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Panorama da política de saúde nos anos noventa: do direito conquistado à perversa realidade

No documento PUC SP São Paulo, 2009 (páginas 54-60)

A Saúde no Brasil: a contra-reforma do Estado e a criminalização do aborto

Capítulo 1: A Política de Saúde no Brasil

3. Panorama da política de saúde nos anos noventa: do direito conquistado à perversa realidade

Os anos noventa no Brasil foram marcados pelo êxito ideológico do projeto neoliberal32. Estratégia de rearticulação do capital ao nível planetário após 1973, ele traz consigo a defesa de um Estado mínimo para as questões do social e promove também uma reestruturação do mundo do trabalho, onde a precarização das conquistas sociais e trabalhistas são revistas ou postas em cheque (Tavares Soares, 1999).

O governo de Fernando Collor de Mello foi o primeiro a tentar implementar o projeto neoliberal no país. Entretanto, ele foi deflagrado, de fato, desde o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). A política neoliberal de Collor foi de desmonte do pouco que existia de serviços sociais ou política social, do qual a destruição da LBA é

32 Como afirma Perry Anderson (1996), o neoliberalismo em nenhum lugar do mundo cumpriu a promessa de

ativar o crescimento econômico. Ao contrário, aumentou a pobreza. Contudo, conseguiu um efeito único, que foi o êxito ideológico que se expressa pela aparente falta de alternativas, gerando, assim, um consenso.

exemplo paradigmático. Na saúde, Collor evitou o máximo que pôde a constituição do SUS. A Lei 8.080/90 sofreu diversos vetos presidenciais, quase todos referentes à participação popular e ao financiamento. Mais à frente foi aprovada a Lei 8.142/90 que busca corrigir essa lacuna. Por isso, ambas são conhecidas como “Lei Orgânica da Saúde”.

Mergulhado em diferentes denúncias de corrupção, Collor é afastado da presidência e assume o poder o seu vice, Itamar Franco. O governo Itamar é marcado por uma conjuntura sanitária favorável (Paim, 1998). Contudo, Franco pouco inovou efetivamente na política social. Ao contrário, é em seu governo que é criado o plano real, que foi um celeiro para a posterior eleição do seu ministro da fazenda, Fernando Henrique Cardoso.

Numa análise que já realizamos sobre a década de noventa (Matos, 2000; Bravo e Matos, 2001) afirmamos que no Brasil existem duas inflexões que são fundamentais. A primeira é o plano real – que mais que, a eleição de FHC, possibilitou a coalizão de forças necessária para a implementação do ajuste econômico chancelado pelo Banco Mundial (Fiori, 1994) –; a segunda é a Reforma do Estado, defendida por FHC e seus intelectuais – que se constituía em uma estratégia de corte de direitos e por isso expressava, na realidade, uma contra-reforma (Behring, 2003).

A reforma do Estado defendida por FHC e seus intelectuais partia do discurso da constatação da falência dos estados sociais (a crise do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos, a crise do Estado desenvolvimentista nos países em desenvolvimento, a crise do Estado socialista nos países socialistas) e sugeria a criação de um novo Estado, que seria “social-liberal”. Segundo o mesmo discurso seria social porque estaria preocupado com a sociedade e liberal por que não seria estatizante (Bresser Pereira, 1997; Bresser Pereira e Grau, 1999).

A proposta de reforma do Estado identificava neste último quatro setores. O primeiro seria o “núcleo estratégico”, composto pelo Executivo, Judiciário, Ministério Público e outros, que deveriam permanecer na órbita do Estado. O segundo, as “atividades exclusivas do Estado”, que seriam aqueles setores capazes de policiar, fiscalizar, definir políticas e outros; é que como o próprio nome sugeria seriam deveres do Estado. O terceiro núcleo seriam os “serviços sociais e científicos”, que a reforma considera que deveriam ser públicos, mas não prestados pelo Estado (até por que este já teria “comprovado” a sua ineficiência para isto). E, por fim, o quarto núcleo seriam aqueles destinados à “produção de bens e serviços”, que a Reforma do Estado sugeria que não fossem mais responsabilidade do Estado (Bresser Pereira, 1997; Bresser Pereira e Grau, 1999).

