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Trabalho em Mar

No documento PUC SP São Paulo, 2009 (páginas 127-134)

Serviço Social: trabalho coletivo na saúde, cotidiano e princípios éticos políticos

Capítulo 1: Trabalho coletivo em saúde e a inserção dos profissionais de Serviço Social

1. Trabalho em Mar

Marx e Engels construíram uma teoria revolucionária e inédita. Foram herdeiros do seu tempo, viveram em pleno trânsito do capitalismo concorrencial para a era dos monopólios. Profundos estudiosos, agarraram como projeto de vida a necessidade de desvelamento do capitalismo, com vistas a superá-lo. Por isso não foram apenas intelectuais e homens do seu tempo, mas revolucionários. Aliaram uma prática de profundo estudo com militância política. Nada mais sintetizador dessa noção que a célebre frase dos nossos autores: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-la” (Marx e Engels. 1987: 14. Grifo original).

O ponto de partida do método marxiano de análise é o particular e não o geral. Em outros termos, é o mais simples que explica o mais complexo. Na “Introdução à Crítica da Economia Política” (Marx, 1996a: 45), Marx informa que em princípio pode se pensar que para estudar o capital é possível partir da evolução da propriedade fundiária (uma vez que a propriedade privada é o cerne do capitalismo). Contudo, informa o autor, de fato não se compreende a renda da terra sem o capital. Entretanto, pode-se compreender o capital sem a posse da renda da terra, devido à financeirização já prevista em Marx, mas ainda analisada apenas pelo impacto que o autor já observava do crescimento do comércio. Ou seja, para entender o capital, o ponto de partida era como este se expressava na atualidade da sua época. Através desse método particular, Marx e Engels estudaram a evolução do capital. Do início da manufatura da sua época chegaram à transição para o fim do feudalismo e para a ascensão e o domínio da classe burguesa.

Contudo, Marx e Engels, como humanistas que eram, identificam que a produção de riqueza que o capitalismo gera vem da força de trabalho vendida pelo trabalhador ao capitalista. Esse trabalho é alienado, uma vez que não se desenvolve para responder às necessidades de quem o empreende, o trabalhador. Há, sem dúvida, no capitalismo, a centralidade do trabalho para a produção da riqueza apropriada pelo capitalista. Como também identificam os autores, é o trabalho, na sua forma não alienada, a essência da constituição do homem. No prefácio de “Para a crítica da economia política”, originalmente publicado em 1859, Marx reflete a respeito:

“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. (...) O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1996:52).

Conforme podemos entender da leitura acima é por meio do trabalho que o homem se desenvolve, estabelecendo relações que não necessariamente são frutos de sua vontade. É por meio do trabalho, alterando a natureza, que o homem também se transforma. É o concreto da sua existência que determina a sua consciência. Assim, a consciência do homem é determinada pela vida que este leva.

No processo de investigação de Marx e Engels, importante foi a interlocução com diferentes autores. A dialética de Hegel e a crítica que realizaram a este autor são consensualmente identificadas como fundantes para a constituição dos ideais marxistas. Mas também a crítica e diálogo com autores que deles discordavam. Tomamos por exemplo o debate que Marx travou com Proudhom em “A Miséria da Filosofia”. Aqui, contudo, queremos chamar atenção para a interligação que os autores, especialmente Engels, vão desenvolver com a teoria de Darwin para pensar o homem e sua relação com o trabalho.

Engels (2000), recorrendo à um crítico diálogo com Darwin, investiga como a evolução do macaco em homem foi determinada pelo trabalho. Uma raça específica de macaco, ao deixar de ser quadrúpede, deixa de andar com as duas patas dianteiras, que passam a fazer parte de órgãos que originaram as mãos. Com estas, passou a colher frutos e

a criar instrumentos que o ajudassem nesta ação. Isso gerou várias descobertas, que aliadas à percepção de que a atividade conjunta potencializaria o trabalho, fez surgir a linguagem. Assim, é o trabalho, e a linguagem que por meio dele surge, que faz estimular o cérebro e os sentidos. Esse processo, construído abstratamente por Engels, foi longo, até que culminou com a total separação do macaco e do homem, sendo determinante para essa separação o papel da consciência, da ação planejada.

