado, 2001: 298).

Segundo Hirsch (1995: 1) a paisagem tem sido considerada, em termos antropológicos, por um lado com uma concepção estruturante que focaliza a forma como o antropólogo a percepciona

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nos seus estudos e, por outro, para referir o significado atribuído pelas populações locais ao ambiente físico e cultural à sua envolvente – a análise de como as populações locais percepcionam a paisagem.

A noção convencional de paisagem no Ocidente pode ser usada como ponto de partida para explorar outras formas de abordagem do conceito de paisagem e a antropologia pode fazê-lo com sucesso ao ser uma disciplina comparativa resgatando conceitos analíticos e ideias culturais (Hirsch, 1995: 2).

Para Hirsch (1995: 2) a palavra paisagem foi introduzida na língua inglesa pelos pintores no século XVI como termo técnico – tem a sua proveniência na palavra holandesa “landschap” – e era conhecida em inglês por “landskip”.

A origem pictórica do conceito de paisagem é significativa: o que se considerava como paisagem era reconhecido como tal porque relembrava ao observador uma paisagem pintada, usualmente de origem europeia, aspecto pesquisado por Keith Thomas na história da Inglaterra no período entre o século XVI e o século XIX.

“O apelo inicial do cenário rural era o de que ele relembrava o espectador dos quadros de paisagens. Com efeito a cena só era chamada uma «paisagem» porque relembrava uma pintura «landskip»; era pitoresca porque parecia um quadro” (Thomas, 1984: 265 in Hirsch, 1995: 2).

Este mundo ideal ou imaginário está representado em vários géneros de pintura de paisagem (Poussin, Claude, Salvator Rosa) e estava ligado à percepção do cenário do campo e da sua ulterior melhoria, em que o objectivo era obter uma correspondência entre o ideal pictórico e a própria realidade do campo. O desenvolvimento do jardim na cidade no século XIX é talvez exemplar aqui: Thomas (1984: 253 in Hirsch, 1995: 2) observou que Ebenezer Howard proclamou nos anos 90 do séc. XIX que “a cidade e o campo deviam estar casados”. A ideia era juntar num único espaço/lugar a classe média suburbana do séc. XIX com a classe operária do séc. XX (Cosgrove, 1984: 267-26 in Hirsch, 1995: 2): a existência de oportunidades económicas e sociais na cidade (“foreground”, primeiro plano que representa a existência actual e a vivência diária) e o campo com a oferta de uma existência edílica (“background”, segundo plano que representa a existência idealizada), em que a paisagem vincula uma relação entre aqueles dois planos da vida social.

A representação da convenção Ocidental de paisagem é uma expressão particular de uma relação “foreground / background” que é cruzada culturalmente (Hirsch, 1995: 2-3).

Se bem que a paisagem tenha aqui sido posta em evidência como uma ideia cultural e um conceito analítico diferentes, é difícil isolá-la de um conjunto de outros conceitos em que cada um corresponde a um dos dois pólos do conceito de paisagem a seguir explicitados (Hirsch, 1995: 4):

“vivência diária e existência idealizada”

(“foreground actuality”  “background potentiality”); “lugar e espaço”

(“place”  “space”); “interior e exterior”

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(“inside  outside”) “imagem e representação” (“image  representation”).

O conceito de paisagem assim proposto é diferente do de outras disciplinas como a geografia, como o demonstra a pesquisa dos geógrafos Daniels e Cosgrove (1988: 1 in Hirsch, 1995: 5) que definiram paisagem como “uma imagem cultural, uma forma pictórica de representar ou simbolizar a envolvente”.

Porém, Ingold (1994: 738 in Hirsch, 1995: 5) chama a atenção para o facto de que esta definição de paisagem é essencialmente estática, o que é a negação do processo.

Apesar de o termo paisagem ter tido uma origem pictórica, adquiriu uma conotação territorial através da geografia e da arquitectura paisagista, desde o século XX (Andresen, 1992).

Hirsch (1995: 5), no trabalho que tem vindo a ser referido, entende que a paisagem é um processo cultural e pretende, por um lado, desenvolver a perspectiva antropológica nos debates sobre a paisagem (um tema mais focado em disciplinas como a geografia e a história de arte) e, por outro lado, estabelecer uma estrutura, para um estudo comparativo da paisagem que efectue um cruzamento cultural que tem faltado na antropologia e nas outras disciplinas relacionadas.