Aqui nos deteremos a analisar o terceiro e quarto núcleos, sem dúvida, os mais polêmicos. Vejamos: em tese, o quarto núcleo entendido na reforma do Estado não seria polêmico, já que, de fato, não lhe cabe, por exemplo, ser proprietário de hotéis ou de pequenos imóveis. Entretanto, o que a concretude da realidade demonstrou é que foram privatizadas empresas estratégicas para a economia brasileira, como demonstraram, por exemplo, as vendas da Companhia Siderúrgica Nacional e da Companhia Vale do Rio Doce. Ademais, as privatizações se configuraram, na prática, como repasse, já que tais empresas foram vendidas, estrategicamente, desvalorizadas e com preços bem abaixo do mercado, como demonstraram diversos autores. Praticamente a totalidade das empresas privatizadas fora construída com dinheiro dos trabalhadores, através dos históricos desvios do dinheiro da previdência social para este fim (Matos, 2000; Bravo e Matos, 2001).

O terceiro setor, aquele referente aos serviços sociais e científicos, era, a nosso ver (Matos, 2000; Bravo e Matos, 2001), também um ponto nevrálgico da reforma do Estado. Primeiro por que partia do aparente consenso de que o Estado é incapaz de executar estas políticas, ao mesmo tempo em que há uma valorização da ação não-governamental. Concretamente, aquilo que Atílio Borón (1996) tão bem já caracterizou: a “satanização do Estado” e o “endeusamento do mercado”. E segundo, por que sugeria a criação de OS’s – Organizações Sociais ou OPNES – Organizações Públicas Não-Estatais. A reforma propunha que as atuais instituições públicas fossem transformadas em OS/OPNES, entidades de direito privado. Tais entidades seriam geridas por instituições sem fins lucrativos, com repasse de financiamento do governo para tal. Ao mesmo tempo, a reforma abria precedente para que estas OS/OPNES buscassem recursos próprios. Sobre as esferas de controle social, a dita reforma apenas apontava para a criação de conselhos curadores que não seriam nem paritários na sua composição nem teriam poderes deliberativos.

Assim, de maneira sumária, podemos afirmar que a reforma do Estado defendida pelo governo FHC e seus intelectuais apontou para a redução do espaço público, a quebra de direitos sociais e trabalhistas (já que a reforma pouco informava sobre como ficariam os direitos dos funcionários que trabalhavam nas instituições que se tornariam OS/OPNES), o desmantelamento das políticas públicas entendidas como direitos dos cidadãos e dever do Estado, entre outros. Sendo assim, sem sombra de dúvida se constituiu numa estratégia de contra-reforma, já que pretendeu obstruir os direitos conquistados na Constituição Federal de 1988 (Matos, 2000; Bravo e Matos, 2001).

Portanto, por mais que a reforma do Estado, em especial pela ação de seu intelectual mais caro, Bresser Pereira, tenha tentado se apresentar como “social liberal”, era, sim, uma

estratégia pautada no projeto neoliberal. Ademais, não foi a reforma do Estado uma intenção apenas, e, sim, uma estratégia em curso, como apontava Batista (1999), lembrando a reforma da previdência, a quebra do RJU – Regime Jurídico Único e as privatizações de empresas estratégicas como exemplos cabais.

Análise aprofundada sobre os perversos efeitos desta proposta de reforma do Estado é realizada por Behring (2003). Em seu precioso estudo, a autora vai à história, nas análises marxistas da conformação do país, e analisa especialmente os anos oitenta e noventa. A citada obra, apresenta argumentos sobre as características da “contra-reforma”. Interessante, além da análise pautada nos fundamentos da crítica de economia política, é a crítica à reforma implantada. Também com vistas a mostrar que a “reforma” não foi só uma intenção, mas uma ação destruidora, é que Behring (2003) recupera o impacto negativo na desregulamentação da força de trabalho, as privatizações e o ataque à seguridade social pública.

