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O Mito de Rei Midas25 nos ajuda a compreender o pensamento moderno, as

aspirações e as cegueiras presentes no conhecimento, na ciência, na política, na economia moderna, as suas consequências para o planeta e para o ser humano, bem como a onda de descrença que impregnou grande parte dos corações, após a falência da utopia moderna. E, talvez, ele revele também o futuro da humanidade após o período moderno.

Segundo a mitologia grega, Sileno, professor e amigo fiel de Baco, o deus do vinho, desaparecera, e vagando, bêbado e perdido, pelas florestas de Frígia, foi levado por camponeses ao Rei Midas, que lhe forneceu uma boa hospedagem e, após onze dias, o levou são e salvo a Baco. O deus ficou extremamente agradecido e, como recompensa, disse que atenderia a qualquer pedido do Rei. Midas, então, pediu que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. Baco, mesmo sabendo da gravidade do pedido, atendeu à solicitação. O Rei Midas voltou feliz para a casa e já, no caminho, começou a testar seus poderes. Ele arrancou um ramo de carvalho e

esse se transformou em ouro; pegou uma pedra e um torrão de terra e ambos imediatamente se transformaram em ouro. Em sua casa, o Rei ordenou que seus criados lhe servissem um banquete. Porém, para seu espanto, o pão transformou-se em ouro, impossibilitando a mastigação; tomou um cálice de vinho, mas esse se tornou ouro derretido, ao ser engolido. E, o mais trágico, sua filha ao encostar-se a seu pai, também, transformou-se em uma estátua do nobre material. Midas foi tomado por uma enorme tristeza e, diante da morte certa por não poder se alimentar, ergueu os braços, implorando a Baco, que lhe retirasse seu dom. Baco, por ser uma divindade benevolente, atendeu ao pedido de Midas e mandou que ele fosse ao rio Pactolo, retirasse um pouco de água e aspergisse aquilo que tocara; assim fez Midas, a começar por sua filha. Depois de ter restituído a natureza dos objetos que havia tocado, Midas abandonou as riquezas e foi viver nos campos, cultuando o deus dos bosques, Pã.

O desejo de transformar tudo em ouro, ou melhor, em fonte de riqueza e desenvolvimento marcou o pensamento moderno e gerou uma grande empolgação na população.

Segundo a concepção moderna, após o fim da Idade Média26, o ser humano,

fazendo o uso correto da razão, em suas duas vertentes, racionalismo e empirismo, atingiria a maioridade intelectual, ou seja, ele pensaria por si só, sem uma força impositiva, tal como eram os dogmas católicos, no período precedente. Assim, o ser humano, livre, conduziria os desígnios de sua própria vida e da sociedade.

Podemos perceber um exemplo de crença na modernidade na resposta de Immanuel Kant (1724 – 1804) à pergunta ―O que é Iluminismo?‖. Segundo o filósofo: ―O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem‖ (1988, p. 11).

O pensamento moderno ocidental levou um grande tempo para ser gerado, e seu inicio não se deu de forma unânime, haja vista, que durante a Idade Medieval, a população europeia vivia, em sua maioria, em feudos, sendo difícil a comunicação entre os feudais. Ele nasce a partir de várias correntes artísticas, cientificas, filosóficas, políticas, teológicas que inicialmente tiveram em comum a busca da liberdade do ser humano da tutela dogmática da Igreja Católica.

26 A Idade Média é classificada pelos modernos como ―Idade das Trevas‖, denominação de cunho

Encontramos germes do pensamento moderno, dentro do próprio catolicismo, no final do período escolástico, tais como os filósofos e teólogos Duns Scotus27

(1265 – 1308) e seu discípulo Guilherme de Ockham28 (1285 – 1347). Porém o

modernismo realmente começa a ser desenhado e delineado com o advento do Renascimento29 e ganha consistência teórica a partir do século XVIII, Século das Luzes. As duas principais revoluções políticas do século XVIII: A Guerra da

Independência dos Estados Unidos da América (1775 – 1783), e a Revolução

Francesa (1789 – 1799) sinalizam a mudança ocorrida no nomos e ethos da

humanidade.

A humanidade doravante foi tomada pelo complexo do Rei Midas. Ela creu ser possível transformar qualquer coisa que tocasse em ouro, desde a regulamentação da sociabilidade às transformações da natureza, via ciência e tecnologia. A promessa de uma vida paradisíaca foi trazida do pós-morte, conforme pregara a Igreja Católica, para esta vida. E os sacerdotes deixaram de ser os clérigos católicos para se tornar os cientistas. Segundo Morin:

É impressionante que sobre a ruína da providência divina a humanidade leiga, a Filosofia das luzes, a ideologia da razão tenham podido fazer uma hipóstase e uma nova divinização da ideia de progresso, ao transformá-lo em lei e necessidade da história humana; e esta ideia foi tão desencarnada, tão desacoplada de toda realidade física e biológica que levou a ignorar o princípio de corrupção e desintegração que atua na PHISIS, no cosmos, na

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Duns Scotus questionou o principio medieval: filosofia ancilla theologiae est (a filosofia é serva da teologia), ou seja, ele questiona o fato de a reflexão filosófica estar submissa às verdades teológicas, devendo aquela servir apenas para a melhor compreensão dessa. Scotus afirma que as verdades católicas eram reveladas e, por isso, não poderiam ser compreendidas pela razão humana. Assim, a Filosofia deveria deixar de ser serva da teologia e seguir sua própria trajetória de reflexão, visando o que era humano e lógico.

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Guilherme de Ockham deu continuidade ao legado de seu mestre. Para o Doctor Invincibilis (doutor invencível, intitulação atribuída a Ockham) o ser humano é dotado de liberdade plena e essa não poderia ser obstruída por nenhum pensamento religioso essencialista – conforme o pensamento escolástico-medieval – mas deveria tomar suas decisões segundo a sua razão e a partir de fatos concretos e particulares. Ockham propôs que o conhecimento deveria ser intuitivo, ou seja, partir do particular, sensível, palpável para que atingir o universal; aqui, mais uma vez, Ockham esteve em oposição ao pensamento medieval, que pregava que o conhecimento deveria ser Dedutivo, ou seja, partir do Universal, das essências para chegar ao particular. A teoria do conhecimento proposta pelo Doctor Invincibilis ficou conhecida como: ―Navalha de Ockham‖, em que procura eliminar no processo de conhecimento tudo aquilo que não pertencia ao conhecimento sensorial, ou seja, procura eliminar os dogmas e a teologia católica. E propõe que, havendo dois caminhos para se chegar ao conhecimento, deve-se buscar aquele mais simples e de fácil acesso.

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O movimento renascentista intermediário entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, iniciou-se por volta do final do século XIII indo até meados do século XVII. O termo renascença (renascentista e renascimento) se deu devido à mudança de foco da reflexão que deixou de ser teocêntrica para se tornar homocêntrica, ou seja, renasceu a preocupação com o ser humano, suas paixões, fraquezas, ideais, que se tornaram o centro dos trabalhos filosóficos, artísticos e científicos. O termo também se deu devido à redescoberta dos textos clássicos gregos, com características homocêntricas.

Bios (MORIN, 2010, p. 29-30).

O pensamento moderno, ao propor a ruptura e a superação do pensamento medieval-religioso, proporcionou duas mudanças: a primeira foi na noosfera, com o destronamento do deus-moral judaico-cristão; a segunda foi referente ao conhecimento, que se tornou fragmentado e hiperespecializado.