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1. PAISAGENS

1.2. CLASSIFICAÇÃO E GESTÃO DA PAISAGEM

1.2.4. Abordagem Europeia

1.2.4.2. Abordagem portuguesa

1.2.4.2.1. Paisagem Rural das Terras do Demo

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Um dos casos consultados no âmbito da abordagem portuguesa relativa à classificação e gestão da paisagem foi o trabalho feito pela investigadora Queiroz (2007) que analisou de forma integrada a evolução da paisagem de Terras do Demo, ao longo do século XX e a sua valorização através da literatura, designando-a como “um território literário”.

Queiroz avaliou o potencial da paisagem e da literatura na vastíssima obra do escritor Aquilino Ribeiro (1885-1963), como fonte de informação para o conhecimento da evolução da paisagem, tendo a autora explorado os elementos que definiram o território que deu o nome ao trabalho desenvolvido (“A Paisagem de Terras do Demo”) e que abrangeu 3 concelhos da Beira Alta (Sernancelhe, Moimenta da Beira e Vila Nova de Paiva).

O trabalho foi ainda complementado com fontes cartográficas, estatísticas e com a consulta de monografias e outras, relativas à época, a primeira metade do século XX, tendo sido sugeridas acções de valorização e recuperação da paisagem com vista a serem integradas numa estratégia de desenvolvimento regional.

Queiroz (2007: 16-17) entende que as paisagens literárias são o produto da expressão dos escritores que as conceberam e podem constituir oportunidades para conhecer a história do lugar e que a literatura pode ser uma fonte de informação sobre as paisagens e um elemento a ter em conta na gestão do território.

A história enquanto narração crítica e pormenorizada de factos sociais, políticos, económicos, culturais e/ou religiosos que fazem parte do passado dos países ou dos povos, pode e deve ser um elemento a ter em conta na gestão do território.

Aquela investigadora analisou os textos aquilinianos para aprofundar a ligação entre a

paisagem e a sua representação literária e avaliar os conteúdos que testemunham a ocupação

do território, a diversidade biológica e a relação do ser humano com a natureza. Para ela “os textos aquilinianos amplificam a literacia da paisagem” e esta é, também, uma forma de evidenciar a faceta ambientalista de Aquilino Ribeiro (AR) a quem designa de “Paisagista Aquilino Ribeiro” (Queiroz, 2007: 151, 157-158).

Para Queiroz (2006 in Moreira et al., 2006: 221 e 168) as descrições detalhadas da paisagem

rural das Terras do Demo (Beira Alta, Nordeste de Portugal) feitas por Aquilino Ribeiro,

criaram uma paisagem de referência, conceito que é aplicável a uma paisagem em que foram definidas medidas de gestão para esse território, alicerçadas em informação histórica combinada de elementos naturais e culturais.

Uma paisagem de referência pode até ser uma representação pictórica de uma paisagem ou uma paisagem literária, que permita que alguns elementos do carácter da paisagem sejam apreciados e, por meio de um processo de identificação social, vir a ser a característica chave da identidade da paisagem (Moreira et al., 2006: 220).

À imagem do conceito que alguns autores (Aronson, et al. 1993; White e Walker, 1997; SER, 2004 in Queiroz, 2007: 169) sugeriram para o “ecossistema de referência” (“usado como modelo e objectivo de projectos de intervenção que visam melhorar as actuais condições de alteração (ou degradação), enquadrados numa perspectiva de restauração ecológica”), também a “paisagem de referência” pode ser definida através do estudo da sua evolução

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nessa mesma área, considerando o mesmo lugar mas em diferente período, reconstituindo os componentes da paisagem que lhe imprimem carácter próprio e contribuem para a identidade local e para a época histórica em que se originaram ou modelaram (Queiroz, 2007: 169). Sobre a questão da avaliação das transformações ocorridas na paisagem e da identificação de objectivos de recuperação da sua condição de referência, Moreira et al. (2006: 219-220) e Queiroz (2007: 169) resumiram as principais mudanças (transformações) ocorridas em cada uma de 4 componentes operacionais da paisagem nos últimos 50 anos:

