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Projeto ético-político do Serviço Social e seus fundamentos éticos

No documento PUC SP São Paulo, 2009 (páginas 178-184)

Serviço Social: trabalho coletivo na saúde, cotidiano e princípios éticos políticos

Capítulo 2: Cotidiano e Ética no exercício profissional dos assistentes sociais nos serviços de saúde

5. Projeto ético-político do Serviço Social e seus fundamentos éticos

Muito se fala, atualmente, sobre o “projeto ético-político do Serviço Social” na categoria profissional. Contudo, será que seus componentes, profissionais e estudantes,

compreendem realmente – em termos dos seus fundamentos – sobre o que estão falando? Ou será que é mais um jargão da moda na profissão? Essa é uma questão que nos parece que deve ser permanentemente problematizada, para que não caiamos no risco de esvaziarmos de conteúdo esse projeto, tão caro para a profissão.

A recorrência a esta denominação – projeto ético-político do Serviço Social – tem se dado na categoria profissional desde a segunda metade da década de noventa. Alguns marcos são significativos. O primeiro refere-se ao texto de 1996 construído pela então gestão do CFESS, onde há referência ao projeto profissional. O segundo foi o temário do IX Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em Goiânia no ano de 1998, intitulado “Trabalho e Projeto Ético-Político do Serviço Social”. O terceiro é o artigo de José Paulo Netto, publicado em 1999 e reeditado em uma coletânea em 2006 (Mota et alli). Esse artigo, até hoje, é referência para o entendimento do que é um projeto profissional e de suas características no Serviço Social.

Podemos observar que, pelas suas origens, a preocupação com a sistematização de um projeto profissional advém da militância profissional, que desde os anos oitenta vem aliando uma intervenção no campo político com a qualificação profissional a direção política dada ao Conjunto CFESS/CRESS (Conselhos Federal e Regionais de Serviço Social), à ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) e à ENESSO (Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social) é expressão magnânima. Contudo, não se constitui em uma preocupação só desses sujeitos na medida que o termo “projeto ético-político do Serviço Social” ganhou espaço em diferentes produções acadêmicas e em vozes de diferentes profissionais e estudantes da área do Serviço Social a partir dos anos noventa.

Netto (1999), ao refletir sobre o projeto profissional do Serviço Social, conceitua primeiro o que seja um projeto de profissão e um projeto societário, e como estes se relacionam:

“Os projetos societários são projetos coletivos; mas o seu traço peculiar reside no fato de se constituírem projetos macroscópicos, em propostas para o conjunto da sociedade” (1999: 94. Grifos originais).

“Os projetos profissionais apresentam a auto-imagem de uma

profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam os seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, institucionais e práticos) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as balizas da sua relação com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais, privadas e públicas (entre estas, também e destacadamente com o Estado, ao qual coube, historicamente, o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais)” (1999: 95. Grifos originais).

Assim, fica visível que os projetos profissionais apontam e se conectam com projetos societários. Projetos profissionais conservadores tendem a se ligar a projetos societários com a mesma perspectiva. O contrário, projetos profissionais emancipadores, idem. Netto (1999), afirma que projetos profissionais diferentes do projeto societário hegemônico possuem mais dificuldades de se estabelecerem, mas é possível que isso ocorra. Essa é a situação do atual projeto profissional hegemônico no Serviço Social, que analisaremos abaixo.

O entendimento de cada palavra do termo “projeto ético-político do Serviço Social” é que pode trazer contundência para a sua compreensão. “Projeto” remete a intencionalidade, característica do homem, já que só esse pode construir idealmente o resultado que pretende alcançar. Ao projetar a ação, o homem está realizando escolhas e esse ato de optar, traz a tona seus valores. Pois nenhuma ação projetada é neutra. Ao escolhermos por quais meios e por qual fim agimos, estamos lidando com valores. Ainda assim, “projeto” remete à idéia de algo em construção, que não está acabado. Portanto, o primeiro significado é uma intencionalidade.

“Ético” vem da palavra ética. A ética lida com valores que ao serem assumidos pelos sujeitos, por meio da sua internalização, se materializam em “ações” ou “omissões” por esses sujeitos. Assim, a ética não é uma escolha abstrata sobre um modo idealizado de se conceber o mundo e o homem. É mais que isso, pois a ética é composta por valores que

norteiam a concepção de homem e mundo, mas que se materializam no cotidiano a partir

de diferentes escolhas que realizamos. Por isso, a ética possui intrínseca ligação com a política, já que tem materialidade e, por isso, o homem opta na ação, conscientemente ou não, por um ou outro aspecto da vida social.

No caso de uma profissão a ética congrega duas dimensões. A primeira refere-se à reflexão teórica da própria profissão sobre os fundamentos da moralidade, ou seja, os valores. A segunda é uma resposta consciente da categoria profissional, indicando um dever ser, que se materializa pela construção, por parte dos sujeitos da profissão, de parâmetros de conduta, ou seja, o código de ética. Portanto, a ética profissional, aqui, tem a ver não só com a idéia de normatização do que pode ou não ser feito; mas, também – e principalmente – com a escolha consciente da categoria profissional sobre seus valores e os objetivos destes (Barroco, 2001).

