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2 2 Do quadro referencial à Grounded Theory

3. O paradigma investigativo construtivista

Os investigadores de análise qualitativa são filósofos, no sentido em que se deixam guiar por princípios abstratos que estão associados às crenças que o investigador faz sobre a realidade e aquilo que o rodeia. Estes princípios combinam crenças sobre a forma como se conceptualiza a realidade (ontologia), a relação entre o investigador e a realidade (epistemologia) e sobre as estratégias que o investigador utiliza para conhecer o mundo e adquirir o conhecimento (metodologia) (Guba, 1990; Lincoln & Guba, 2006).

Estas crenças influenciam a forma como o investigador pesquisa o conhecimento e orienta a sua ação. A este conjunto de princípios abstratos designa-se paradigma de investigação. Conforme é referido por Lincoln & Guba (2006) toda a pesquisa é guiada por um conjunto de crenças e de sentimentos que nos direcionam na interpretação dos dados. São construções humanas que definem a visão do mundo do investigador (Munck & Souza, 2011). O investigador, ao escolher um paradigma em detrimento de outro, assume uma determinada ‘identidade’ que irá orientar a sua ação, aquando da prática investigativa, e que terá certas características correspondentes ao paradigma que elegeu (Lincoln, 1990). Ao se identificar com uma determinada escola do conhecimento ou ao defender os preceitos que regem um paradigma de investigação, inconscientemente ou mesmo conscientemente, o investigador assume uma identidade e ignora as contribuições que sejam provenientes de outro paradigma investigativo (Lincoln & Guba, 2006). Não se é positivista e ao mesmo tempo construtivista, pois os critérios que lhe estão associados e a forma como estes paradigmas posicionam o investigador situam-se em polos opostos. Embora a literatura sugira uma dicotomia entre o paradigma positivista ou pós-positivista e os paradigma construtivista ou construtivista-social alguns autores sugerem a existência de pelo menos mais dois paradigmas o paradigma crítico ou marxista e o paradigma feminista pós- estrutural (Lincoln & Guba, 2006). O paradigma que escolhemos, ou que emergiu no decorrer da investigação, foi o paradigma construtivista ou construtivista-social. Na Tabela 1 justifica-se a decisão de acordo com as características mais relevantes deste paradigma.

Item Paradigma construtivista Estudo

Objetivo

investigativo Compreensão; reconstrução Identificar o conceito e as fundações da aprendizagem potenciada pela tecnologia

Natureza do

conhecimento Reconstruções individuais que se fundem em torno de um consenso Construções teóricas e empíricas (entrevistas e Focus-Group) sobre o objeto investigativo. Interpretação sobre

estas construções

Acúmulo do

Item Paradigma construtivista Estudo

teóricas

Bondade ou critérios

de qualidade Fidedignidade e autenticidade Procura constante da validação através da triangulação, discussão e validação por especialistas

Voz “Participante apaixonado” como um

facilitador de reconstrução multivocal O investigador assume um papel interpretativo sobre os dados que vai retirando do objeto investigativo

Acomodação Incomensurável A mensuração do objeto investigado não é imediata e

torna-se de difícil acesso

Controle Compartilhado entre investigador e

os participantes Existência de fases de discussão e validação por especialistas em diversas fases do processo investigativo

Tabela 1: Adaptação das tabelas propostas por Lincoln & Guba (2006, p. 172) e por Heron & Reason (1997) que retratam as práticas do paradigma construtivista

No construtivismo procura-se compreender o fenómeno, o envolvimento do significado de vários participantes, a construção histórica e social, a geração de teorias sobre o fenómeno. Os indivíduos procuram compreender os fenómenos do mundo que os rodeia desenvolvendo significados a partir das suas experiências e que estão assentes nos seus próprios objetivos (Creswell, 2009). Estes significados são variados e múltiplos levando o investigador a procurar compreender a complexidade das observações e não limitar-se a reduzir o seu significado a um conjunto de ideias e categorias. As questões tornam-se, assim, mais abertas permitindo aos sujeitos participantes interagir com os conceitos e com as pessoas que os rodeiam para construir os seus significados. Lincoln & Guba (2006) sugerem algumas palavras-chave que caracterizam o paradigma construtivista:

• Relativismo: a realidade é relativa, não existe uma verdade e esta não é estanque;

• Subjetividade: deve existir espaço para a subjetividade de opiniões e de perceções dobre o objeto investigado, daí que exista a necessidade de se ouvir diversas opiniões de diversos atores; • Dialogocidade: permanente diálogo entre o investigador, os participantes na investigação e a

literatura;

• Interatividade: constantes interações entre os participantes na investigação e o construto. O processo de construção não se fecha apenas numa interação, existem constantes modificações suscitadas pelas interações e pelas releituras destas interações que o investigador faz.