Para Sauer (1963 in Hirsch, 1995: 9) o conceito de paisagem deriva das tendências europeias da geografia e argumenta que a cultura modelou a paisagem natural para produzir uma “paisagem cultural”. Segundo o mesmo autor, “a paisagem cultural é moldada na paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio e a paisagem cultural é o resultado”.

Para Head (2000) “paisagem cultural” é uma paisagem transformada fisicamente pela acção humana.

Na acepção que tem para os europeus é difícil conceber a Amazónia como paisagem, dado que a partir de um ponto de observação não se consegue ver o horizonte, pois a vegetação densa oculta completamente a vista. A nossa visão está completamente cercada e só consegue penetrar uns quantos metros face à densidade de árvores que é muito elevada. Até a noção de escala é difícil de ser aplicada mesmo quando se anda pela floresta ou de barco ao longo dos grandes rios. Só quando a paisagem da Amazónia for radicalmente transformada pela abertura de estradas e desflorestada é que nos será revelada visualmente a sua extensão (Gow, 1995: 43 in Hirsch, 1995: 9).

Heaulmé (2005 : 6-7) distingue três grandes modelos de percepção e acção que, no decurso do século XX, classificaram a paisagem como património:

- o «paradigma do pittoresque» – a paisagem impõe-se como objecto patrimonial na medida em que se aproxima de uma pintura (Leis 1906 e 1930 em França sobre os sítios e monumentos naturais);

- o «paradigma do ambiente» a partir dos anos 50 do século passado – registo e classificação, nos anos 60 e 70, de grandes paisagens naturais (ex. Landes e Gironde) e o aparecimento de uma nova política que se dedica, além da protecção, a uma verdadeira gestão dos sítios;

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- o «paradigma da paisagem cultural» depois dos anos 80 – atenção dada à paisagem enquanto forma sensível de uma interacção dinâmica do natural e do social.

O conceito de lugar (“site“).

Para Heaulmé (s/d: 1) a política dos lugares (“sites”) na legislação francesa tem a preocupação de proteger as paisagens (Lei de 1906 sobre a protecção dos lugares e monumentos naturais de carácter artístico, completada e substituída pela Lei de 1930, hoje integrada no Código do Ambiente).

Como esta autora faz notar, a definição jurídica de “lugar” é bastante ambígua em França onde o termo é utilizado:

- vulgarmente como sinónimo de “lugar/sítio” (“lieu”), de “espaço/terreno” (“emplacement”) e de “situação/posição” (“situation”);

- como “paisagem, considerada do ponto de vista estético, do pittoresque” (Littré); - como “configuração do lugar, do terreno onde se ergue uma cidade” (Littré).

O conceito de “sítio” fornecido pelos diccionários antigos, nomeadamente, pelo Diccionário da Academia Francesa, foi evoluindo:

- como termo de pintura que significa situação – “é o que permite situar a cena representada pelo pintor” (1762, 4.ª Edição). ;

- como sinónimo de paisagem – “uma parte da paisagem considerada relativamente à que se avista” (1798, 5.ª Edição);

- “parte da paisagem representativa do que é observado” e dá como exemplo o “site pittoresque” (1835, 6.ª Edição);

- “a parte «pittoresque» duma paisagem, a parte da paisagem que é digna de ser representada por um pintor” (1832-35, 8.ª Edição).

De uma primeira análise pode-se para já dizer que em França se estabeleceu uma equivalência entre “lugar”, “paisagem” e “pittoresque”.

Por outro lado a mesma autora refere que a Lei de 1930 alargou os critérios de protecção dos lugares ao valor histórico (nas duas acepções de carácter histórico ou lendário do lugar) e o valor científico, sendo o carácter artístico ou “pittoresque” que justificou durante muito tempo a protecção dos lugares, o lugar relevante no domínio da estética.

Porém, hoje em dia o termo “lugar” é conotado com o de uma paisagem considerada apenas “do ponto de vista da estética e do pittoresque” (Heaulmé, s/d: 1).

Heaulmé (s/d: 2), abordou a questão da heterogeneidade dos lugares protegidos, tomando como exemplo a lista dos lugares classificados na região de Gironde (França), em que se podem encontrar estruturas edificadas, espaços e paisagens muito diversificadas quer pelas características físicas ou pelas suas dimensões, como um moinho, castelos, a praça de uma vila, zonas húmidas do litoral, a duna do Pilat, a floresta de La Teste ou um plátano.

