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Zaratustra e o caso Wagner: uma possibilidade de leitura.

Capítulo II O cenário dramático de emergência do eterno retorno em Assim Falava

2.2. Zaratustra e o caso Wagner: uma possibilidade de leitura.

Richard Wagner é tratado no interior da obra nietzschiana, do início ao fim, como um personagem central do mundo moderno. Se em O nascimento da tragédia, o músico se afigura como o responsável pelo renascimento da obra de arte trágica na modernidade, em Humano, Demasiado Humano, obra que representa uma viragem na filosofia nietzschiana marcada pela ruptura com os seus mestres de juventude, Wagner é o alvo oculto da identificação de uma tendência regressiva na modernidade179. No último período da produção nietzschiana, o músico de Bayreuth é tomado como exemplo maior daquilo que o filósofo descreve como décadence, fenômeno através do qual faz uma radical avaliação da degeneração da cultura moderna a partir da caracterização do fenômeno do niilismo. Podemos dizer que nenhuma personalidade mobilizou tanto a atenção de Nietzsche ao longo de sua produção como Richard Wagner, o que pode ser observado pelo grande número de páginas que dedicou ao músico em sua obra publicada e também no material não publicado. Para ficarmos restritos ao material publicado, Nietzsche dedicou dois livros ao compositor do Anel dos Nibelungos, a quarta extemporânea Richard Wagner em Bayreuth e O Caso Wagner, um livro onde ocupa um papel central, O nascimento da tragédia, e uma coletânea de escritos publicada no final de sua vida lúcida, Nietzsche contra Wagner, onde procura recuperar o histórico de sua ruptura com o músico, organizando o material que escrevera sobre o tema a partir de Humano, demasiado humano, além de diversas passagens disseminadas em outras obras. Dessa forma, é necessário levar em consideração os argumentos nietzschianos quando, ao fim de sua vida lúcida, afirma que Wagner expressa a linguagem mais íntima da modernidade.

Outros poderão passar sem Wagner; mas o filósofo não pode ignorá-lo. Ele tem de ser a

má consciência do seu tempo – para isso, precisa ter a sua melhor ciência. Mas onde

encontraria ele um guia experimentado no labirinto da alma moderna, um eloquente perito da alma? Através de Wagner, a modernidade fala sua linguagem mais íntima: não esconde seu bem nem seu mal, desaprendeu todo pudor. E, inversamente, teremos feito quase um balanço sobre o valor do moderno, se ganharmos clareza sobre o bem e o mal em Wagner. – Eu entendo perfeitamente, se hoje um músico diz: “Odeio Wagner, mas não suporto mais outra música”. Mas também compreenderia um filósofo que dissesse:

“Wagner resume a modernidade. Não adianta, é preciso primeiro ser wagneriano... (WA/CW “Prólogo”).

Wagner se apresenta para Nietzsche como um guia para quem deseja penetrar nos labirintos mais íntimos da alma moderna, um guia que nenhum filósofo pode ignorar. A partir disso, defenderemos que a compreensão nietzschiana da trajetória do criador do Anel é uma chave de leitura para a própria trajetória de Zaratustra e para a configuração do cenário dramático no qual o eterno retorno é enunciado. Essa proposta de leitura é sugerida pelo próprio filósofo quando em Ecce Homo, seguindo os mesmos argumentos apresentados na Tentativa de Autocrítica para O nascimento da tragédia, afirma que sua quarta extemporânea é a prova mais forte de que aquilo que havia escutado na juventude e descrito como música dionisíaca era o que “instintivamente, tudo traduzia (übersetzen) e transfigurava (transfiguriren) no novo espírito” que trazia consigo, o

qual não tinha qualquer relação com a música wagneriana.

