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CAPÍTULO 4 – A propriedade intelectual em um ambiente multilateral

5.8 Os paradigmas interpretativos da Corte Européia de Direitos Humanos a

5.8.2 O paradigma da execução

O paradigma da execução é um apoio ao paradigma anterior do primado da lei, que tem aparecido em recente jurisprudência da Corte. Com base no paradigma da Execução, a Corte, no caso Anheuser-Busch, lançou as sementes do mencionado paradigma. No caso, a Corte Européia de Direitos Humanos ao interpretar o art. 1º, da Convenção Européia de Direitos Humanos, solicita aos Estados providências administrativas e judiciais para que os titulares da propriedade intelectual possam prevenir que terceiros façam uso de seus trabalhos protegidos sem autorização.

Para uma correta aplicação do art. 1º, o surgimento de obrigações positivas inclui o “fornecimento de um sistema legal para que os direitos de propriedade possam ser executados” (RIZA apud LAURENCE, 2008).

Os Estados devem também arcar com os custos de processos judiciais que ofereçam as necessárias garantias processuais e, portanto, permitir que os tribunais nacionais possam julgar de forma eficaz e justa qualquer litígio entre particulares que envolvam propriedade.

Tendo em conta que o paradigma do primado do direito tem por foco os governos arbitrários que interferem indevidamente na propriedade, o paradigma da execução dá ênfase no dever de os Estados tornarem efetivas as “obrigações positivas” de proteger a propriedade privada. As obrigações positivas requerem que as autoridades públicas ajam de forma decisiva para garantir que os direitos dos titulares da propriedade intelectual sejam efetivamente exercidos. A omissão culposa do Estado, não a sua ação ilícita, gera a sua responsabilidade ao abrigo do direito internacional.

A Corte, no caso Anheuser-Busch, fez uso desta linguagem quase literalmente, conquanto não reconheça que tenha feito implicitamente referências às jurisprudências das obrigações positivas.

A Corte gera conseqüências quando aplica as obrigações positivas às disputas privadas de propriedade intelectual, pois surge um novo conjunto de queixas alegando a adequação dos procedimentos de execução das legislações domésticas. Tais argumentos dos titulares da propriedade intelectual exigem que a Corte faça uma articulação meticulosa para precisar quais Estados devem fornecer mecanismos para prevenir, de forma não explícita, o art. 1º, de modo a implicitamente solicitar que a Corte inspire a justiça doméstica a partir da aplicação das disposições do Acordo TRIPS.

O TRIPS exige que os Estados estabeleçam procedimentos justos e eqüitativos que favoreçam uma ação eficaz em desfavor de atos infracionais aos direitos de propriedade intelectual. De modo especial, devem-se incluir procedimentos que tem por foco prevenir e impedir infrações. O Tratado contém também as regras de recursos cabíveis, como medidas administrativas, medidas provisionais, medidas de execução e sanções penais. O TRIPS reconhece que medidas coercitivas relativas à propriedade intelectual podem variar de Estado para Estado, dependendo dos recursos disponíveis para a aplicação da lei em geral.

Diversos indicativos levam a entender que a Corte pode referir-se ao TRIPS para definir a obrigação positiva de proteger a propriedade intelectual. Primeiramente, o TRIPS tem trinta e nove dos quarenta e sete membros da Convenção Européia. A Corte tem considerado que a Convenção “deve ser aplicada em conformidade com os princípios do direito internacional”, incluindo os tratados de que o requerido faz parte. Para os trinta e nove países, a consulta ao TRIPS, quando da interpretação do art. 1º, iria contribuir para a harmonização das obrigações decorrentes do Tratado, para os Estados. Em um segundo aspecto, a Corte já tem declarado que a Convenção deve ter sua interpretação dada pelas tendências de direito regionais e internacionais. Assim, mesmo para países que não são membros da OMC, a Corte poderá consultar o TRIPS para elucidar questões domésticas de execução que o art. 1º exige (MOWBAY apud LAURENCE, 2008).