Enfim, a palavra “Político” reforça que nenhum projeto de profissão é neutro. Sabemos, com a ajuda de Bertold Brecht, que o pior analfabeto é o analfabeto político95. Assim, esse projeto de profissão – querendo ou não – está sempre vinculado a um determinado projeto de sociedade, o citado projeto societário.

O projeto ético-político do Serviço Social possui suas raízes na ruptura com o histórico conservadorismo da profissão. Esta ruptura tem seu marco no processo de renovação do Serviço Social Brasileiro, sendo sua expressão paradigmática o Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais de 1979, conhecido como o Congresso da Virada. É ainda no final da ditadura militar que se pode constituir uma outra direção na categoria profissional. Este projeto é caudatário da tendência, nomeada por Netto (1996) de “intenção de ruptura”, que indubitavelmente anima as polêmicas profissionais desde os anos oitenta. Apenas panoramicamente, podemos lembrar, também nos anos oitenta, a releitura da história da profissão, propiciada pela edição do livro de Carvalho e Iamamoto (1992); a inserção da categoria na luta sindical do contexto do novo sindicalismo da época (Abramides e Cabral, 1995); o código de ética de 1986 e o currículo de 1979 (aprovado pelo Ministério da Educação e da Cultura – MEC – somente em 1982). Nos anos noventa,

95 Referimo-nos aqui à poesia “analfabeto político” (1933), de Bertolt Brecht: “O pior analfabeto / É o

analfabeto político, / Ele não ouve, não fala, / Nem participa dos acontecimentos políticos. / Ele não sabe que o custo da vida, / O preço do feijão, do peixe, da farinha, / Do aluguel, do sapato e do remédio / Dependem das decisões políticas. / O analfabeto político / É tão burro que se orgulha / E estufa o peito dizendo / Que odeia a política. / Não sabe o imbecil que, / da sua ignorância política / Nasce a prostituta, o menor abandonado, / E o pior de todos os bandidos, / Que é o político vigarista, / Pilantra, corrupto e lacaio / Das empresas nacionais e multinacionais.”

ainda panoramicamente, podemos lembrar que esse período é marcado pela maioridade intelectual e consolidação acadêmica da profissão (Netto, 1996a).

O coroamento do projeto ético-político do Serviço Social é o código de ética de 1993 (Netto, 1999), estando também expresso na lei de regulamentação da profissão de 1993 e nas diretrizes curriculares para o Serviço Social de 1996. Assim, o código, as diretrizes curriculares e a lei de regulamentação podem ser entendidos como o tripé de fundamentação do projeto ético-político. Além destes, há que se considerar que podemos identificar expressões deste projeto em diversas produções acadêmicas e em algumas experiências profissionais em curso.

O projeto ético-político do Serviço Social ao negar o histórico conservadorismo da

profissão aponta, propositivamente, para a construção de um exercício profissional comprometido com a justiça social e a liberdade, valores centrais do atual código de ética, promulgado em 1993.

A justiça social, no código, remete para a defesa de uma socialização daquilo que é

socialmente produzido, mas apropriado privadamente. Assim, o código remete à intenção da crítica ao capitalismo. Contudo, aponta para a atuação profissional na atual ordem, tanto é a sua defesa das políticas públicas.

A liberdade está colocada na perspectiva que compreende o homem como sujeito à

liberdade. Ela não está no plano do inacessível, no idealismo, mas se constitui em realidade, por meio da possibilidade do homem em realizar escolhas, que obviamente são determinadas historicamente.

Mesmo que o código de ética não se proponha a regular a vida privada dos assistentes sociais, este se choca com concepções de vida pautadas no irracionalismo. E, também, com a negação de direitos dos outros, mesmo quando não os valoramos como relevantes. Não há espaço, no atual projeto profissional, para o exercício do preconceito. Cabe lembrar que o preconceito (Heller, 1992) é a persistência dos juízos provisórios que inicialmente necessariamente construímos, mas que permanecem como valores mesmo quando o conhecimento mostrou que estão errados.

Assim, acreditamos que o atual projeto profissional expressa um embate com a sociabilização primária da maioria dos assistentes sociais e os valores morais constituídos a partir daí por estes sujeitos na vida adulta. Estes, em sua maioria, não têm encarado esse embate e, sim, constituído a adesão aos valores profissionais para o seu exercício e um parco, ou por vezes nulo, questionamento aos valores da sua vida privada. Assim é que é possível termos profissionais com um expressivo discurso concatenado com o projeto

ético-político profissional, mas que defendem a propriedade privada e exercem o preconceito no seu dia a dia, por exemplo. Pensam esses profissionais que existe essa muralha definindo esses espaços, contudo isso é um auto-engano. Valores são incorporados e expressos, muitas das vezes quando não se quer, mesmo que não pela fala, mas pelos olhares e pela omissão, por exemplo. Imaginar que se possa ter um tipo de valores para a vida privada e outros para a vida profissional não é apenas um equívoco teórico, mas também prático, dado que é ontologicamente impossível.

