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Paixão do conhecimento e a configuração de um novo estatuto da arte.

Capítulo I: Da emergência do eterno retorno à gênese de Assim Falava Zaratustra

1.2 A emergência do eterno retorno e a filosofia nietzschiana do segundo período 1 A estilística da existência

1.2.2 Paixão do conhecimento e a configuração de um novo estatuto da arte.

No aforismo 172 de Aurora, Nietzsche aponta para uma nova valorização da tragédia e da música com o renascimento futuro do espírito heroico. Como argumenta o filósofo, a tragédia se dirige “a almas duras e guerreiras, que dificilmente são vencidas, seja pelo temor, seja pela

91 Idem, p. 3

92 Cf. MACHADO, 1997, p. 146

compaixão, para as quais é vantajoso, porém, serem amolecidas (erweicht) de quando em quando (...)” (M/A§172). Os filósofos começam a lamentar a nocividade (Schädlichkeit) da tragédia numa época em que se tornam mais moles (weicher) e sensíveis (empfindsamer), como foi a época de Platão. Esta condição se agrava com o predomínio da sentimentalidade (Rührseligkeit) nos tempos modernos, quando desaparecem os “homens de disposição basicamente guerreira” (Männer in einer kriegerischen Grundverfassung des Gemüth). Nesse processo, o poeta trágico se torna superficial, perde sua função no interior de uma cultura, que é a de promover o amolecimento temporal das almas endurecidas. Nietzsche se questiona se esse fenômeno também não ocorre com a música, apontando para um futuro promissor para essas artes com o renascimento do ethos guerreiro em uma época que agora se inicia.

(...) Uma época cheia de perigos como a que agora começa, em que a bravura e a masculinidade sobem de valor, talvez torne gradualmente a endurecer as almas, a tal ponto que poetas trágicos lhes sejam necessários: mas enquanto isso eles são meio supérfluos – para ultilizar a expressão mais suave. – Também para a música talvez ainda venha época melhor (certamente a mais malvada!), quando os artistas deverão dirigir-se a homens severamente pessoais, duros em si, dominados pela sombria seriedade da própria paixão: mas de que serve a música a estas alminhas de hoje, demasiado volúveis, não desenvolvidas, semipessoais, curiosas e ávidas de tudo, almas de uma época que termina? (M/A§172).

Este renascimento do ethos heroico preconizado por Nietzsche está profundamente conectado à mudança que assistimos em seu pensamento acerca da ciência nesse contexto. Se em Humano, demasiado, humano o método científico se configura como um modelo de investigação crítica capaz de revelar os erros da metafísica, além de ser um elemento fundamental envolvido em uma terapêutica que objetiva o controle, a disciplina de si e a moderação dos afetos, em Aurora a ciência se torna uma paixão, a paixão do conhecimento (Leidenschaft der Erkenntniβ), o que obriga o filósofo a reavaliar seu compromisso com a integridade intelectual. Essa nova paixão é anunciada no aforismo 429 de Aurora. Diz Nietzsche:

O conhecimento em nós transformou-se em paixão que não vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão a sua própria extinção; nós acreditamos honestamente que, sob o ímpeto e o sofrimento dessa paixão, toda a humanidade tenha de acreditar-se mais sublime e consolada do que antes, quando ainda não havia superado a inveja do bem-estar grosseiro que acompanha a barbárie.

(M/A§429)94

Sob o ímpeto e sofrimento dessa paixão do conhecimento a humanidade se sentirá mais sublime do que antes, superará a inveja da felicidade grosseira do estado de barbárie. É a força do “impulso ao conhecimento” (Trieb zur Erkenntniss), que impossibilita que ainda estimemos a

felicidade sem conhecimento, que faz com que Nietzsche caracterize a volta à barbárie como um retrocesso e não o fato de que nesse estado os homens seriam menos felizes. O filósofo admite que a humanidade possa vir a perecer em nome dessa paixão, mas prefere que isso ocorra ao invés do

retrocesso do conhecimento; quea humanidade antes sucumba pela paixão do que pela fraqueza.