No breve panorama que acabamos de delinear pudemos observar que a reforma do Estado foi uma intenção em desenvolvimento com clara ideologia neoliberal. Agora iremos pontuar alguns desses impactos na política de saúde do período.

Analisamos a política de saúde na década de noventa em quatro fases (Matos, 2000; Bravo e Matos, 2001). A primeira (1990-1992) compreende o período da presidência de Fernando Collor de Mello, em que a política de saúde acompanhou a política de governo, marcada pelo desmonte do parco que existia e pela obstaculização da implementação das políticas asseguradas na Constituição Federal de 1988. Neste período praticamente o único avanço foi a promulgação da Lei Orgânica da Saúde, apesar dos inúmeros vetos feitos pelo presidente à primeira Lei.

A segunda fase compreende o período de Itamar Franco na presidência (1992-1994). Inicialmente, até meados de 1993, há uma conjuntura sanitária favorável (Paim, 1998) com Jamil Haddad no Ministério da Saúde. É nesse período que se dá finalmente a extinção do INAMPS, órgão federal centralizador da prestação de serviços de saúde criado, ainda, na ditadura militar33. Também ocorre a edição da Norma Operacional Básica de 1993 (NOB- 1993), que instituiu três estágios de municipalização – pleno, semipleno e incipiente – e foi um incentivo para o avanço da descentralização da saúde, na perspectiva da

33 “Para se ter uma idéia do superdimensionamento do INAMPS, no momento de sua extinção, quando já

avançava o processo de municipalização, o órgão ainda geria 6.500 hospitais contratados e 40.000 credenciados, 9 hospitais próprios, 3 maternidades e 7 postos de atendimento ambulatorial. Dele dependiam 96.913 servidores, distribuídos em coordenadorias regionais, hospitais e postos de saúde, próprios ou cedidos à rede pública conveniada ao SUS, e apresentava 65.104 aposentados incluídos na folha de pagamento” (Gerschman. 1995: 147).

municipalização. Contudo, desde 1993, com Henrique Santillo à frente da pasta da Saúde, o período é marcado por uma ausência de iniciativas com vistas ao avanço do SUS e também, pela ausência de propostas que lhe fossem contrárias.

A terceira fase (1995-1996) é referente ao início do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso na presidência, quando o Ministério da Saúde foi gerenciado por Adib Jatene. Esse período é marcado por um descaso governamental com a política de saúde, havendo constante polêmica entre o responsável pela pasta e os ministros controladores das finanças. É nesse período, após ampla mobilização do ministro da saúde, que ocorre a aprovação da CPMF, que ganhou adesões de número expressivo de lideranças na área da saúde, com o argumento de repasse exclusivo para as ações e serviços de saúde, o que efetivamente não ocorreu.

A quarta fase (1996 até o final do segundo mandato de FHC em 2002) finalmente é marcada por uma adaptação do Ministério da Saúde aos ditames da pasta econômica do governo. Além da gestão interina de José Carlos Seixas, esse período é marcado pelas gestões de Carlos Albuquerque (1996-1998) e de José Serra (desde 1998) no Ministério da Saúde.