- a composição e configuração da paisagem, refere-se aos padrões espaciais da paisagem – elementos como marcas da paisagem, tipos de uso do solo, ecossistemas, espécies da flora e da fauna bem como a forma como estão organizados influenciam a fisionomia, a percepção, as funções e os valores da paisagem – ainda caracterizada por um uso do solo assente num mosaico de explorações agrícolas de pequena dimensão que estão a diminuir; matos, pastagem e floresta em crescimento devido à florestação, ao abandono da terra e aos incêndios;

- as técnicas tradicionais de gestão do solo, referem-se à utilização de técnicas e competências que permitiram a modelação das paisagens ao longo de centenas de anos, como a tracção animal, o pastoreio, a selecção e uso de raças locais, equipamentos e ferramentas, práticas agrícolas e formas de organização do trabalho – foram substituídas pela mecanização e pela fertilização com adubos químicos;

- os elementos lineares e pontuais, embora resultem das duas componentes anteriores, podem ser consideradas separadamente em projectos de restauração da paisagem, incluem muros de pedra, terraços agrícolas, caminhos, sebes, pequenas manchas florestais, charcas, etc. – como os muros de pedra que eram uma característica da paisagem de referência, embora com o abandono das terras uns vão entrando em ruína e outros desmontados e vendidos como elementos para decoração de exteriores de casas fora da região;

- outras características patrimoniais, que incluem aspectos etnográficos associados ao conhecimento de técnicas e ferramentas tradicionais, a arquitectura local, os dialectos, a música, a tradição oral, a toponímia – como o vocabulário rico usado para descrever a paisagem literária mencionada que produz em parte a linguagem local relativa ao território e paisagem. Inclui nomes de lugares (topónimos), tipos de uso do solo, padrões de uso do solo, técnicas, utensílios e actividades ligadas à gestão da terra. Embora lembrados na literatura, o uso comum daqueles termos perdeu-se, como desapareceram os agricultores mais velhos e os pastores. Mas, ao mesmo tempo, o valor cultural atribuído a Aquilino Ribeiro como um ícone da região, inspirou novas designações para lugares, associações, instituições culturais e produtos, como por exemplo, para o título do jornal local.

Concluindo, são vários os conceitos de paisagem sintetizados na definição da CEP (Conselho

da Europa, 2000) como sendo uma parte do território, que é apreendida pelas populações, em que o seu carácter resulta de factores naturais e humanos agindo e interagindo entre si.

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A paisagem da Herdade da Contenda, que constitui o estudo de caso deste trabalho, é uma

paisagem cultural, tal como o são as paisagens simbólicas, as paisagens icónicas, as paisagens

protegidas, as paisagens singulares e as paisagens típicas, entre outras.

Alguns casos de estudo, de outros tantos autores, sobre o simbolismo das paisagens permitiram estabelecer alguns critérios, nomeadamente:

- Zukas (2009) salientou a importância da história dessas paisagens, através da análise da ocupação de Coachella Valley no Deserto da Califórnia por Índios Cahuilla, de uma forma

sustentada e coerente. Viviam dos recursos naturais como por exemplo da caça e dos vários

produtos obtidos de uma palmeira autóctone dos oásis dos vales, tinham locais sagrados dos quais ainda guardam as lendas, eram reverentes com a natureza e os ciclos naturais, celebravam a paisagem que consideravam como talismã, tinham sítios rochosos sagrados e com significados sobrenaturais (sacralização e mitologia). Numa época mais recente e num período temporal curto de cerca de duzentos anos, operou-se uma mudança rápida na cidade de Coachella Valley que, sobretudo a partir de meados do século XX, passou a ser um

símbolo do que não deve ser uma paisagem simbólica, materializado no desperdício de