“Resumindo: o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença” (Engels, 2000: 223).

Ou, em outros termos:

“Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade” (Marx: s/d: 202).

Portanto, para Marx e Engels, o trabalho é uma atividade fundamental para o homem, porque é através deste – na relação que estabelece com a natureza – que o homem busca a satisfação de suas necessidades. O homem é o único ser que em contato com a natureza e no processo de transformá-la (para satisfação de suas necessidades) projeta o resultado que pretende alcançar, ou seja, antecipa em sua mente o resultado. Para isso constrói instrumentos com vistas a auxiliá-lo na transformação da natureza. Entretanto, quando se dá o fim de sua tarefa o resultado obtido é diferente daquilo que havia idealizado. Portanto, para Marx: “Os elementos componentes do processo de trabalho são: 1) a atividade adequada a um fim, isto é próprio trabalho; 2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto do trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho” (Marx, s/d, 202).

No processo de transformar a natureza, o homem também mudou. Ambos não são mais os mesmos. Ao iniciar um novo processo o homem optará por novos processos – tanto no que se refere ao emprego da sua força de trabalho65 como dos instrumentos construídos – já que o conhecimento acumulado o credenciou a identificar novas e

supostas formas melhores de construção. O resultado, que foi originado por uma necessidade, ao mesmo tempo em que satisfaz a tal necessidade, gera novas necessidades.

Esse ato, o trabalho, é, na sua essência, ontológico ao homem e expressa o caráter teleológico de sua ação à medida em que ao transformar a natureza o homem já projetou idealmente o resultado que pretende alcançar. Essa é uma característica que distingue esse ser dos outros animais. Enquanto o animal se relaciona com a natureza de forma imediata e instintiva, o homem estabelece mediações – entre ele e a natureza e com os outros homens – que objetivam sua sociabilidade, sua consciência, sua capacidade de criar valores e alternativas de escolha, ou seja, sua liberdade, sua universalidade.

Através do trabalho o homem se afirma não apenas como um ser pensante, mas como aquele que age consciente e racionalmente. O trabalho opera mudanças na matéria, no objeto, mas também no sujeito, ou seja no próprio homem, pois lhe possibilita descobrir novas capacidades e qualidades66. (Marx, s/d)

Este processo, que na sua essência era criativo, é subsumido na história da humanidade alcançando seu ápice de estranhamento no modo de produção capitalista. Conforme apontam Marx e Engels (1987) foi, contraditoriamente, por meio da consciência e da linguagem que o homem institui a divisão do trabalho. Nesse processo vai se constituir, paulatinamente, uma tensão entre o interesse particular e o interesse coletivo. Daqui surge o Estado como instância supostamente autônoma e separada dos interesses, tanto particulares e gerais, e representante de uma “coletividade ilusória”.

O processo de divisão do trabalho vai gerando, progressivamente, um afastamento do homem em relação ao produto do seu trabalho:

“O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, porque sua cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram, que não podem mais dominar e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige este querer e agir” (Marx e Engels, 1987: 49-50).

66 Esse ato de acionar consciente – que é o trabalho – é uma atividade que tem uma necessária dimensão

ética, uma vez que por meio desse o homem passar a estabelecer escolhas que envolvem juízos de valor. Sobre a ética trataremos no próximo capítulo.

É na separação entre a cidade e o campo – que se inicia desde a transição entre a barbárie e a civilização – que se encontra o cerne da divisão entre trabalho material e intelectual. Nas cidades da Idade Média surgem inicialmente as corporações (formadas por aqueles que se refugiavam do poder feudal nos burgos e onde seus integrantes dominavam o processo de trabalho) e, depois, os comerciários, o que significa, concretamente, uma divisão entre a produção e sua comercialização. É o contato entre essas diversas cidades, à época denominadas burgos, que faz surgir a classe burguesa. É nesse contexto que aparece a manufatura e se inicia, paulatinamente, um novo modo de produção denominado modo de produção capitalista (Marx e Engels, 1987).