Nesta fase é aprofundada no Ministério da Saúde a construção da política de saúde pautada nos princípios da contra-reforma do Estado. Não há um avanço do SUS, na perspectiva do movimento sanitário, mas sim o seu redirecionamento. Expressões disso foram as diferentes campanhas de saúde (retomando uma idéia superada do sanitarismo- campanhista); um desrespeito às instâncias de controle social; a regulamentação, com debate incipiente na sociedade sobre os planos privados de saúde; a proliferação, devido ao financiamento vertical proposto pela Norma Operacional Básica (NOB-96), do PSF/PACS; a criação de Agências – tanto de Saúde Suplementar (ANS) como a de Vigilância Sanitária (ANVISA) – com autonomia orçamentária, poder decisório e sem concurso público para o preenchimento das vagas; dentre outras. Contudo, o mais importante foi a estratégia – que não foi totalmente implementada da contra-reforma do Estado na Saúde (MARE, 1998) – que propunha a transferência dos serviços ambulatoriais de referência e dos hospitais para as Organizações Sociais, na perspectiva do que foi tratado anteriormente, donde o Estado contrataria aquele hospital/serviço que julgasse melhor, independente deste estabelecimento ter sido, um dia, público ou não.

A contra-reforma do Estado na saúde era extremamente perversa e na época já apontávamos as seguintes ponderações:

“O atendimento básico continua sob a responsabilidade do Estado. E não por acaso, já que este não dá lucro.

O credenciamento dos hospitais se dará através da concorrência. E os hospitais públicos que possuem servidores públicos e que não forem selecionados para o credenciamento, fecharão?

Se os atuais serviços de saúde forem realmente transformados em OPNES, como ficará a autonomia do Estado na prestação das políticas sociais?”

(Bravo e Matos, 2001: 209).

Pelo visto podemos afirmar que na década de noventa, o SUS na perspectiva do movimento da reforma sanitária brasileiro, não foi implantado. Ao contrário: sofreu – notadamente no governo FHC34 – diferentes desvios na sua gestão, frutos dos ataques à construção de políticas públicas apregoados pelo neoliberalismo.

A saúde e as outras políticas constitutivas da Seguridade Social brasileira – assistência social e previdência social – não foram implantadas conforme os princípios constitucionais. Ao contrário, assistimos discursos e práticas que apontaram para o desmonte da seguridade social. Frente aos discursos de uma crise do Estado brasileiro, existiu, por parte das diferentes esferas de governo, prática de cortes na efetivação dos direitos sociais garantidos constitucionalmente. A seguridade social, historicamente o principal alvo, foi encarada de forma particularizada (Tavares Soares, 1999).

Nos anos noventa se assistiu a proposta de mercantilização da saúde e da previdência e a privatização da assistência social (Netto, 1999a). Neste ataque, a saúde e a assistência sofreram mais, ambas por que possuem pouca legitimidade por parte da população, além da existência de poucos movimentos nacionais e da ausência de sindicatos fortes que faziam a sua defesa (Vianna, 1999). A saúde, apesar do seu debate interno e das fragilidades por que passava o movimento sanitário, conseguiu empreender algumas resistências, que foram o grande número de conselhos e, consequentemente, o número de sujeitos nacionais envolvidos na defesa da política, a representatividade das conferências de saúde e a mobilização quando alguma ameaça emergia, como as plenárias nacionais de saúde. Já a assistência social, apesar de contar com uma competente e combativa corporação na sua defesa – a categoria dos assistentes sociais – foi, das três políticas de seguridade, a mais atacada, devido ao seu histórico caráter de não política (Vianna, 1999;

34 Como o Estado é, por natureza, um espaço contraditório, nesse mesmo período emerge, no final dos anos

1990, iniciativas importantes no Ministério da Saúde no que tange à saúde da mulher, em direção a discussão sobre a descriminalização do aborto. Contudo, essa iniciativas ficaram restritas a um setor do ministério e tiveram parcos recursos financeiros. Abordaremos melhor essa questão no próximo capítulo.

Sposati, 1994). E a previdência social – além de movimentar um grande montante de dinheiro e envolver poderosos interesses – teve também a importante contribuição da COBAP (Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas) e rápido pronunciamento das entidades representativas dos trabalhadores quando se aventava alguma mudança (Vianna, 1999).

No documento PUC SP São Paulo, 2009 (páginas 54-60)