A Corte Européia de Direitos Humanos não está obrigada a obedecer a todas as nuances expressas no TRIPS, quando do trabalho de interpretação do art. 1º, precipuamente em casos concernentes a países que não são membros da Organização Mundial do Comércio. A Corte deve usar o TRIPS como uma referência para encontrar o ponto mínimo a ser observado em matéria de execução de normas, de modo a se obter “o justo equilíbrio que deve ser atingido entre o interesse geral da comunidade e os interesses do indivíduo” e que não seja “impossível ou imponha um encargo desproporcional para as autoridades” (ECHR apud LAURENCE, 2008).

Os detentores de direitos de propriedade intelectual, conscientes das analogias úteis oferecidas pelo TRIPS, podem invocar os tratados em três aspectos que se relacionam com o art. 1º.

Primeiro, os detentores de direitos de propriedade intelectual podem contestar as soluções individuais concedidas em processos de infração, mesmo que a ordem jurídica interna no conjunto satisfaça a regra da Convenção em seus requisitos. Isso é

improvável de ter sucesso no âmbito da Corte. Litígios relacionados ao montante da indenização são especificamente os tipos de casos relacionados ao direito interno em que a Corte raramente encontra culpa. Além disso, nada no TRIPS limita o poder discricionário dos tribunais nacionais na adaptação de soluções para fatos e circunstâncias de litígios individuais. Apenas excepcionalmente, quando os tribunais nacionais recusam-se a utilizar um remédio encomendado pela lei doméstica, a Corte poderia intervir.

Segundo, o Estado pode não ter sucesso em uma medida de execução feita à luz do TRIPS. No final dos anos 1990, por exemplo, os Estados Unidos atuou com êxito, mesmo não sendo parte, à falta de reparação civil ocorrida na Dinamarca e na Suécia. Muitos países europeus, atualmente, sujeitam-se às ordens de partes externas. Alguns proprietários de propriedade intelectual alegam, no entanto, que os procedimentos para a obtenção de uma ordem de um país que seja parte externa à contenda são “desnecessariamente complicados” e “caros”, em algumas jurisdições (IIPA apud LAURENCE, 2008).

Terceiro, o Estado pode não ter êxito na trabalho de evitar violações privadas de propriedade intelectual. Os processos, nesses casos, têm por foco defeitos no sistema civil, administrativo ou penal, que impedem os proprietários de propriedade intelectual de terem os seus direitos respeitados. Deficiências domésticas a este respeito são comuns na Europa Oriental, como pirataria e falsificação, na Ucrânia, Rússia e Turquia (USTR apud LAURENCE, 2008).

A Corte recentemente criou um acórdão de procedimento piloto que procura corrigir o uso sem consentimento dos direitos de propriedade intelectual. Com esse acórdão de procedimento piloto a Corte fez a primeira aplicação do mecanismo em 2004, quando uma decisão afetou por volta de oitenta mil imóveis de reclamantes poloneses. Foi aprovada uma decisão desse litígio, onde o Estado promulgou uma legislação com o foco de prevenir futuras violações ao art. 1º e fornecer remédios para satisfazer todos os proprietários atingidos. O caso torna pública a determinação da Corte de examinar problemas sistêmicos que afetam uma grande quantidade de proprietários em situações similares.

Os titulares de direitos de propriedade intelectual podem invocar o acórdão piloto a respeito de procedimento, caso haja incapacidade, após diligências razoáveis, de proteção dos trabalhos dos proprietários dentro de um território, cujo Estado figura como requerido em um processo judicial. Caso os titulares de direitos provem que a

pirataria é generalizada em determinada jurisdição, a Corte poderá exigir do governo que adote um sistema de reformas de seu sistema. Conforme sejam as violações, as medidas poderão incluir a promulgação da legislação nacional, procedimentos judiciais, além de recursos adicionais para a execução de ações penais e administrativas. A Corte pode utilizar-se do TRIPS para orientar as ações dos Estados nacionais, apesar da consciência de que nada no Acordo cria qualquer obrigação com relação à distribuição dos recursos entre direitos de propriedade intelectual e a aplicação da lei em geral, conforme art. 41 do TRIPS.