A prova disso, forte como só uma prova pode ser, é o meu ensaio “Wagner em Bayreuth”: em todas as passagens de relevância psicológica é de mim somente que se

trata – pode-se tranquilamente colocar meu nome ou “Zaratustra” onde no texto há o

nome de Wagner. Toda a imagem do artista ditirâmbico é a imagem do poeta preexistente do Zaratustra, desenhada com abismal profundidade e sem tocar sequer um instante a realidade wagneriana. (...) Mesmo psicologicamente todos os traços decisivos de minha própria natureza são inscritos na de Wagner - o coexistir das forças mais luminosas e mais fatídicas, a Vontade de Poder, como homem nenhum a possui, a valentia inconsiderada nas coisas do espírito, a ilimitada força. (EH/EH “O nascimento da tragédia” § 4)180

Em Ecce Homo, Nietzsche reivindica a substituição do nome de Wagner da quarta extemporânea pelo seu próprio nome ou pelo de Zaratustra. Essa afirmação é extremamente significativa, pois tanto essa obra publicada em 1876 como Assim Falava Zaratustra e também sua autobiografia apresentam, cada qual a seu modo, uma trajetória, ou nas palavras utilizadas pelo próprio filósofo, em sua derradeira obra publicada, como alguém se torna o que é, mesmo que seja, no caso de Zaratustra, um personagem explicitamente fictício. Se colocarmos em prática essa sugestão apresentada por Nietzsche em Ecce Homo e substituirmos o nome de Wagner pelo de Zaratustra, podemos encontrar paralelos significativos que, sem dúvida, nos oferecem chaves de leitura para a compreensão da narrativa, e até mesmo acerca da relação do personagem com seu

180 No prefácio escrito à Humano, demasiado humano II, onde afirma que suas obras devem ser entendidas como resultantes da

elaboração de vivências anteriores que foram superadas, Nietzsche diz que Richard Wagner em Bayreuth no fundo era uma homenagem e gratidão a uma parte do seu passado, a “mais bela e também mais perigosa calmaria” de sua trajetória, na verdade um “desprendimento, uma despedida”. No entanto, Nietzsche reivindica que a partir de então se tornou um observador da obra wagneriana, o que requer colocar-se a distância, o que é impossível quando ainda se ama aquilo que se observa. O filósofo faz referência a uma passagem de sua quarta extemporânea para exemplificar suas palavras. Essa passagem se encontra no início da seção 7, onde afirma que o observador da arte wagneriana é conduzido de tempos em tempos a um confronto consigo mesmo. O observador ao “sucumbir aparentemente” diante da natureza expansiva e transbordante de Wagner, participa de sua força e “se torna de algum modo poderoso através dele e contra ele”. A arte wagneriana possibilita compartilhar “outras almas e seus destinos” e aprender “a olhar o mundo com muitos olhos”, sendo que, diante desse estranhamento e distância de si próprio, nos “tornamos capazes, depois de ter vivido o que ele é, de vê-lo no que ele é”. Nietzsche reivindica dez anos depois que neste momento de sua produção deixou de ser um amante e entusiasta da arte wagneriana e, superando o encanto juvenil inicial, passou a ser então um observador altamente capacitado por ter vivido o que Wagner é, a vê-lo agora no que ele é.

autor. A vida de Wagner181 nos apresenta “a gradual revelação do dramaturgo ditirâmbico”182 e esse processo significou também uma “incessante luta consigo próprio” (WB/Co. Ext. IV, 8), assim Nietzsche descreve na quarta extemporânea como o músico se tornou aquilo que é. Enquanto este dramaturgo não se constituiu no único elemento de sua natureza, essa luta se torna cada vez mais dilacerante. Nesse ensaio, o filósofo afirma que o compositor de Bayreuth possui uma relação contraditória com o mundo, por um lado espanto e estranhamento, de outro lado um “impulso nostálgico de se aproximar desse mundo como amante” (idem). Segundo Nietzsche, quando Wagner atinge “a maturidade espiritual e moral” inicia-se o drama em sua própria vida183,

apresentando-o como uma natureza dividida em dois “impulsos”(Triebe) ou “esferas” (Sphären)

distintas, traço psicológico fundamental e marcante de sua compreensão da trajetória do músico, como um artista perpassado por contradições. A primeira esfera é caracterizada por uma vontade que “quer chegar, por todos os caminhos, por todas as cavernas, por todas as gargantas, à luz e aspira ao poder (Macht)” (idem). Devido a essa vontade impetuosa que aspira ao poder, Wagner

poderia ter se tornado um homem perverso. Porém, na música e no conjunto dos personagens criados pelo artista podemos observar, segundo o filósofo, uma “corrente subterrânea de enobrecimento e purificação moral” (idem) que caracteriza a outra esfera da natureza de Wagner, um homem movido pelo mais puro amor. Em todas as suas obras encontramos uma “série quase completa de todas as formas possíveis de fidelidade (Treue)” (idem). Essa esfera criadora,

luminosa, inocente, marcada por esse amor puro, pela purificação moral, que se expressa em sua obra, manteve-se fiel à vontade impetuosa, tirânica, indomável, que anseia pelo poder.