água, nos gastos energéticos brutais, na introdução de espécies exóticas, enfim uma paisagem ambientalmente não sustentável conseguida por planeadores que valorizaram a supremacia do poder económico (Reisner, 1993 in Zukas, 2009: 44);

- Meinig (1979) estudou três paisagens simbólicas que fazem parte da iconografia da

independência, de uma partilha de ideias, memórias e sentimentos que promovem a união

de um povo, no caso o americano e que constituem imagens das forças sociais, económicas e políticas

. a vila de New England entre os séc. XVII e XIX em que são identificados os valores de democracia e comunidade e o papel da religião moldando a fundação da nação

. a representação do crescimento das vilas e cidades do NO e O dos EUA no séc. XIX e do crescimento dos interesses comerciais da economia, expressos nas ruas principais com edifícios de fachadas em mármore e granito e lojas de tijolo à vista

. os subúrbios da Califórnia do Sul, como a paisagem da América no séc. XX, com a vivenda unifamiliar num lote pequeno e a garagem para o carro, num rearranjo espacial anti-urbano onde a raça e a classe estavam em contradição com os valores americanos de independência e comunidade;

- Flad (2009) sobre “Catskill Mountain House” no Hudson River Valley

. o local onde este “resort” foi construído no início do séc. XIX era parte de um território com uma paisagem natural que servia de cenário a artistas tendo, por isso, adquirido uma enorme valorização que a levou a ser considerada uma paisagem de referência e área de património nacional por ser uma paisagem que “define a América”, uma associação do conceito histórico com o conceito ideológico nacionalístico. A paisagem de ficção e mitológica dos pintores e das suas histórias permanece e ajuda a identificar a região no ideário nacional e constitui um “branding” para os investidores turísticos da região. É na região do Hudson River Valley que as áreas naturais constituem a referência central da

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- Coleman et al. (2011), representando um grupo de investigadores australianos, conceberam um estudo sobre as paisagens icónicas, investigando como é que as comunidades locais, em diferentes paisagens da Austrália (“Seawalls”, de Sydney Harbour; “Rangelands”, de Fowlers Gap; e as “Arid dry-zones”, de Simpson Desert), compreendiam e avaliavam o ambiente. Procuraram também reunir histórias e obter dados de outros tempos passados, as percepções e as visualizações envolvidas na compreensão e o relacionamento entre os

factos biológicos e os valores sociais relativos a lugares particulares.

Queiroz (2007) elaborou um trabalho de investigação sobre a gestão e a classificação da paisagem e a sua evolução, baseado na obra do escritor Aquilino Ribeiro, num território da Beira Alta, “As Terras do Demo”. A pesquisa que desenvolveu permitiu-lhe concluir que os conteúdos daquela obra do escritor, sobre os elementos naturais e culturais, continham informação caracterizadora daquela área envolvendo três concelhos, que permitem estudar a evolução da sua paisagem. Além destes elementos, a investigadora recorreu a outras fontes como as cartográficas, as estatísticas e outras.

A partir de um conjunto de elementos como os acabados de referir, em que a Carta de Uso do Solo de 1950 foi um peça importante pelas informações que continha, foi possível completar e corroborar em termos quantitativos as descrições literárias de AR.

Este caso de estudo permitiu concluir que os textos literários são passíveis de conter memórias que permitem conhecer elementos naturais e culturais, bem como a sua evolução.

Aquela paisagem sofreu alterações significativas nos últimos 50 anos, porém, ainda mantém muitas das características naturais e culturais que existiram antes daquele período.

O conteúdo das obras de Aquilino Ribeiro constituíu um contributo para a caracterização e estudo da evolução da paisagem das Terras do Demo que passou a ser designada por “paisagem aquiliniana”.

A Hatfield Forest, do acervo de Oliver Rackham (1989), foi outro dos casos de estudo utilizados no presente trabalho. Este autor considera que as florestas inglesas são paisagens culturais pelas interacções do ser humano com a natureza, dando como exemplo o caso de HF, uma floresta com registos históricos que remontam a 9-10 séculos atrás, suportados, entre outros, em cartografia que permite analisar a sua evolução ao longo dos tempos.

