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RESEX: DA PROPOSTA À POLÍTICA PÚBLICA

No documento Todo Risco A possibilidade de arriscar (páginas 53-58)

A política pública que estabelece o modelo de Reserva Extrativista (RESEX) foi uma conquista do movimento dos seringueiros na Amazônia, nas décadas de 1980 e 1990. Isso torna sui generis a concepção histórica e sociopolítica dessa modalidade de Unidade de Conservação, uma vez que foi resultado de um movimento social.

Segundo Allegretti (2008, p. 47),

[...] uma definição Institucional apropriada ao conceito de Reserva Extrativista e a criação das primeiras unidades só foram possíveis depois que os conflitos gerados pelo desmatamento da Amazônia envolveram a opinião pública internacional.

Sobre tais confrontos, Allegretti (2008) observa que o estopim para a explosão dos mesmos foi o modelo de desenvolvimento da Amazônia, imposto pelo regime militar, a partir de 1967, com a Operação Amazônia. Esta se consistiu num conjunto de medidas que, de um lado, encerrou a política de proteção à borracha e, de outro, disponibilizou incentivos fiscais para atrair capital do sul do Brasil e transformar os antigos seringais em fazendas agropecuárias.

Retomando a história, Cunha (2011) esclarece que o movimento seringueiro contrapôs-se a um modelo de exploração agropecuária incentivado pelas políticas governamentais. Neste contexto, Porto-Gonçalves (1999, p. 74) explica que a partir de 1970 em diante assistiremos a um processo de intensos conflitos entre aqueles que dependem da floresta para viver e aqueles que querem devastá-la, posto que a floresta não tem nenhum

valor de uso para quem quer fazer pasto. De 1970 a 1975, os seringueiros foram expulsos de suas colocações14 para a periferia das cidades, sem qualquer indenização, e a floresta começou a ser derrubada (ALLEGRETTI, 2008). Em 1975, foram criados os primeiros Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), por iniciativa da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que passou a intermediar os conflitos. No entanto, os seringueiros não se contentaram com esta solução e gradativamente desenvolveram um movimento em prol do reconhecimento do direito de reprodução do modo de vida que os definiam:

[...] os seringueiros começaram a perceber que um lote de terra, nos moldes preconizados pela reforma agrária na Amazônia, significava abandonar o trabalho com a Borracha e outros produtos da Floresta. [...] chegaram à conclusão de que a saída não era deixar a colocação e, sim, buscar uma solução definitiva para os conflitos, ou seja, o reconhecimento legal do direito, não só a terra, mas da forma como viviam na floresta (ALLEGRETTI, 2008, p. 46-47).

Dez anos depois, em outubro de 1985, acontecia o I Encontro Nacional dos Seringueiros, que resultou na criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Este Conselho propôs “[...] uma reforma agrária inspirada no modelo das reservas indígenas e nas unidades de conservação, as Reservas Extrativistas” (ALLEGRETTI, 2008, p. 46). Em decorrência da organização e mobilização dos seringueiros, surgiu a primeira proposta política da Reserva Extrativista (RESEX), através da Portaria nº 627, de 30 de junho de 1987 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que cria os Projetos de Assentamentos dos Extrativistas (PAEs) (ALLEGRETTI, 2008; CUNHA, 2011). Desta forma, a RESEX emerge no âmbito da reforma agrária e não no âmbito da conservação da biodiversidade.

Para Cunha (2011) a RESEX surge como uma proposta de mudança na estrutura territorial e socioeconômica da região em que o “direito de ficar” se sobrepõe ao “direito de ir e vir” dominante na sociedade capitalista e explicitado pelo direito de compra e venda de propriedades.

A criação da RESEX deve ser entendida no contexto de redemocratização que se instaurou no Brasil, a partir da década de 80, e implicou novas articulações entre Estado e Sociedade, principalmente, a partir da constituição de 1988 (SCHERER-WARREN e LÜCHMANN, 2004; DAGNINO, 2002; GOHN, 2004; DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006). O Estado passa a reconhecer a legitimidade dos movimentos sociais e a estabelecer parceria nas soluções para as reivindicações desse movimento. A institucionalização das

14 Local de produção dos Seringueiros (CUNHA, 2011).

RESEX é o resultado da relação diferenciada que o Estado passa a ter com os movimentos sociais na arena política ambiental, representando o reconhecimento da legitimidade do movimento seringueiro e suas demandas pelo Estado de Direito.