Ao longo do caderno de anotações M III 1 podemos observar o delineamento do campo de tensão entre a caracterização da ciência como paixão do conhecimento e o reconhecimento do erro como condição básica da vida, que envolve o pensamento de Nietzsche no período da elaboração de Aurora. Nesse contexto se torna significativo recuperarmos o debate do filósofo com um de seus principaís interlocutores na gestação e caracterização dessa nova paixão. Em Aurora, Nietzsche anuncia a transformação do conhecimento numa paixão que se sacrifica e nada teme a não ser sua própria extinção. Um interlocutor fundamental nessa caracterização é Stendhal, que em seu tratado Del’amour descreve os estágios nos quais se assiste o desenvolvimento da paixão amorosa, apontando principalmente para o fenômeno que torna possível a sua não extinção, a cristalização.

Segundo Stendhal, a primeira cristalização surge no quinto estágio de desenvolvimento da paixão, depois do nascimento do amor, o que ocorre no quarto estágio95. A cristalização é entendida como um “trabalho do espírito que extrai de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objeto amado possui novas perfeições” (STENDHAL, 2011, p.14). A cristalização vem da natureza, do sentimento de que os próprios prazeres aumentam na medida em que novas perfeições são descobertas, e também da ideia de que se possui o objeto amado. No entanto, esse homem, que tende a ver todas as perfeições no objeto amado, pode ter sua atenção distraída e, então, nasce a dúvida, o sexto estágio, onde o amante se questiona acerca da promessa de felicidade que o envolvia. “O amante chega a duvidar da felicidade que se prometia; ele se torna severo em relação às razões de esperança que imaginava ver.” (idem, p.15). Por isso, é a segunda cristalização que é decisiva, pois manifesta a resistência à dúvida96. A primeira cristalização ainda não havia passado pelo desafio da dúvida, por isso ela, por si só, não garante a duração da paixão amorosa. Como diz Stendhal: “O que assegura a duração do amor é a segunda cristalização, durante a qual se vê a cada instante que se trata de ser amado ou de morrer.” (idem, p. 17). A cristalização raramente cessa no amor, mesmo quando não se está seguro com quem se ama ocorre

95 Em seu tratado sobre o amor, Stendhal apresenta sete estágios de desenvolvimento da paixão amorosa. O primeiro estágio é a

admiração, o segundo é aquele que envolve o reconhecimento de um prazer físico, no qual falamos “Que prazer dar-lhe beijos, recebê-los, etc.!”, o terceiro é a esperança, na qual estudamos as perfeições do objeto amado, momento no qual deve ocorrer a entrega a um maior prazer físico possível que conduz, no entanto, ao quarto estágio, no qual assistimos ao nascimento do amor. Stendhal define nesse estágio o amar: “Amar é ter prazer em ver, tocar, sentir através de todos os sentidos, e tão perto quanto possível, um objeto amável e que nos ama.” (STENDHAL, 2011, p.13). A partir de então, no quinto estágio, se inicia a primeira cristalização, conceito-chave desenvolvido pelo autor nesse tratado.

96 Nesse sétimo estágio o amante confirma a ideia de que tanto o amado lhe ama como também que possui todas as perfeições. É a

“evidência dessa verdade”, é esse “caminho na beira de um precipício terrível”, a resistência ao abismo da dúvida, que faz com que a segunda cristalização seja superior à primeira.

uma cristalização em “solução imaginária”. O papel da imaginação é fundamental para que se esteja certo de que as perfeições existem no objeto amado. A partir de então basta ter a ideia de perfeição para vê-la naquele ou naquela que se ama. A imaginação é, então, decisiva na cristalização. Tudo o que tolhe a imaginação trabalha contra a cristalização. É devido à imaginação que a cristalização faz durar a paixão amorosa. Como argumenta Stendhal, a razão ética para que o amor seja a paixão mais forte se encontra no fato de que, diferentemente de outras paíxões, os desejos não se acomodam à fria realidade; ao contrário, é a realidade que se modela segundo os desejos:

A partir do momento em que ama, o homem mais sábio já não vê nenhum objeto tal como é. Ele exagera para menos suas próprias vantagens e para mais os menores favores do objeto amado. Ele nada mais atribui ao acaso; perde o sentimento da probabilidade; algo imaginado é algo que existe efetivamente em sua felicidade. (STENDHAL, 2011, p. 29-30).