Wagner é caracterizado então como um homem dilacerado pela tensão entre sua vontade de exercer poder e a lealdade com sua obra, pois o músico não era somente este dramaturgo ditirâmbico, mas também um homem que “abrigava em si um poderoso demônio de contradição”

(WB/Co. Ext. IV, 8). Wagner é movido por uma vontade pessoal de poder e glória e encontrou no

teatro o meio para “alcançar de uma só vez aquele poder tirânico para o qual o impelia um obscuro impulso” (idem), porém a vontade de exercer poder colocava-o em uma situação difícil diante de sua arte, pois obrigava a fazer concessões ao auditório moderno. O músico passou a pesquisar e a se utilizar de todos os meios artísticos capazes de produzir efeitos e sondar aqueles que poderiam ser seus ouvintes e espectadores, dirigindo seu olhar então à grande ópera, gênero musical de

181 Para a redação de Richard Wagner em Bayreuth, Nietzsche se utilizou de vários escritos autobiográficos e teóricos do músico,

inclusive da própria autobiografia de Wagner que ajudou a corrigir entre 1869 e 1870.

182 Todas as passagens citadas do texto de Richard Wagner em Bayreuth em português são referentes à tradução de Anna Hartmann

Cavalcanti.

sucesso no período184. Porém, logo o músico reconheceu o seu erro inicial e passou a ser um “crítico do “efeito”” (Kritiker des „Effectes“), vislumbrando a inautenticidade da arte e do público moderno. O impulso wagneriano de exercer poder passa então a seguir outro caminho, reconhecendo no “povo que cria poéticamente” (dichtende Volk) o “único artista existente”

(WB/Co. Ext. IV, 8). Wagner se torna então um “revolucionário da sociedade” (Revolutionär der

Gesellschaft) por compaixão (Mitleid) pelo povo, do qual foram alijados seus mitos e sua música, procurando através do teatro restituí-los e com isso salvá-los da decadência da cultura moderna, encontrando uma profunda identidade entre seu sofrimento e o do próprio povo. “Assim sua reflexão se concentrou em torno da questão: como nasce o povo? E como ele renasce?” (idem). Apesar de encontrar uma profunda afinidade entre suas necessidades e as do povo, que encontram satisfação no mito e na música, procurando dar-lhes uma forma de expressão através do drama, o povo não atendeu ao chamado wagneriano. A novidade das obras de Wagner suscitou uma série de questionamentos que o músico tentou responder através de seus escritos teóricos185. Porém, como um “revolucionário da sociedade”, Wagner somente encontrou o fracasso, sua “obra de arte parecia uma comunicação com surdos e cegos, e seu povo, uma quimera.”(idem). Nessa situação, o músico é obrigado a recorrer a “formas e meios de expressão artísticos mais tradicionais” para ser compreendido, formulando suas ideias “em uma linguagem que lhe era meio estranha, embora fosse familiar a seus ouvintes” (idem). Assim como o músico de Bayreuth, Zaratustra no início de sua jornada também é um revolucionário que encontra no povo seu espectador ideal, um solitário que “ansiava pela comunidade”(idem), que procura comunicar-se com o povo e se depara com o fracasso dessa empreitada.

Nietzsche faz uma profunda reflexão sobre a cultura moderna, solo onde germinou a arte wagneriana, para localizar os elementos que são responsáveis pelo drama enfrentado pelo músico, que fatalmente o condenava à solidão e ao fracasso. Wagner é uma figura que vive um intenso conflito entre sua natureza criativa, amorosa, inocente, pura, e sua vontade de dominar, conflito que envolve uma discussão acerca da própria linguagem, da comunicação e da recepção de sua

