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4 O PROCESSO PENAL JUVENIL NA PRÁTICA

4.1 PERFIL DOS ADOLESCENTES OBSERVADOS

O perfil dos adolescentes foi montado a partir das respostas fornecidas pelos próprios adolescentes aos quesitos formulados pelo juízo, pelo Ministério Público ou pela defesa, em audiência. Desse modo, o número de respostas pode variar, tendo em vista que a obtenção das informações dependeu da formulação das perguntas pelos atores do processo.

Como era esperado, a grande maioria dos adolescentes que figura o polo passivo dos processos de apuração de ato infracional é do sexo masculino, tanto em Porto Alegre/RS como no Rio de Janeiro/RJ. No Rio de Janeiro/RJ, nas audiências de apresentação, a taxa de adolescentes do sexo masculino chegou a 96,3%; nas audiências de continuação a proporção foi de 96,7%; na pesquisa em autos de processos arquivados, apenas 10,8% das adolescentes que respondem a processos de apuração de ato infracional são do sexo feminino. Os números, em Porto Alegre/RS, são bastante similares: nas audiências de apresentação, os adolescentes interrogados eram 85,7% do sexo masculino, enquanto nas audiências de continuação as adolescentes do sexo feminino foram de apenas 2%. No tocante aos processos já arquivados, 86,9% dos adolescentes eram do sexo masculino na capital gaúcha. Abaixo, reproduz-se o gráfico que unifica todas as respostas, demonstrando-se a prevalência de adolescentes do sexo masculino:

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A maioria dos adolescentes observados, tanto nas audiências como nos processos arquivados, tinha entre 15 e 17 anos de idade, sendo visível a maior frequência de adolescentes com 17 anos em relação às demais faixas etárias. Dos processos analisados em Porto Alegre, 37,9% dos adolescentes tinha 17 anos de idade na data do fato imputado, contra 43,3% no Rio de Janeiro. A porcentagem de adolescentes com 16 anos chegou a 32,1% na capital gaúcha e 23,1% na capital carioca, enquanto os adolescentes com 15 anos totalizaram 19,4% no 4º JIJ/POA e 15,4% na VIJ/RJ.

Quanto às condições financeiras dos adolescentes e de suas famílias, esta informação pode ser deduzida a partir da proporção de adolescentes atendidos pela Defensoria Pública, em detrimento daqueles atendidos por advogados particulares. Ainda que este critério não seja exato, haja vista que ser atendido por advogado constituído não necessariamente indica maior renda do representado, chama-se a atenção para a predominância da atuação da Defensoria Pública Estadual, tanto na VIJ/RJ, quanto no 4º JIJ/POA, a indicar a condição de baixa renda dos adolescentes e suas famílias. Em Porto Alegre, em 83,8% dos processos arquivados analisados, houve assistência integral da Defensoria. Em 16,2% dos casos, os adolescentes foram representados por procuradores particulares, sendo incluída nessa taxa aqueles casos em que a assistência foi integral e os casos em que houve atuação de advogado particular apenas em alguma etapa processual. No Rio de Janeiro, a situação é ainda mais desproporcional: em 95,8% dos casos, a defesa dos adolescentes foi patrocinada pela Defensoria Pública, sendo que apenas 4,2% dos adolescentes constituíram advogado particular em algum momento do processo.

Nos casos observados em Porto Alegre, verificou-se que 96,81% dos adolescentes indagados responderam possuir residência fixa, contra 3,19% que encontravam-se em situação de rua. 20,34% dos adolescentes não foram questionados sobre este aspecto. Dos 96,81% que afirmaram possuir residência fixa, 48,5% moram com a mãe, 4% com o pai, 5,1% moram com ambos os pais, 3% moram em abrigos, e o restante mora com outros familiares ou conhecidos.

Situação similar ocorre no Rio de Janeiro, onde, de acordo com os dados obtidos na pesquisa, 96,26% dos adolescentes afirmou possuir residência fixa, sendo que 64,49% residem com a mãe, 10,28% moram com ambos os pais, apenas 4,67% residem apenas com o pai, 1,87% reside em abrigos e o restante mora com outros familiares ou conhecidos. Os adolescentes que encontravam-se em situação de rua somaram 3,74% dos casos.