Se a paixão do conhecimento nada teme a não ser sua própria extinção, devemos nos questionar até que ponto Nietzsche aceita a “solução imaginária” promovida pela cristalização, como forma de fazer progredir e durar essa paixão, até que ponto o filósofo encontra na imaginação um meio para evitar a não extinção dessa paixão, conforme apresentada por Stendhal. Em um fragmento do inverno de 1880-1881, Nietzsche diz: “Mas se deixamos que nossas paíxões cresçam, com elas crescerá também, como sabemos, a “cristalização”: diriaque deixaremos de ser honrados e que nos entregaremos voluntariamente ao erro?” (KSA 9 8[40]). Se por um lado a transformação do conhecimento em paixão permite a Nietzsche refutar seu pretenso ideal de neutralidade, afirmando que sua motivação se encontra na satisfação de certos desejos, afetos e pulsões, por outro, a cristalização, que segundo Stendhal é a responsável pela duração da paixão, quando aplicada à paixão do conhecimento, conduziria a abrir mão, ou pelo menos a relativizar o papel representado pela busca da verdade no conhecimento, em nome da não extinção dessa paixão. A transformação da ciência numa paixão obriga Nietzsche a rever seu compromisso com a integridade intelectual. Diz Stendhal: “O amante chega velozmente a achar bela a sua amante tal como ela é, sem pensar na verdadeira beleza” . Ver a amante tal como ela é, significa, como já dito, vê-la com os ornamentos atribuídos pela imaginação. O papel crucial que Stendhal dispensa à cristalização na duração da paixão amorosa vem de encontro à suspeita nietzschiana em relação à imaginação, seu caráter superficial e enganoso, sua capacidade de produzir ficções, que, no ambiente de Aurora e Gaia Ciência se radicaliza ainda mais na medida em que passa a ser entendida a partir das disposições básicas e estruturantes da vida orgânica, diretamente envolvida na simplificação e na assimilação que tornam possível a conservação desse modo de vida, disposições nas quais o filósofo encontra as raízes do erro. Dessa forma, fazer progredir a paixão

do conhecimento requer se posicionar diante do erro, gerador das condições que tornam a vida possível. No contexto de elaboração de Aurora, Nietzsche se questiona: deixar que as paíxões cresçam até se cristalizarem significa uma entrega voluntária ao erro? Essa entrega fere a integridade intelectual?

No caderno de anotações M III 1, como vimos, podemos observar a tentativa do filósofo em conciliar a paixão do conhecimento com uma espécie de realismo, na qual pensa a dissolução do conhecedor nas próprias coisas como outra forma de desdobramento dessa paixão, distinta da conversão do mundo no espírito. Nessa rota, um dos principaís sacrifícios impostos por essa paixão é o sacrifício do eu97 . Ao tornar possível esse desprendimento do eu, a ciência se torna uma paixão que se volta às próprias coisas: “Agora é possível perder esse interesse apaíxonado por nós e descarregar a paixão fora de nós, até as coisas (ciência)” (KSA 9 7[158]). Esse panorama nos conduz ao próprio ambiente das primeiras anotações de Nietzsche no caderno que o acompanhava no contexto de emergência do pensamento do eterno retorno. Como vimos, esse caderno é aberto com o embate nietzschiano com o “ego fantástico”, com um chamamento a superação do eu e do tu num sentir cósmico, ao querer conhecer as coisas como são. No entanto, o empenho de ir além das considerações pessoais, logo muda de rota. Como vimos no fragmento 11[65], Nietzsche afirma que o meio para ver as coisas como são é “vê-las como as vêem cem olhos, muitas pessoas”. Porém, o filósofo prossegue seu embate com a concepção moderna do eu98.