• Contexto: o contexto da investigação influencia os dados recolhidos. O contexto pode estar associado ao espaço físico (a localização da entrevista, o contexto da instituição), ao espaço temporal (as perceções sobre um objeto hoje são diferentes das que se tem daqui a dois anos) ou a fatores emocionais (estado emocional do entrevistado no dia da entrevista)

Capítulo II: Metodologia - 3. O paradigma investigativo construtivista

• Múltiplas realidades: a realidade depende do contexto e do espaço em que esta decorre. A realidade de uma instituição é diferente de outra, a realidade de um país é diferente da realidade de outro país. É por isso importante procurar vivenciar diversas realidades, seja através da literatura seja através de campos de pesquisa.

• Indução: num estudo qualitativo existe espaço para o investigador induzir conceitos face aos dados que vai recolhendo das fases de investigação teóricas e das fases de investigação empírica. • Compreensão: tendo em conta as palavras-chave que norteiam esta investigação e,

genericamente, as investigações qualitativas, é fundamental desenvolver mecanismos que permitam facilitar a compreensão por parte dos leitores. Existe necessariamente um espaço de afirmação individual do investigador, na indução sobre os dados, na formulação dos conceitos, na construção do conhecimento, mas esta afirmação deve ser compreendida pelo leitor.

Those who engage in this form of inquiry support a way of looking at research that honors an inductive style, a focus on individual meaning, and the importance of rendering the complexity of a situation (Creswell, 2009, p. 4).

Nos estudos qualitativos existem diversas menções ao papel do investigador na interpretação dos dados recolhidos durante a investigação (Denzin & Lincoln, 2006; Fine, Wies, Weseen, & Wong, 2006; Gergen & Gergen, 2006; Lincoln, 1990; Lincoln & Guba, 2006). Kincheloe & McLaren (2006) referem-se à tradição da hermenêutica crítica que se sugere o facto de na pesquisa qualitativa existir apenas a interpretação do investigador sobre os factos. O ato hermenêutico da interpretação envolve o entendimento daquilo que foi observado de forma a comunicar a compreensão. Os investigadores qualitativos que estão familiarizados com a hermenêutica crítica constroem pontes entre os leitores e o texto, o texto e quem o produz, o contexto histórico e a atualidade, uma circunstância social e outra (Kincheloe & McLaren, 2006). Existe, por isso, um especial enfoque no papel do investigador no desenvolvimento do conhecimento, ele não é apenas um relator mas também é um sujeito interpretativo e reflexivo. Este perfil leva, fatalmente, a uma dialética entre o papel interpretativo do investigador e a sua falta de objetividade (Fine, 1994).

3.1. Reflexões sobre a validade, reflexividade e autenticidade

A reflexão sobre a objetividade, ou melhor, da falta dela é uma das maiores características da investigação qualitativa (Denzin, 1989; Fernandes, 1991; Fine, et al., 2006; Gergen & Gergen, 2006; Holstein & Gubrium,

2004; Lincoln, 1990; Lincoln & Guba, 2006). Afirma-se que neste paradigma há uma forte componente de observações que inevitavelmente irão ser traduzidas em atitudes e convicções dos observadores. De facto, sabe-se que a perceção que um sujeito tem de um dado fenómeno é fortemente influenciada ou distorcida pelas suas convicções ou até pelos seus interesses. Há pois um problema de objetividade que pode derivar da

pouca experiência, da falta de conhecimentos ou da falta de sensibilidade do principal “instrumento” de recolha de dados – o investigador (Fernandes, 1991, p. 4). Existe uma tendência de se associar o EU (investigador) como

um sujeito potencialmente contaminador e que deve ser, por isso, neutralizado, minimizado, padronizado e controlado. Existem referências aos aspetos subjetivos e pessoais da experiência (Morawski & Bayer, 1995) que embora tragam qualidade investigativa podem contaminar a validade da investigação. Mesmo que exista a presunção de que os investigadores estão sempre presentes nos textos que escrevem continua a existir o problema de incluir a existência do EU (Fine, et al., 2006).

