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Participação e deliberação na perspectiva da democracia deliberativa

No documento Todo Risco A possibilidade de arriscar (páginas 34-38)

2.2 AS CONTRIBUIÇÕES DO DEBATE SOBRE PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO

2.2.1 Participação e deliberação na perspectiva da democracia deliberativa

O debate contemporâneo sobre a democracia está fundamentado nas críticas ao modelo da democracia liberal-representativa feitas pelos teóricos da democracia participativa e da democracia deliberativa. Embora oriundos de tradições teóricas distintas (FUNG e COHEN, 2004), estes modelos advogam que a participação política da sociedade civil, via espaços públicos institucionais de debate e decisão coletiva, é fundamental para a ampliação do escopo democrático dos sistemas políticos.

Na América Latina desenvolvem-se novos espaços públicos de participação e deliberação, fazendo com que as reflexões sobre a democracia pensem outras possibilidades de construção de uma sociedade democrática. No Brasil, desde a década de 1980 se observa um aumento destes espaços na sociedade civil e aqueles que articulam a gestão pública aos grupos sociais até então dela excluídos. Estes espaços estão

[...] re-significando a ideia de democracia e demonstrando, em distintas escalas e graus de complexidade, que é possível construir um novo projeto democrático baseado nos princípios da extensão e generalização do exercício dos direitos, da abertura de espaços públicos com capacidades decisórias, da participação política da sociedade e do reconhecimento e inclusão das diferenças. (DAGNINO et al., 2006, p. 14, grifo nosso).

Observa-se que o aumento do número de espaços participativos é resultado não só de movimentos populares por participação nas decisões públicas, mas também, da gestão pública que procura “[...] ampliar os canais de comunicação e negociação entre Estado e Sociedade”

(COELHO e FAVARETO, 2007, p. 97) para a elaboração de políticas públicas mais eficazes.

São experiências que têm sido estabelecidas em todos os níveis da Federação, como os Conselhos de Saúde, Conselhos de Assistência Social, Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselhos de Segurança, Conselhos do Meio Ambiente e Orçamentos Participativos (OPs).

O espaço participativo previsto pela instituição RESEX, o Conselho Deliberativo, configura-se como um tipo de espaço público que visa “a ampliação e democratização da gestão estatal” (DAGNINO, 2002), na medida em que pressupõe a participação de grupos usuários dos recursos naturais, as populações extrativistas, na gestão estatal destes recursos.

O espaço público nos quais ocorre a participação e a deliberação dos assuntos públicos é central para o desenvolvimento da democracia deliberativa. É nestes espaços que se executa a interação social para além do Estado. Conforme refere Avritzer, é no espaço público que:

[...] os indivíduos interagem uns com os outros, debatem as decisões tomadas pela autoridade política, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes no nível da sociedade e apresentam demandas em relação ao Estado. Os indivíduos no interior de uma esfera pública discutem e deliberam sobre questões políticas, adotam estratégias para tornar a autoridade pública sensível a suas deliberações. [...] a ideia aí presente é de que o uso público da razão estabelece uma relação entre participação e argumentação pública (AVRITZER, 2000, p. 36).

A participação nas decisões sobre as questões públicas é condição para o desenvolvimento da democracia deliberativa. Ela constitui o debate público do qual fazem parte os atores que serão atingidos pelas decisões tomadas no espaço público. Só assim as deliberações são legitimadas. Segundo Lüchmann (2006, p. 17) a participação é “[...] um processo no qual a população toma parte (ativamente e de formas variada) nas decisões políticas.”. Ainda que em posições sociais desiguais, o espaço público proporciona aos participantes a possibilidade do debate fundamentado na razão, no qual a argumentação permite a inserção de distintos pontos de vista sobre determinado assunto conduzindo a um processo de tomada de decisão mais inclusivo e plural.

Assim, a deliberação decorrente da participação é o resultado de um debate no qual as argumentações em torno de posições apresentadas sobre uma questão devem ser discutidas, avaliadas, por todos os participantes do debate. Segundo Avritzer (2000, p. 25), “a origem etimológica deste termo deliberação permite dois significados: ‘decidir, resolver’ ou

‘ponderar, refletir’.”. O aspecto decisório caracterizou o processo deliberativo, desde autores clássicos como Jean Jacques Rousseau. Isto leva à ideia da possiblidade de decisões sem participação. Contudo, a ideia de “ponderar, refletir”, tem sido usada desde 1970 “[...] para exprimir a ideia de um processo de discussão e avaliação no qual os diferentes aspectos de uma determinada questão são pesados” (id. ibid.).

Por estar assentada na perspectiva argumentativa, a teoria democrática deliberativa defende procedimentos de debate e decisão coletivos que incluam todas as pessoas possivelmente afetadas, as quais interagem por meio de um discurso racional para a produção das deliberações (HABERMAS, 1995). Embora resultado de um processo participativo, argumentativo, racional, as decisões não são necessariamente unânimes. Elas podem se conformar como “[...] acordos produzidos por meio de processos justos, inclusivos e cooperativos, e a forma de se tomar as decisões contribui para que todos as aceitem, mesmo que delas discordem, pois reconhecem que puderam influenciar no processo e contribuíram para os resultados.” (CUNHA, 2007, p. 28).