A tensão que envolve a transformação da ciência em uma paixão do conhecimento atravessa as reflexões nietzschianas no contexto de aparição do pensamento do eterno retorno e marca a forma como inicialmente se configura. Se a tese cosmológica aponta para uma espécie de realismo, afirmar o eterno retorno exige um ethos guerreiro, heroico, indiferente às condições básicas que tornam a vida possível. Porém, no itinerário descrito pelo pensamento nietzschiano no caderno de anotações, podemos vislumbrar em sua considerações acerca da paixão do conhecimento, uma avaliação de seus efeitos sobre a vida, o que conduz o filósofo, por fim, a uma descoberta na qual já podemos identificar a presença de novos elementos que ganharão espaço de formulação em Gaia Ciência. Diz Nietzsche:

97 Em vários fragmentos do final de 1880, podemos observar o filósofo se referindo a um processo de despreendimento ou até

mesmo reivindicando uma atitude de indiferença em relação ao eu. Cf. KSA 9 7[102,126 e181] como exemplos dessa atitude.

98 O filósofo defende que o eu é uma ficção criada pelo próprio pensamento para poder pensar, pois não sendo possível pensar o

devir, a crença na permanência do eu, numa substância, se torna uma condição para o próprio pensar. Alexander Nehamas defende que o problema do eu se encontra no centro das discussões que envolvem o pensamento do eterno retorno. Segundo o intérprete, em termos filosóficos o recurso nietzschiano ao eterno retorno não requer que a tese cosmológica seja certa e coerente, pois justamente “os defeitos desta teoria empenharam a vertente mais coerente e interessante que Nietzsche escreve sobre estas questões: a implicação psicológica que deriva do eterno retorno e a aplicação da mesma à sua própria existência.” (NEHAMAS,2002, p.183). Para o autor de Nietzsche, life as literature, o eterno retorno é uma concepção do próprio eu e não uma teoria do universo.

Viver é condição para conhecer. Errar é a condição da vida, e errar, certamente, no mais profundo. Saber do erro não o elimina! Não é para amargurar-se! (...) Descobrimos assim que também aqui são condições de vida para nós uma noite e um dia: querer- conhecer e querer-errar são a maré baíxa e a maré alta. Se domino uma delas em termos absolutos, afunda-se o homem; e também a capacidade.(11[162]).

Se errar é condição de vida, é necessário dar à existência uma significação estética, sendo esta, como argumenta o filósofo, a condição fundamental de toda paixão do conhecimento. A arte entendida como cuidado da ilusão torna-se um contrapeso necessário à paixão do conhecimento, pois se deve equilibrar o querer-conhecer (Erkennen-wollen) com o querer-errar (Irren-wollen), posição que ressoa em sua próxima obra. No aforismo 107 de Gaia Ciência, intitulado “Nossa derradeira gratidão para com a arte”, Nietzsche afirma, em um tom muito próximo ao que escreve no caderno de anotações:

Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não- verdadeiro, a percepção da inverdade e mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência – da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente e sensível -, seria intolerável para nós.(FW/GC§107).

Logo nas primeiras páginas de Gaia Ciência, Nietzsche reafirma seu compromisso com a integridade intelectual99, mas agora compreende a necessidade de que a arte se torne necessariamente um complemento da ciência, para que sejam evitadas as consequências maléficas e negativas para a vida das exigências impostas pela retidão. A arte como “a boa vontade de aparência” (guten Willen zum Scheine), faz com que a retidão possua uma “força contrária” (Gegenmacht), que ajuda a evitar tais consequências. Nesse ambiente, onde culmina a depuração nietzschiana da metafísica de artista, o filósofo retoma a caracterização da existência como fenômeno estético (ästhetisches Phänomen): “Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte são nos dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno.” (FW/GC§107). Nietzsche argumenta que periodicamente é necessário descansar de nós mesmos “olhando-nos de cima e de longe” e dessa distância artística (künstlerischen Ferne) “descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento”, pois alegrar-se de vez em quando com nossa estupidez é necessário para poder “continuar nos alegrando com a nossa sabedoria” (idem). Devemos colocar sobre nós o “chapéu de bobo” e rir de nós mesmos, por isso precisamos de “toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós” (idem). Dessa forma, como argumenta o filósofo, é possível evitar o retrocesso que representa uma recaída na moral devido às “severas exigências” da integridade intelectual. Ao final do aforismo, Nietzsche faz um chamamento aos seus

interlocutores afirmando que é necessário perder a vergonha de si, pois enquanto isso não ocorrer “não serão ainda um de nós”. Cumpre destacar também que, se no caderno de anotações Nietzsche incita a “ver as coisas como são”, nesse aforismo de Gaia Ciência afirma que o seu ideal requer “a liberdade de pairar acima das coisas”.