Acerca dos lugares e da evolução da noção de protecção, decorre uma primeira fase desde meados do século XIX aos anos 60-70 do século passado. Se for feita uma análise histórica à questão da evolução do conceito de protecção, verifica-se que numa primeira fase, e um pouco por todo o mundo, a legislação referente às áreas protegidas tratava de evitar que elas

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sofressem grandes pressões antrópicas (como a caça, a construção de vias, de novas urbanizações), atitude que também foi aplicada à protecção dos lugares em França. Esta posição podia levar a um isolamento do espaço protegido no território em que estava inserido, o que podia resultar numa descontinuidade espacial forte e que se fundamentava sobretudo em critérios estéticos (Heaulmé, s/d: 1).

A partir de 1970 desenvolveu-se outro tipo de aproximação baseado no binómio protecção e desenvolvimento que, para se tornar possível, era necessário ultrapassar a velha oposição natureza-cultura. A paisagem e o meio natural passam a ser definidos como o resultado de uma interacção dinâmica entre sociedade e natureza. A paisagem pode sair da intemporalidade da obra de arte para ser considerada como uma construção material dinâmica entre a sociedade e a natureza, graças ao reconhecimento do papel desempenhado pelos actores locais (Heaulmé, s/d: 2-3).

Para que a protecção possa ser posta em prática é preciso que a patrimonialização de um

espaço seja pensada como uma construção dinâmica e colectiva, reflectida mais em termos de

território do que dos perímetros de protecção, constatando-se que o ordenamento do território ainda está muito ligado ao conceito de zonamento.

A participação e a mediação não estão ainda suficientemente incorporadas como verdadeiros instrumentos de acção na medida em que o reconhecimento e a apropriação do espaço protegido são essenciais. A protecção muitas vezes posta em prática como reacção e não como um projecto, deverá hoje em dia ser pensada antes como projecto territorial e partilhado (Heaulmé, s/d: 4).

Conceito de “interior e exterior” (“inside  outside”).

Este conceito atrás indicado, foi desenvolvido por Williams (1973 in Hirsch, 1995: 13) que considerou como “outsiders” os que recorreram ao conceito de paisagem, mas que actualmente não vivem na área em questão – proprietários de terrenos, empresários, artistas. Sugeriu ainda (1973 in “The country and the city”) que o uso convencional da ideia de paisagem tornou evidente a ambiguidade entre “inside(r)” e “outside(r)”, e que incitou os geógrafos a banir a palavra paisagem do vocabulário da geografia no período após a 2.ª Guerra Mundial (Livingstone, 1992: 308 in Hirsch, 1995: 13).

Segundo Williams (1973 in Hirsch, 1995: 13 e 22) a distinção entre “insiders” (os que vivem a sua paisagem e que têm “raízes” na natureza, os que se relacionam directamente com a terra) e “outsiders” (os que encaram a paisagem como um conceito que é preciso tornar num objectivo, os que têm um entendimento baseado exclusivamente em valores comerciais e ou de posse, os que se relacionam com ela em termos de troca de valores) tem um sabor romântico. Da mesma forma que conceitos de “place” e “space”, os de “inside” e “outside” não se excluem um ao outro e dependem sempre do contexto histórico e cultural.

Selwyn (in Hirsch, 1995: 13), sobre um caso de estudo a propósito da paisagem israelita, afirma que os conceitos de “inside” e “outside” podem mudar radicalmente num contexto mais alargado de eventos nacionais e geopolíticos: estabeleceu um paralelismo entre os interesses dos Sionistas do século XIX e a perspectiva de Williams (1973) sobre os “insider” da terra, retratados como próximos da natureza e ocupados com formas de trabalho mais “autênticas”.

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Para aquele autor o Sionismo era menos um movimento religioso e mais um processo socialista redentor com raízes na vida física e no trabalho da terra. Os Sionistas tinham a esperança de transformar a forma de estar dos Judeus Europeus baseada no comércio (como “outsider”) para umnovo e “normal” conjunto de relações entre homens, mulheres, natureza e trabalho da terra, na Palestina (como “insider”).

Neste sub-capítulo a perspectiva antropológica mostra-nos, assim, que actualmente para a gestão da paisagem é fundamental compreender como se estabelecem as relações dos vários utilizadores e construtores da paisagem com a realidade e como daí advêm os valores que são atribuídos pela sociedade.