Que análise pode-se fazer da aplicação pela Corte do paradigma acima descrito? Os argumentos favoráveis são equivocados. Isso deriva do fato de que quando os governos reconhecem direitos exclusivos no campo do conhecimento dos produtos, os proprietários, a que se refere o art. 1º, da Convenção Européia de Direitos Humanos, podem esperar que sejam proporcionados pelos governos os meios para prevenir e punir terceiro que faz uso da propriedade intelectual sem o consentimento do titular. Isso é reforçado quando o Estado faz parte da Organização Mundial do Comércio e aceitou a obrigação de seguir as orientações do Tratado. Além disso, tendo em vista que o Estado incorporou mecanismos em seu ordenamento jurídico de meios garantidores dos direitos de propriedade, os detentores de direitos podem razoavelmente esperar que os Estados disponibilizem recursos suficientes para construir os tais mecanismos práticos e eficazes.

O paradigma da execução também levanta questões perturbadoras. A primeira diz respeito às diferenças judiciárias de acesso a regras da OMC e da Corte. Na OMC no sistema de resolução de litígios, apenas os Estados podem apresentar queixas alegando violações de tratado. Essa limitação à OMC permanece atualmente como uma política de filtro fundamental que limita o número e o tipo de controvérsia e como a disputa será resolvida.

O paradigma da execução ignora esse filtro político, permitindo que partes privadas possam litigar por causa de violações de disposições de execução do TRIPS a pretexto de violações das obrigações positivas prescritas no art. 1º. Com os anos de batalhas judiciais incessantes entre Anheuser-Busch e Budejovicy Budvar, muitas empresas foram incentivadas a utilizar os meios disponíveis para litigar em cada fórum. A Corte com a adoção do paradigma da execução teria assim um prenúncio de aumento do contencioso da propriedade intelectual com disputas enquadradas como denúncias de

direitos humanos, incluindo os casos que, sob o sistema atual, não teria sido litigado ou teriam sido resolvidos politicamente.

O segundo ponto preocupante do paradigma da execução diz respeito aos desiguais recursos associados quando processos são remetidos à OMC e à Corte. Conquanto em ambos os tribunais recomendem respostas para Estados que violem os compromissos do Tratado, os poderes da Corte são mais amplos no âmbito da reparação, pois acórdãos recentes incluíam recomendações de reabrir processos judiciais arquivados e da revisão de leis internas. Além disso, indenizações por danos são geralmente inferiores a 10 000 euros, mas a Corte tem poder discricionário para conceder qualquer alívio financeiro. Em casos de propriedade intelectual, no entanto, os prêmios por prejuízos pecuniários podem assumir proporções gigantescas, sendo o maior recorde em quase 31 milhões. Alguns governos têm pagado essas quantias, outros não (LAURENCE, 2008).

Quando a Corte solicita aos tribunais nacionais a adoção de certos remédios, quando afirma que o art. 1º está sendo violado, existe a possibilidade de imposição de obrigações positivas significativas sobre os sistemas jurídicos nacionais. Se os países não adotarem as medidas que a Corte recomenda, os detentores de direitos, que sofreram violações, podem queixar-se perante a Corte requerendo uma compensação. Além disso, ao abrigo do novo acórdão de procedimento piloto, a Convenção poderia recomendar reformas sistemáticas beneficiando todos os detentores de direitos em situação similar. Em caso de contrabando e pirataria, por exemplo, a Corte poderia conceder grandes prêmios monetários para uma classe inteira de detentores de direitos, se os Estados não melhorarem os seus processos judiciais. Essas preocupações sugerem para se ter um equilíbrio, que a Corte deveria evitar interpretar o art. 1º para permitir aos proprietários de propriedade intelectual o desafio de se adequarem aos mecanismos internos.