Ao longo do segundo período da produção nietzschiana emerge uma nova configuração das relações entre arte e vida. Depois de preconizar o fim melancólico da grande obra de arte em Humano, demasiado, humano, o filósofo, como já mencionado, anuncia em Miscelânea de Opiniões e Sentenças uma nova espécie de arte, a vida, para a qual a arte das obras de arte é um mero apêndice. Podemos dizer que assistimos então a uma aproximação e até mesmo um imbricamento entre a compreensão que o filósofo desenvolve da atividade artística e a concepção de vida orgânica como erro. Se a arte exibe uma boa vontade com relação às aparências é porque através dela a vida enquanto erro não é negada, na medida em que se reconhece em suas disposições básicas e estruturantes uma atividade similar à do próprio artista criador, o impor formas, entendido como uma atividade de deformação, falsificação, simplificação, através da qual se busca exercer domínio sobre o caos, sobre o informe. Nesse sentido a ideia nietzschiana de que a arte deve ser um contrapeso às exigências de integridade intelectual requer ser vista também à luz da reorientação estética sofrida pelo pensamento de Nietzsche ao longo do segundo período.

É importante observar que no aforismo que encerra o livro II de Gaia Ciência, Nietzsche não somente afirma que é como fenômeno estético que a existência ainda é suportável, mas também que por meio da arte podemos tornar nós mesmos esse fenômeno. No caderno de anotações, Nietzsche incita ao amor pela ciência para além de sua utilidade, porém reconhece que ela seria

um meio para a transformação do homem em um artista inaudito (unerhörten). “Amar a ciência

sem pensar em sua utilidade! Ainda que possivelmente seja um meio para fazer do homem um artista em um sentido inaudito!” (11[23]). A ideia da transformação do homem em um artista criador de si mesmo através da ciência aparece no livro IV de Gaia Ciência no elogio nietzschiano a física.

Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos! E para isso temos que nos tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que é normativo e necessário no mundo: temos de ser físicos, para podermos ser criadores neste sentido – enquanto que até agora todos os ideais e valorações foram construídos com base na ignorância da física ou em contradição a ela. Portanto: Viva a física! E viva sobretudo o que a ela nos compele –

nossa retidão. (FW/GC§335).

Como argumenta o filósofo, para se tornar criador de si mesmo é necessário ser um descobridor e aprendiz de tudo que é necessário e normativo no mundo, sendo que é a Física e

não a moral que possui o papel primordial nessa descoberta e aprendizado. O aprimoramento da observação de si conduz à construção de novos ideais e valores que não estejam em contradição com a Física, que não sejam criados devido à sua ignorância. Ao destacar esse papel primordial da Física, o filósofo exalta ao mesmo tempo o que o conduz a essa ciência, a retidão intelectual, e o que ela torna possível, a criação de si mesmo. A partir da análise dos elementos envolvidos na emergência do eterno retorno, podemos dizer que, apesar de não ser mencionado, esse aforismo de Gaia Ciência pode ser tomado como uma chave de leitura para a compreensão da importância e do papel atribuído por Nietzsche a esse pensamento nesse contexto, de seu envolvimento na construção desse novo modo de descoberta e de aprendizado do necessário e normativo que se desdobra numa estilística da existência. O livro IV de Gaia Ciência nos permite identificar a emergência de novos elementos no pensamento nietzschiano que já não se harmonizam perfeitamente com o ambiente de sua obra anterior.

Segundo Salaquarda, em Gaia Ciência, Nietzsche “leva a termo seu projeto de Ilustração,