184 A grand opéra parisiense se tornou o genêro dominante na década de 1830, composta geralmente de quatro ou cinco atos,

contendo um luxuoso recurso cênico, efeitos especiais, além de um grande elenco e orquestra. Giacomo Meyerbeer foi um de seus principais nomes. Os atos I e II de Rienzi imitam a ópera italiana e a grand opéra parisiente, mas os atos III e IV já apresentam evidentes sinais de distanciamento desse gênero, o que já aponta para a linha de desenvolvimento futuro em direção ao drama musical que seguiria a obra de Wagner. O compositor do Anel polemiza com Meyerbeer em Ópera e Drama defendendo que o único princípio dominante na grand opéra francesa é o “efeito” superficial e calculado. Wagner afirma que a ópera de Meyerbeer apresenta efeitos (Effekt) sem causas; a conjunção entre as situações dramáticas, o espetáculo cênico, o balé, o coro, a exibição vocal, são destinados apenas à produção de impressionantes efeitos musicais e visuais sem qualquer causa poética ou dramática legítima. Cf. MILLINGTON, 1995, p. 257

185 Cf. KSA 8 11[32]. Como afirma o filósofo, foi a necessidade que impôs a Wagner a tarefa de escrever trabalhos teóricos, tendo

em vista o grau de confusão que suas obras suscitavam. Nietzsche reivindica ainda, nesse contexto, que os escritos teóricos do músico merecem ser mais lidos e explicados nas escolas e universidades do que os escritos estéticos de Schiller, chegando a ponto de dizer que são os escritos estéticos mais importantes que existem. Como diz o filósofo no período de elaboração de sua quarta extemporânea, as obras teóricas de Wagner são um “meio excelente para exercitar-se em uma das tarefas mais belas, a de seguir a um grande artista em seu devir...”.

arte pela cultura moderna. Essa luta consigo mesmo, esse conflito entre estas duas porções de sua natureza, é um dos aspectos mais significativos da descrição nietzschiana do músico de Bayreuth na quarta extemporânea. Vitimado por esta batalha e pelos sucessivos fracassos de seus destinos interiores e exteriores, como descreve Nietzsche, Wagner poderia ter todos os elementos para se tornar um artista ressentido, o que, no entanto, não ocorreu. Esse período revolucionário é caracterizado como um momento intermediário em sua trajetória, uma transição na direção da verdadeira realização e apoteose da arte wagneriana, quando esta encontra seu verdadeiro caminho, quando Wagner deixa de ser o redentor do povo e passa a ser o redentor de si mesmo. Nessa transição, o músico deixa de identificar seu sofrimento com o do povo e “mergulha mais uma vez seu olhar cósmico nas profundezas, alcançando dessa vez o fundo: lá ele vê o sofrimento na essência das coisas e, a partir de então, tornando-se mais impessoal (unpersönlicher), toma para

si com mais serenidade sua parte de sofrimento.” (idem). O anseio pelo poder “herdado dos seus estados anteriores” se transforma em criação artística e, através de sua arte, Wagner passa a dialogar consigo mesmo, e não mais com um público ou um povo, lutando por torná-la cada vez mais clara e adaptá-la a esse diálogo interno. O músico não mais se preocupa em facilitar a compreensão de sua obra, recorrendo para isso a meios expressivos que lhe eram estranhos, agora quer somente “se entender consigo próprio, pensar sobre a essência do mundo nos acontecimentos, filosofar em sons: o que restou de intencional nele tinha em mira as apreensões últimas”186. Conforme afirma Nietzsche, essa mudança wagneriana vem à tona em Tristão e

Isolda, caracterizada pelo filósofo nesse momento como “o verdadeiro opus metaphysicum de toda arte”, uma obra “apropriada ao mistério do qual fala: o estar morto em vida, o ser um na dualidade” (idem). A partir de então, a arte wagneriana passa a se mostrar como “deliciosa bebida a todos aqueles que na vida sofreram profundamente e que a ela retornaram com o sorriso do

convalescente (Genesenden)” (idem). Wagner passa a renunciar ao poder com amor e não mais

recua de terror diante dele.