Ser hoje um assistente social competente não é uma tarefa fácil. Construímos um projeto de profissão que vai à contracorrente do projeto societário hegemônico. Assim, os assistentes sociais que se pautam no citado projeto profissional se deparam com um caldo cultural contrário: no trabalho, na família, na sociedade... A tarefa dos descontentes é árdua, mas é plena quando acreditamos naquilo que propomos e fazemos. Com capacidade intelectual, agir ético e permanente leitura da realidade podemos, no coletivo da categoria profissional, construir pequenos inícios de caminhadas concretas. Mas temos que acreditar nisso, pois não basta aderir aos princípios do projeto: é necessário internalizá-los. Heller trata o tema de maneira direta e bela:

“Marx disse que transformando o mundo, os homens se transformam a si mesmos. Não modificaremos substancialmente o seu pensamento se alterarmos a sua frase e afirmarmos agora que não podemos transformar o mundo se ao mesmo tempo, não nos transformarmos nós mesmos” (1992: 117).

Os assistentes sociais, em seus diferentes fóruns, têm colocado a importância de uma problematização sobre o cotidiano, com falas do tipo: “lá no cotidiano é difícil de implantar o projeto profissional”. Esse tipo de fala nos parece extremamente perigoso. Parece-nos, primeiramente, reeditar a falsa dicotomia entre teoria e prática. Pode remeter à idéia de que o projeto ético-político é uma teoria, apenas. Outra preocupação é a de tomar o cotidiano, na sua aparência, como a referência e o fim de todos os objetivos da intervenção profissional. Assim, nada mais propício que refletir sobre ele.

Pelo aqui exposto, temos como desafio no Serviço Social discutir a categoria “cotidiano” tomando como referência a problematização inaugurada por Lukács e aprofundada por Heller.

Netto (2000:72) considera que “não se legitima a análise da vida cotidiana senão quando se superam as balisas do pensamento cotidiano”. Para tanto se faz importante combater as abordagens sociológicas e antropológicas donde “o reducionismo de que se

nutrem dilui todas as determinações estruturais e ontológicas da vida cotidiana, subsumindo-as ou num culturalismo que hipertrofia os seus conteúdos simbólicos ou numa sucessão de eventos manipulados que promove a evicção das reais (e operantes) possibilidades de intervenção dos sujeitos sociais” (Idem: 73). Segundo o mesmo autor, o tratamento conseqüente da vida cotidiana não é tanto função de um posto de vista de classe, mas não cabe negá-lo: fundamental é o “resgate e a recuperação críticos dos instrumentos teóricos acumulados no bojo da herança cultural da humanidade” (Ibidem: 74).

As questões hoje apontadas pelos assistentes sociais sobre o cotidiano de trabalho devem ser precedidas de uma reflexão desveladora sobre este, não tomando a aparência do cotidiano como critério de verdade e, logo, de adaptação do projeto ético-político profissional.

Conforme já sinalizado na introdução dessa tese, existem diversas pesquisas no Serviço Social que apontam para a não implantação efetiva, no cotidiano do trabalho desenvolvido nos serviços, do projeto ético-político do Serviço Social. Na apresentação indicamos duas hipóteses. Uma, a importância de se entender os determinantes do exercício profissional no âmbito do trabalho coletivo em saúde. A outra é que a incorporação deste projeto, não se dá por falta de conhecimento dos assistentes sociais, já que estes verbalizam esse compromisso; mas sim, de que não há uma internalização, de fato, pela categoria profissional, destes valores. Heller, ao pensar sobre a ética marxista, nos traz uma contribuição:

“Todo filósofo deve viver seus pensamentos, as idéias que não forem vividas não são efetivamente filosóficas. Semelhante princípio prevalece com especial vigor no caso da ética, e ainda mais particularmente no caso da ética marxista. A ética marxista é uma práxis, não pode existir sem uma realização prática, sem se realizar na prática de algum modo. Mesmo elaborada com base nos princípios teóricos de Marx, uma ética que se limite a contrapor-se passivamente ao atual mundo manipulado não passará de uma nova expressão, contemporânea, da ‘consciência infeliz’. A ética marxista só pode ser a tomada da consciência do movimento que se humaniza a si mesmo e humaniza a humanidade. Por isso, a ética marxista não depende só da compreensão e da aplicação correta dos textos de Marx: ela depende muito mais do desenvolvimento do movimento que a adote como moral.” (Heller, 1992: 121).

Parafraseando Heller temos como desafio, enquanto conjunto da categoria profissional, não apenas entendermos, por meio do estudo – estratégia não menos importante de formação profissional – o projeto ético político profissional e os conhecimentos necessário que daí derivam. Devemos, se assim queremos, sobretudo, incorporar seus princípios éticos e, mais do que isso, construir estratégias concretas, e factíveis, de viver esse projeto ético-político profissional. Assim, quem sabe, poderemos ter uma consciência feliz, dentro e fora do trabalho, ou seja, na vida pública e na vida privada.

6. Desafios ao projeto ético-político do Serviço Social e sua relação com o Projeto da

No documento PUC SP São Paulo, 2009 (páginas 178-184)