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Percebeu-se uma diferença significativa entre as duas comarcas observadas no tocante à presença dos pais ou de algum responsável nos atos processuais – para esta avaliação, selecionou-se como referência o acompanhamento das audiências de apresentação335. Em Porto Alegre, os adolescentes estavam acompanhados dos pais ou de um responsável em 93,7% dos casos; no Rio de Janeiro, esse acompanhamento aconteceu em somente 53,45% das situações, isto é, pouco mais que na metade dos casos.

Considerando os casos em que os adolescentes foram acompanhados por responsáveis nos atos processais336, a presença somente da mãe varia de 58% a 79,5%, tanto no Rio de Janeiro como em Porto Alegre. A presença exclusiva do pai nos atos processuais em Porto Alegre atingiu a média de 11,82% dos casos, enquanto que no Rio de Janeiro a porcentagem foi de 14,78%. Os adolescentes acompanhados por pai e mãe, na capital gaúcha, totalizaram 2,44%; no Rio de Janeiro, o jovem foi acompanhado por ambos os pais em 10,88% dos casos. Quanto à frequência escolar, observou-se uma alta taxa de evasão escolar nos casos examinados, que circunda a faixa de 50%. Somando-se os resultados obtidos na pesquisa em autos de processos arquivados e na observação das audiências de apresentação, a situação encontrada é ilustrada nos gráficos a seguir:

Gráfico 2 - Frequência escolar - Porto Alegre/RS

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A escolha das audiências de apresentação deu-se por diversas razões: a) na audiência de apresentação, o adolescente já passou pelo procedimento policial, de modo que já houve o transcurso de tempo razoável para a comunicação e deslocamento dos pais ou de algum responsável ao encontro do adolescente. Por esse motivo, foi desconsiderada – para a finalidade a que se propõe essa análise específica – a presença dos pais no interrogatório perante a autoridade policial; b) o registro da presença dos responsáveis nas atas de audiência são mais precisos nos casos de audiência de apresentação, do que nas atas das audiências de continuação; c) a audiência de apresentação, por ser o ato inaugural do processo e aquele em que o adolescente será ouvido, torna a presença dos pais ou responsável ainda mais relevante.

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Nesse caso, foram consideradas as informações obtidas em todos os atos processuais: interrogatório perante a autoridade policial, oitiva informal pelo Ministério Público, audiência de apresentação e audiência de

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Gráfico 3 - Frequência escolar - Rio de Janeiro/RJ

A grande maioria dos adolescentes ainda não ultrapassou o ensino fundamental, sendo que mais de 60% está entre a 5ª e a 8ª série. A porcentagem de adolescentes que frequenta o ensino médio é bastante similar nos locais de pesquisa: em Porto Alegre, apenas 11,8%, e no Rio de Janeiro, 15% dos jovens. Na maior parte dos casos, não houve questionamento se o adolescente trabalha. Nos casos em que foram indagados sobre essa questão, verificou-se que pouco menos de 50% dos adolescentes trabalhava à época da audiência de apresentação: 45,8% em Porto Alegre e 47,2% no Rio de Janeiro. Sublinha-se, todavia, que essa pergunta foi dirigida a pouco mais de 30% dos adolescentes nos casos analisados.

No tocante aos antecedentes dos adolescentes, não foi possível analisar a questão sob uma perspectiva estritamente técnica: as perguntas feitas aos interrogandos, em geral, mencionavam “passagem pela VIJ”, “internação anterior”, “outro processo além do presente”, entre outras expressões, que não permitem avaliar se houve sentença condenatória transitada em julgado anterior ao fato representado. Dessa forma, os dados obtidos refletem os casos de adolescentes que passaram pelo sistema de justiça juvenil por mais de uma ocasião, sem significar, contudo, que já possuem condenação anterior pela prática de ato infracional. Dos jovens indagados sobre esse quesito, 66,66% responderam possuir passagem anterior em Porto Alegre. No Rio de Janeiro, 54,95% dos adolescentes responderam positivamente.