A manufatura significou a perda da relação patriarcal que havia nas corporações, marcada pela relação entre oficiais e mestres, donde essas foram substituídas pela relação monetária entre capitalista e trabalhador. O desenvolvimento da manufatura foi fortemente marcado pelo desenvolvimento do comércio, em virtude do descobrimento da América e das Índias Orientais. Como desdobramento disso emerge a defesa dos direitos alfandegários e ganha impulso a constituição do Estado moderno, nos moldes do que ainda temos hoje. É nesse processo que surge a grande burguesia. Entre meados do século XVII e fins do século XVIII o comércio e a navegação estavam mais desenvolvidos que a manufatura, tendo como referência a Inglaterra. É nesse mesmo país, que como forma de responder à grande demanda e ao desenvolvimento da mecânica teórica, que se dá o surgimento da grande indústria (Marx e Engels, 1987). Esse processo também ficou conhecido na história como revolução industrial devido à entrada em cena da maquinaria como uma estratégia de redução da força de trabalho e aumento da produção.

“Em geral, a grande indústria engendrou em todas as partes as mesmas relações entre as classes da sociedade, destruindo com isso a peculiaridade das diferentes nacionalidades. Finalmente, enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda interesses nacionais e particulares, a grande indústria criou uma classe cujos interesses são os mesmos em todas as nações e em que toda nacionalidade está já destruída; uma classe que, realmente, se desembaraçou do mundo antigo e que, ao mesmo tempo, com ele se defronta. Não é apenas a relação com o grande capitalista, mas é o próprio trabalho, que a grande indústria torna insuportável para o trabalhador” (Marx e Engels, 1987: 95).

É a partir desse momento que a alienação do homem sobre o resultado de sua própria ação, o trabalho, se complexifica. O trabalhador em si passa a ser tratado como mais uma mercadoria, que sofre oscilação no seu valor a depender da demanda disponível para o

trabalho. O salário, valor que o trabalhador recebe em troca da sua força de trabalho, visa unicamente a sua subsistência. O trabalho é um fardo, algo penoso, onde o trabalhador produz para quem o contrata, não dispondo dos meios. O trabalhador não se vê no resultado final da sua ação, se sente exterior ao que produziu, e mais do que isso, o resultado do seu trabalho não é algo apenas estranho, mas autônomo em relação a ele, o trabalhador. O produto gerado pelo trabalhador, mas propriedade do capitalista – tal qual a força de trabalho que este compra –, não visa diretamente um valor de uso e sim valor de troca que supere o valor que este capitalista investiu na sua produção. Quanto mais intensa for a jornada de trabalho maior lucro terá o capitalista, uma vez que o trabalhador recebe menos do que produz, sendo as horas não pagas de seu trabalho, a mais valia, o lucro do capitalista. (Marx, 2004 e s/d).

Esse trabalho estranhado é a essência da alienação no capitalismo, já que expropria do homem a sua capacidade de identificação como um ser genérico, por meio da consciência que só o trabalho, na sua essência, pode propiciar. O homem, quando passa a ser estranho de si mesmo e do resultado da sua ação, o trabalho, é também estranho aos outros homens. Ao não possuir os meios de produção e não se identificar mais no resultado da sua ação há um processo de fetichização da externalidade dos meios de produção e do controle da força de trabalho pelo capitalista. Por isso Marx afirma que o trabalho estranhado é a essência subjetiva da propriedade privada (Marx, 2004).

No capitalismo há, no primeiro momento, uma subsunção formal do trabalho ao capital, quando o processo de trabalho é apropriado pelo capitalista, mas passa a ser um – por meio dos mecanismos acima mencionados – instrumento de fabricação de mais-valia. Até caminhar para uma subsunção real do trabalho ao capital, que significa a emersão do modo de produção especificamente capitalista. Em termos marxianos:

“A característica geral da subsunção formal continua sendo a direta subordinação do processo de trabalho – qualquer que seja, tecnologicamente falando, a forma que se efetue – ao

capital. Nessa base, entretanto, se ergue um modo de

produção tecnologicamente específico que metamorfoseia a

natureza real do processo de trabalho e suas condições

reais: o modo capitalista de produção. Somente quando este entra em cena, se dá a subsunção real do trabalho ao capital” (Marx, 1978: 66. Grifos originais).