A Constituição de 1988, que contemplou a questão ambiental com a inclusão de um capítulo relativo ao meio ambiente (Capítulo VI - do meio ambiente Art. 225), engendrou uma nova oportunidade para a institucionalização da RESEX, ao tornar possível a criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo poder público e abrir caminho para formas inovadoras de gestão de territórios de interesse ambiental (ALLEGRETTI, 2008; CUNHA, 2011). A Lei 7.804, de 24/07/1989 compatibilizou a Política Nacional de Meio Ambiente com os dispositivos constitucionais de 1988, e incluiu as Reservas Extrativistas como um espaço territorial a ser protegido pelo poder público (ALLEGRETTI, 2008).

Ao mesmo tempo, outro fator que colaborou substancialmente para a institucionalização da RESEX foi, sem dúvida, a aliança que o movimento seringueiros realizou com os ambientalistas (ALLEGRETTI, 2008; CUNHA, 2010, 2011). O desenvolvimento desta aliança não só ampliou a visibilidade do movimento internacionalmente e criou estratégias para o atendimento de suas reivindicações, como foi capaz de articular a questão social e a questão ambiental, no sentido da interdependência e não da dicotomia entre estas duas dimensões. Ao descrever este processo, Cunha (2011, p. 10) observa que

[...] enquanto a conjuntura da política agrária era desfavorável para a incorporação dos interesses dos seringueiros, na política ambiental vislumbrava-se espaço para construção de uma categoria de uma Unidade de Conservação (UC) que resguardasse os fundamentos requeridos pelos seringueiros e, ao mesmo tempo, fortalecesse a aliança com o movimento ambientalista. [...] Nesse momento, as discussões ambientais ainda não representavam um terreno de disputas para o qual as frações conservadoras da burguesia nacional tivessem se voltado.

Na realidade, a proposta do modelo Reserva Extrativista foi formulada em 1985, pelo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Sob o contexto de pressões internacionais, redemocratização e, particularmente, em torno da noção de desenvolvimento sustentável15, a

15 A discussão acerca do desenvolvimento sustentável é relativamente recente e bastante polêmica. A história deste debate nos revela a forma como os discursos alternativos e progressistas são apropriados pelo discurso hegemônico na sociedade capitalista. Acserald, Melo e Bezerra (2008) afirmam que o discurso sobre sustentabilidade tem se baseado, principalmente, em categorias socialmente vazias, pois as noções adotadas por este discurso geralmente não contemplam a diversidade social e as contradições que perpassam a sociedade quando está em jogo a legitimidade de diferentes formas de apropriação dos recursos de um território. Os diagnósticos e as definições têm se situado no campo técnico, apresentando-se como segregados da dinâmica da sociedade e, consequentemente, da luta social (ACSERALD, MELO e BEZERRA, 2008).

aliança do movimento seringueiro com os ambientalistas foi de tal maneira expressiva, que a proposta do modelo RESEX consolidou-se, como política pública, em 1990. É nesse momento que as discussões e preocupações nacionais sobre a problemática ambiental se acentuavam. Desta forma, a crescente atenção dada à questão ambiental em âmbito internacional e nacional foi, certamente, um fator de grande relevância para o reconhecimento do movimento dos seringueiros e da proposta RESEX pelo Estado de Direito brasileiro.

Em última instância, a proposta RESEX só foi consolidada como política pública graças à árdua e persistente luta dos seringueiros, aliada ao cenário político favorável. O processo crescente de redemocratização do Estado e da Sociedade e o acirramento das discussões e preocupações, frente às pressões internacionais sobre a problemática ambiental e o “Desenvolvimento Sustentável”, são os principais condicionantes da criação de uma nova proposta de relação entre a sociedade e a natureza no processo de gestão dos recursos comuns (AVRITZER, 1995; AVRITZER e COSTA, 2004; DAGNINO, 2002; GOHN, 2004 entre outros).

Em 30 de janeiro de 1990, a figura jurídica “Reserva Extrativista” foi instituída na política ambiental brasileira através do Decreto nº 98.897. As RESEX foram definidas como

“espaços territoriais destinados à exploração autossustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por população extrativista (BRASIL, 1990), estabelecendo que seriam criadas em espaços de interesse ecológico e social” (CUNHA, 2011, p. 11).

Para Allegretti (2008, p. 49) a Reserva Extrativista “[...] foi uma proposição de um novo modelo de desenvolvimento que associasse a proteção da floresta com benefícios econômicos e sociais para as populações locais”.

A RESEX solucionou a preocupação central e originária do movimento dos seringueiros: a questão da propriedade da terra. Mais especificamente,

Com a institucionalização das RESEX na política ambiental estavam resolvidas as duas preocupações dos seringueiros em relação aos Projetos de Assentamento Extrativistas (PAEs, INCRA, 1987): fragilidade jurídica (as RESEX passaram a ser criadas por decreto presidencial e apenas poderiam ser revogadas por intermédio da Lei) e a necessidade prévia de desapropriação (por serem consideradas áreas de interesse social essa obrigatoriedade desaparecia) (CUNHA, 2011, p. 7).