A democracia deliberativa possibilita o enfrentamento de estruturas de poder estabelecidas (OGANDO, 2010, p. 94) e avanços na construção de novos arranjos de poder para as decisões coletivas. Sobre esse assunto, Lüchmann sintetiza as principais características da democracia deliberativa:

A democracia deliberativa advoga que a legitimidade das decisões políticas advém de processos de discussão que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, conferem um reordenamento na lógica de poder tradicional. [...]

A democracia deliberativa constitui-se, portanto, como processo de institucionalização de espaços e mecanismos de discussão coletiva e pública, tendo em vista decidir o interesse da coletividade, cabendo aos cidadãos reunidos em espaços públicos a legitimidade para decidir, a partir de um processo cooperativo e dialógico, as prioridades e as resoluções levadas a cabo pelas arenas institucionais do sistema estatal (LÜCHMANN, 2007, p.

186, grifo nosso).

As constatações referenciadas acima, nos conduzem a seguinte questão: a democracia deliberativa conduz ao empoderamento? A partir das considerações sobre empoderamento de Wendhausen, Barbosa e Borba (2006, p. 133), é possível pensar que sim.

Para essas autoras, o empoderamento, um conceito polissêmico, “[...] significa o aumento do poder, da autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, discriminação e dominação social”.

Para que isso ocorra é necessário que exista um processo de participação democrático, no qual os excluídos possam, efetivamente, deliberar sobre os aspectos que afetam diretamente suas vidas: políticas públicas, recursos públicos, e outros assuntos coletivos que envolvem interesses diversos, como a apropriação e uso dos recursos comuns.

Neste sentido, segundo as mesmas autoras “[...] empoderar passa a ser o papel de gestão, parceria e responsabilidade que cada ator social assume junto com o Estado, diante da vida.”

(WENDAHAUSEN; BARBOSA; BORBA, 2006, p. 133). Portanto, pressupomos que experiências coerentes com os pressupostos da democracia deliberativa podem gerar empoderamento de grupos politicamente excluídos.

A partir das considerações acima, torna-se relevante apreciar os pressupostos da teoria da democracia deliberativa, tendo em vista o processo participativo de decisão nas RESEX. Embora o contexto institucional das RESEX seja bastante peculiar, o espaço e os mecanismos de discussão e decisão normatizados por esta instituição, o Conselho Deliberativo, assemelham-se àqueles idealizados pela democracia deliberativa, cujos princípios foram apresentados acima (HABERMAS, 1995; AVRITZER, 2000; FUNG;

COHEN, 2007; LÜCHMANN, 2007; CUNHA, 2007). Como veremos no próximo capítulo, o formato jurídico-institucional RESEX regulamenta que os acordos/normas estabelecidos, entre o Estado e os grupos usuários, para gestão de determinada base de recursos comuns – sobre os quais transcorremos na seção anterior deste capítulo – devem ser construídos através de procedimentos institucionais de debate e decisão coletivos semelhantes àqueles requeridos pelo modelo da democracia deliberativa (OSTROM, 2000; BERKES, 2005, 2009).

Conselho Deliberativo das RESEX é um espaço jurídico-institucional que articula Estado e sociedade na gestão/conservação dos recursos naturais, uma vez que prevê a participação das populações extrativistas na tomada de decisão sobre a gestão deste tipo de Unidade de Conservação (UC). Portanto, este espaço se configura como uma esfera pública na arena da gestão/conservação dos recursos comuns, que visa à ampliação da participação de grupos específicos da sociedade civil – as populações extrativistas.

A análise da experiência do Conselho Deliberativo da RESEX do Pirajubaé, proposta nesta tese, tem a ambição de verificar sua efetividade como um espaço participativo e deliberativo, no sentido de possibilitar a gestão democrática desta UC. Intentamos assim compreender em que medida os princípios que devem orientar o processo de debate e decisão, na perspectiva do modelo da democracia deliberativa, estão presentes no referido Conselho.

Isso significa, em última instância, verificar se os processos de deliberação neste espaço participativo, de fato, promovem “um re-ordenamento na lógica de poder tradicional” e, portanto, alteram a distribuição do poder entre agência governamental (ICMBio) e os usuários dos recursos (população extrativista) nas tomadas de decisão sobre a gestão da RESEX.

No item seguinte discorreremos sobre estudos que têm apontado diversos obstáculos para a concretização dos ideais do modelo da democracia deliberativa nas experiências participativas analisadas (LÜCHMANN, 2006, 2007, 2009). Segundo Lüchmann (2007, p.

187) são críticas relacionadas à “[...] ênfase que ele confere às condições de igualdade, liberdade e pluralidade participativa e na possibilidade de construção de consensos políticos e legítimos.” Consideramos que muitas destas críticas são contundentes para compreendermos os obstáculos que podem obstruir o processo participativo-deliberativo e, portanto, minar os avanços do Conselho Deliberativo da RESEX, no sentido de se constituírem uma experiência coerente com o modelo da democracia deliberativa.

No documento Todo Risco A possibilidade de arriscar (páginas 34-38)