Uma característica importante sobre o modo de produção capitalista que Marx traz para a reflexão é que este modo, de forma inédita, instaura uma forma de trabalho que não é mais executado somente por um mesmo trabalhador. Com o progressivo advento da

maquinaria e o conseqüente processo de industrialização há uma parcialização do processo de trabalho, por meio do emprego da força de trabalho de diferentes trabalhadores com vistas à elaboração do produto. Esses trabalhadores – inseridos no processo de trabalho

coletivo – não dominam mais todo o processo de transformação da matéria. Além de não trabalharem mais para a resposta a uma necessidade sua e de venderem sua força de trabalho como outra mercadoria qualquer, passam a partir desse momento a não dominarem todas as etapas do seu trabalho. É o ápice do estranhamento do homem sobre si mesmo. Por isso, conforme já sinalizado anteriormente, é a partir desse momento que se pode tratar de um processo de trabalho capitalista próprio, onde o capital não apenas se apropria do processo de trabalho em geral, mas subverte-o e o redireciona para o extremo das suas necessidades.

Uma outra característica típica do processo de trabalho no modo de produção capitalista vivido por Marx foi a emersão do chamado setor de serviços. Como afirma nosso próprio autor: “Serviço não é, em geral, senão uma expressão para o valor de uso

particular do trabalho, na medida em que este não é útil como coisa, mas como atividade” (Marx, 1978: 78. Grifos originais). A partir desse setor, que na época estava apenas se iniciando, Marx reflete sobre as suas características no que tange ao trabalho desenvolvido nessa esfera. Não deixando de lado a centralidade ontológica do trabalho como aquela atividade prática e consciente que o homem empreende ao transformar a natureza, Marx começa a refletir sobre as particularidades dessa ramificação no capitalismo e desenvolve uma reflexão sobre a diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo.

Mesmo que se possa entender, no processo de trabalho em geral, que trabalho produtivo seja aquele que gera uma mercadoria, no processo de trabalho especificamente capitalista trabalho produtivo, e por conseqüência trabalhador produtivo, é aquele que gera diretamente mais-valia para o capital. Analisando as configurações do trabalho no seu tempo presente é que Marx reflete sobre o emergente setor de serviços e observa que o fruto do trabalho nessa esfera não se materializa em um produto ou uma mercadoria nos moldes a que anteriormente nos referimos, uma vez que quando se consome o “resultado” desse trabalho, se faz não pelo seu valor de troca, mas, sim, pelo seu valor de uso. O que distingue no capitalismo o trabalho produtivo do improdutivo é que este não gera diretamente mais-valia para o capital. Por isso o que diferencia o trabalho produtivo do improdutivo não é sua natureza:

“Assim o trabalho, por exemplo, jardinagem, alfaiataria (gardening tailoring), etc, pode ser realizado pelo mesmo

trabalhador (workingman) a serviço de um capitalista industrial ou de um consumidor direto. Em ambos os casos, estamos ante um assalariado ou diarista, mas, num caso trata- se de trabalhador produtivo, e noutro, de improdutivo, porque no primeiro caso esse trabalhador produz capital e no outro não; porque num caso seu trabalho constitui um momento do processo de autovalorização do capital, e no outro não” (Marx, 1978: 76. Grifos originais)

Tomando as reflexões de Marx sobre o trabalho no modo de produção capitalista, especialmente no que tange ao trabalho coletivo, não na produção, mas nos serviços, é que pretendemos refletir sobre as características do trabalho coletivo nos serviços de saúde. Para tanto realizamos anteriormente uma breve e panorâmica reflexão sobre o debate acerca do trabalho após Marx no âmbito da tradição marxista.

No documento PUC SP São Paulo, 2009 (páginas 127-134)