Sobre a aproximação do movimento dos seringueiros ao movimento ambiental, ressaltamos que a proposta RESEX surge de uma luta pela posse e uso do território e de seus recursos naturais comuns, e não a partir de interesses relacionados a uma visão ou prioridades puramente conservacionistas. O que levou os seringueiros ao enfrentamento do desmatamento

nos territórios por eles utilizados para o extrativismo não foi o sentido da conservação da natureza, mas a necessidade de proteger os recursos naturais necessários à sobrevivência da atividade econômica que garantia a reprodução desse grupo social (ALLEGRETTI, 2008).

Neste sentido, Lobão (2006) destaca que durante o Encontro Nacional dos Seringueiros (ENS), no qual foi elaborado o Projeto RESEX, nas falas dos sujeitos seringueiros em nenhum momento apareceu o termo “Meio Ambiente”. “Falava-se em floresta, borracha, recursos da natureza, colocação, enfim, conceitos concretos para o universo dos seringueiros.”

(LOBÃO, 2006, p. 37).

Assim, no nosso entender, o Movimento Seringueiro pode ser um exemplo de

“ambientalização” de um movimento social. Como destaca Cunha (2010), o Movimento Seringueiro se apropriou do discurso ambientalista agregando o valor ambiental à causa social.

Mais do que proteger o “verde”, os seringueiros buscavam assegurar as suas condições materiais de existência e reprodução, o que dá sentido a muitas das decisões tomadas pelo Movimento durante seu percurso, assim como às articulações firmadas com diferentes atores sociais. Mostrava-se, na prática, a indivisibilidade entre a questão social e ambiental [...] (CUNHA, 2010, p.

81).

Essa tendência consolidou-se na conferência Rio 92. Para Allegretti (2008), nesta ocasião, reconheceu-se a “tradicionalidade” das populações extrativistas e o papel que elas desempenhavam na manutenção de ecossistemas e recursos, considerando-as como protagonistas de um projeto de desenvolvimento sustentável. Contudo, a suposta “função”

delegada pelos ambientalistas a estes grupos sociais e difundida na conferência Rio 92, embora tenha promovido visibilidade e certos benefícios para tais grupos, principalmente em termos de direitos, atribuiu a eles um excesso de responsabilidade sobre a conservação e a sustentabilidade dos recursos naturais, não reivindicada pelo movimento dos seringueiros.

Além disso, criou-se uma tendência a pensar os modos de vida destas populações extrativistas a partir de uma visão estática, na qual esta suposta “tradicionalidade”

inerentemente conservacionista e socialmente justa seria a principal qualidade das mesmas, tornando-as, automaticamente, aptas “ecologicamente” para gerir os recursos naturais.

Produziu-se, assim, uma imagem extremamente romantizada destas populações para os formadores e implementadores de política públicas ambientais e para a sociedade em geral (CUNHA e ALMEIDA, 2000; ALMEIDA e PANTOJA, 2004). Este estigma imputado a tais populações acabaram por lhes gerar uma série de novas dificuldades sociopolíticas e obstáculos institucionais, principalmente, no que se refere à negociação dos seus objetivos de

desenvolvimento local com as agências governamentais ambientais.

Em função, também, da realização da conferência Rio 92, ocorreu uma mudança institucional na agência governamental ambiental, que corresponde à criação de um órgão especialmente orientado para a criação e implantação de RESEX dentro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT) (ALLEGRETTI, 2008).

Destarte, a partir da conferência Rio 92 até os dias atuais, observa-se uma expansão crescente na criação das RESEX, que passaram a ser implementadas também em áreas costeiras, constituindo-se na versão RESEX marinha (ALLEGRETTI, 2008). Essa situação é reforçada pelo Decreto n° 6.040 (BRASIL, 2007) que regulamenta a Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Para Chamy (2004, p. 4) este aumento do número de pedidos para a criação das RESEX “[...] pode ser um indício de fortalecimento e amadurecimento das estruturas de organização e mobilização de uma parcela populacional marginalizada na defesa de seus direitos consuetudinários.”.

No entanto, a integração da RESEX no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em 2000, como componente do conjunto de Unidades de Conservação de Uso Sustentável, trouxe claras mudanças em relação à forma originalmente concebida, principalmente, no que se refere à sua estrutura de gestão e decisão (CUNHA, 2011).

Abordaremos então, na seção seguinte, sobre os avanços e os limites da RESEX, tendo em vista as modificações sofridas durante seu processo de institucionalização.

No documento Todo Risco A possibilidade de arriscar (páginas 53-58)