Outro ponto de frequente questionamento refere-se ao uso de drogas pelos adolescentes selecionados pela Justiça Juvenil. Na capital gaúcha, dos adolescentes questionados, 31,82% afirmaram fazer uso de drogas; no Rio de Janeiro, a taxa chegou a 44,55%.

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Veja-se que a incidência da seleção pelo sistema de justiça juvenil recai sobre aquele perfil indicado por Adorno no primeiro capítulo: jovens, em sua grande maioria do sexo masculino, de baixa renda, assistidos, em geral, somente pela mãe, evadidos dos bancos escolares ou em níveis escolares incompatíveis com a sua idade, apresentando, em mais da metade dos casos, passagens anteriores pelo sistema penal juvenil. Além disso, uma parcela significativa desses adolescentes faz uso de substância entorpecente e encontram-se na faixa de 15 a 17 anos. Em resumo, o público das varas e juizados da infância e juventude, observado ao longo desta pesquisa, permanece sendo aqueles jovens em “situação irregular”.

Por fim, apontam-se quais os tipos penais praticados com maior frequência nos casos analisados (entre audiências e processos arquivados), relembrando que os casos foram escolhidos aleatoriamente ao longo do ano de 2017. Foram selecionados seis atos infracionais de maior incidência em Porto Alegre/RS e no Rio de Janeiro/RJ, sendo que os demais ocorreram em proporção igual ou menor que o ato de menor incidência constante dos gráficos abaixo:

Gráfico 4 - Imputações - Porto Alegre/RS

8,99% 37,64% 11,23% 11,80% 6,74% 6,74% 0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00% 40,00% Porte de arma Roubo Tráfico de drogas Homicídio e tentativa de homicídio Ameaça Lesão corporal

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Gráfico 5 - Imputações - Rio de Janeiro/RJ

De início, chama a atenção o alto índice de atos infracionais análogos ao crime de roubo (nas formas simples e qualificada) nas duas capitais, em ambos os casos, próximo de 40% do total. Além disso, sublinha-se que na capital gaúcha houve uma maior variedade de tipos de delitos representados, sendo surpreendente a maior incidência de representações por atos cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa – ganhou destaque o índice de 11,8% de representações pelo ato infracional análogo ao crime de homicídio ou de tentativa de homicídio. Observa-se que no Rio de Janeiro/RJ, em contrapartida, além do ato infracional análogo ao crime de roubo, destacam-se também os casos de furto, tráfico de drogas e associação para o tráfico (crimes praticados sem violência contra pessoa), todos com índice superior a 15% do total.

Os dados obtidos quanto às espécies de atos infracionais praticados com maior frequência encontram-se em harmonia com aqueles revelados no 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Segundo Azevedo, esses dados, também similares ao perfil de crimes praticados por adultos, “dão conta muito mais do padrão de funcionamento das agências de controle, que atuam com baixo grau de integração e inteligência, dependendo da prisão em flagrante para o encaminhamento do caso à justiça”337

. Portanto, muito mais do que para refletir o perfil de crimes praticados com maior frequência – não se pode esquecer a cifra oculta de atos infracionais que não chegam às instâncias de controle –, a importância desses

337 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Adolescentes em Conflito com a Lei – Atos infracionais e medidas

socioeducativas. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo, ano 9, p. 124-127, 2015. p. 125.

6,53% 40,70% 18,59% 15,07% 15,07% 5,53% 0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00% 40,00% 45,00% Porte de arma Roubo Tráfico de drogas Furto Associação para o tráfico Resistência

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dados está na demonstração do padrão da atuação das polícias e seu foco nos crimes contra o patrimônio e no mercado de drogas.338

Este desenho inicial do perfil dos adolescentes que figuraram no polo passivo dos processos examinados e das audiências observadas, bem como dos tipos de delitos de maior incidência em cada capital vem demonstrar a efetiva seletividade dos processos de criminalização constatados pelos pensadores do labeling approach. A partir dessa observação, passa-se à análise dos resultados referentes à condução dos processos de apuração de ato infracional na VIJ/RJ e no 4º JIJ/POA e à observância dos direitos e garantias dos adolescentes no curso dos processos.