Por outro lado, o investigador já não existe sozinho, ele trabalha cada vez mais em rede, com contactos formais ou informais com outros investigadores e, como investigador qualitativo, ele envolve-se em processos de comunicação em contexto, o que significa que existe um contexto interno e externo à investigação (Markham, 2004). A Internet, por exemplo, alterou o processo de construção de conhecimento pois permite promover a existência de redes de conhecimento que “ajudam” na recolha para a investigação de novos contributos empíricos e teóricos, voluntários, mas também involuntários. A existência de interação social com outros investigadores, detentores de ideias diferentes, localizados em contextos diferentes, defensores de correntes metodológicas diferentes, facilita a existência de fluxos de influência com os quais o investigador qualitativo deve saber lidar (Markham, 2004). Cabe, portanto, ao investigador refletir permanentemente sobre a validade e a autenticidade dos conceitos que vai produzindo. Como refere Fernandes (1991) a qualidade (validade e fiabilidade) dos dados depende muito da sua subjetividade, da sua sensibilidade, da sua integridade e do seu conhecimento. Os investigadores não se devem esconder da sua subjetividade, devem procurar formas de demonstrar aos leitores a intencionalidade que colocam, os seus investimentos pessoais na pesquisa, as diversas tendências que trazem para o seu trabalho, as vicissitudes da sua investigação e os aspetos em que evitaram ou suprimiram certos pontos de vista (Gergen & Gergen, 2006). Concorda-se com a ideia de que não se deve esconder a subjetividade e que o papel como investigador é de saber como comunicar esta subjetividade com os leitores.

Para isso nortear-se-á a investigação segundo critérios de fiabilidade e de autenticidade que como nos é referido por Guba & Lincoln (Guba & Lincoln, 1989; Lincoln & Guba, 2006) são aspetos distintivos da investigação autêntica, confiável, rigorosa ou construtiva válida ou fenomenológica. Resulta assim que os passos que o investigador faz durante a investigação devem estar justificados, facilmente comprováveis e

Capítulo II: Metodologia - 3. O paradigma investigativo construtivista

tacitamente compreensíveis para quem participa na investigação. Daí que tenha surgido a necessidade do investigador de apresentar em anexo os guiões das entrevistas (apêndices ap2 e ap4) e do Focus-Group (apêndice ap3) e o processo de validação do referencial.

Paralelamente à tentativa de manter um rigoroso compromisso metodológico de justificar os passos seguidos durante todo o processo investigativo, considerou-se fundamental enquadrar a relevância que tiveram o processo de triangulação e o processo de análise de conteúdo para fortalecer a validação e credibilidade dos conceitos e proposições emergidas.

Triangulação

Triangulation may be defined as the use of two or more methods of data collection in the study of some aspect of human behavior (Cohen, Manion, & Morrison, 2000, p. 112).

Triangular é procurar combinar dados provenientes de mais do que uma técnica de recolha de dados. A triangulação proposta por Fine et al. (2006) propõe misturar, inverter e explorar os diferentes tipos de dados qualitativos que se baseiam em narrativas. Como nos refere Flick (1992) a triangulação é a melhor maneira de compreender a combinação de métodos múltiplos: estudos teóricos, estudos empíricos e as perceções do investigador num único estudo. A triangulação acrescenta rigor, amplitude e profundidade à investigação. A triangulação não é uma ferramenta, nem uma estratégia de validação mas uma alternativa à validação tradicional quantitativa (Denzin, 1989; Flick, 1992)

Triangular techniques in the social sciences attempt to map out, or explain more fully, the richness and complexity of human behavior by studying it from more than one standpoint and, in so doing, by making use of both quantitative and qualitative data. The more the methods contrast with each other, the greater the researcher’s confidence (Cohen, et al., 2000, p. 112).

Embora não sejam utilizadas técnicas de recolha de dados quantitativas existe a intenção, no decurso da investigação, de se fazer um mapeamento ou triangulação com os dados recolhidos das diversas técnicas utilizadas. O objetivo é triangular dados emergidos das entrevistas, do Focus-Group, do estudo teórico e dos momentos de discussão e validação por especialistas, por forma a criar robustez dos dados e permitir ao investigador induzir os conceitos e proposições.