Por outro lado o citado autor referiu que aquela floresta sempre foi caracterizada por disputas várias e que a história da sua gestão lhe permite afirmar que na sua manutenção e gestão futura se devem analisar antes os erros do que os sucessos do passado.

A existência de algumas semelhanças dos casos históricos entre a HF e a HC pode contribuir para se chegar ao conceito de paisagem de referência.

Com o recurso ao conceito de paisagem cultural, foram criadas em Portugal as paisagens

protegidas, para salvaguarda de áreas onde subsistiam aspectos característicos da cultura e

hábitos dos povos que evoluíram harmoniosamente com as características ecológicas.

A UNESCO subdividiu as paisagens culturais e, em relação ao património, estabeleceu as categorias de património cultural (monumentos, conjuntos de edifícios e sítios) e património

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natural (monumentos naturais, formações geológicas e fisiográficas e os sítios naturais) de valor universal excepcional e o património misto cultural e natural. Passou a considerar como

património mundial as Paisagens Culturais de Valor Universal Excepcional, tendo sido elaborada uma proposta para que a paisagem cultural do montado alentejano venha a ser considerada património mundial da UNESCO, como Bem Cultural Universal.

Neste sub-capítulo pretendeu-se tecer algumas considerações que vão além da consideração

de a paisagem não dizer só respeito à componente ambiental, mas também a aspectos sócio-

económicos e analisar a forma como alguns investigadores vêem o mundo à sua volta e a

influência que uma governança pode ter na paisagem.

Por outro lado, nas últimas dezenas de anos verificou-se uma significativa evolução em termos de conceitos, de formas de abordagem, do reconhecimento da importância da paisagem pela

sociedade e em termos da sua gestão, processo que culminou na publicação da CEP.

Além destes aspectos procurou-se também perceber que paisagens é que podem ser

consideradas de referência, através da pesquisa feita na bibliografia, nomeadamente sobre as paisagens simbólicas, concluindo-se que se encontrou um conjunto de razões para que

possam ser consideradas como tal:

- a história rica que envolveu a ocupação índia durante mais de 2000 anos comprovada arqueologicamente, pela coerência de exploração traduzida na forma sustentada de exploração dos recursos naturais em todo o território numa área desértica na Califórnia, a existência de alguns sítios rochosos considerados como sagrados ou como tendo significados sobrenaturais, aspectos culturais que envolviam simbolismo particular e histórico. Hoje poder-se-á considerar que Indian Wells/Coachella Valley no California Desert passou de paisagem simbólica do deserto da Califórnia nos EUA a símbolo de imoderação e de

desperdício ecológico;

- a identificação de alguns valores americanos de democracia, de comunidade, de religião em paisagens humanizadas de algumas áreas urbanas do O e S da Califórnia;

- a importância das áreas naturais para o povo americano serem consideradas como

paisagens icónicas da América e a particularidade de áreas naturais da região do Hudson

River Valley serem consideradas como a referência da cultura americana;

- o facto de as florestas inglesas terem sido consideradas como paisagens culturais e um dos casos descritos, a Hatfield Forest, ter uma história que envolve os diferentes actores, o Rei, proprietários, camponeses, uma gestão conflituosa e a existência de cartografia que permitiu acompanhar a sua evolução;

- a análise da evolução de uma paisagem e a valorização pela literatura de um caso, as Terras do Demo, que leva ao conceito de “território literário” e que a literatura, além de poder ser uma fonte de informação sobre as paisagens, pode ser um elemento a ter em conta na

gestão do território pois permite aprofundar a ligação entre a paisagem e a sua

representação.

Da sua classificação pode concluir-se o reconhecimento dessas paisagens pela sociedade em termos históricos, cénicos, de sustentabilidade e da atribuição de valor patrimonial.

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