A figura de Wagner, apresentada por Nietzsche em meio à decadência da cultura moderna, diante da perda dos instintos mais fundamentais da humanidade, é também, a figura de um homem extemporâneo preocupado em salvar sua obra da própria degeneração do público e das instituições modernas, preocupação que o levou à construção de Bayreuth, o teatro que materializa a profunda reforma social, que traduz a própria essência da arte wagneriana, que inclui a regeneração da própria linguagem através da música. O “pensamento de Bayreuth” (Gedanken von Bayreuth) é a culminância da vontade do músico em encontrar um abrigo para resguardar sua obra da falta de

186 “[...] sich mit sich verständigen, über das Wesen der Welt in Vorgängen denken, in Tönen philosophiren; der Rest des

autenticidade do homem moderno, de salvar sua arte da desfiguração. Aparecem então os amigos, que apesar de estarem ainda distantes do povo que Wagner almejava fundar, podem ser tomados como “a primeira fonte viva de uma sociedade verdadeiramente humana que se realizaria num futuro distante” (idem). Além de Wagner, estes amigos também sentem a necessidade de proteger sua obra e assim conduzi-la a este futuro. Porém, o músico não assiste a esse processo de maneira passiva, não poupando esforços em ensinar e tornar público como sua obra deveria ser executada, lutando contra sua desfiguração na medida em que é incorporada pelo teatro moderno. Wagner sentiu um profundo desgosto pelo teatro quando descobriu sua relação com o caráter do homem moderno, o que explica a sua dificuldade com relação a este ensinamento.

Como afirma Nietzsche, um “sopro trágico” se encontra presente em todo desdobrar da vida de Wagner, sua obra é uma “reminiscência onírica” do que foi sua “existência heróica”

(heldenhafte Dasein) (idem). Em Richard Wagner em Bayreuth, Nietzsche afirma que a arte “é

sobretudo a capacidade de comunicar ao outro o que foi vivido” (WB/Co. Ext. IV, 8), sendo que a grandeza do compositor do Anel se encontra justamente na “comunicabilidade daimônica de sua natureza” através de suas obras, que comunicam suas “vivências mais íntimas” com a “máxima clareza” em todas as línguas (idem). Como um dramaturgo ditirâmbico moderno, cuja arte somente pode ser comparada com a de Ésquilo, Wagner se apresenta como um reformador da língua e como um artista dotado de uma capacidade sobre-humana de comunicação, capaz de fazer com que seus ouvintes participem de sua própria natureza. A quarta extemporânea nos mostra então a transformação de um revolucionário da sociedade num dramaturgo ditirâmbico e nos oferece uma chave de leitura para o itinerário de Zaratustra, se levarmos em consideração o prosseguimento da narrativa, principalmente no segundo e terceiro livro. Podemos encontrar traços do primeiro Zaratustra que correspondem à figura de Wagner descrita na quarta extemporânea, no entanto não há nenhum dado textual que remeta à figura do poeta ditirâmbico, o que só ocorre a partir dos cânticos da segunda parte. Zaratustra também se configura no início de sua jornada como um revolucionário que fracassa em sua tentativa de comunicar-se com o povo e, diante disso, passa a procurar por companheiros de criação. Além disso, como veremos mais a frente, podemos encontrar também na análise nietzschiana do caráter extemporâneo da arte wagneriana significativos paralelos com a teleologia presente no projeto de criação do Além do Homem. No entanto, a leitura da trajetória de Zaratustra a partir do percurso de Wagner, conforme sugere Nietzsche em Ecce Homo, ganha significado se considerarmos a articulação da primeira com as outras partes da obra, o que, por sua vez, condiz com as reivindicações de seu autor acerca da unidade da obra. Porém, é necessário levar em consideração também, apesar do filósofo afirmar

posteriormente que a quarta extemporânea representa já um distanciamento crítico com relação a Wagner187, que entre este ensaio e Ecce Homo ocorrem mudanças na forma de compreender a

própria trajetória do músico, principalmente em relação à sua adesão à filosofia de Schopenhauer. A trajetória de Wagner descrita na quarta extemporânea é bem reveladora de como Nietzsche compreendia naquele contexto essa adesão, apesar desse episódio marcante não ser tomado explicitamente como uma das questões centrais do ensaio.

A reavaliação posterior que Nietzsche faz da trajetória do músico está diretamente ligada a uma mudança na interpretação de seu encontro com o pensamento de Schopenhauer, que marca a história de sua amizade com Wagner. Como destaca Roger Hollinrake, apesar de ter absorvido Schopenhauer no começo da década de 1850, Wagner não fez nenhum reconhecimento oficial do