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3 NUANCES E REPRESENTAÇÕES: OS OLHARES PARA AS SALAS

3.1 Perfil dos professores entrevistados

Quanto à identificação pessoal dos professores entrevistados, construímos o quadro a seguir para melhor visualização.

Quadro 5 – Perfil dos entrevistados

Codinomes Idade Sexo Tempo de atuação em salas

multisseriadas em anos Morador na comunidade Rafaela 43 F 19 S Tadeu 28 M 5 N Maria Vitória 47 F 11 N Isabelle 53 F 29 S Barbosa - F 11 N Ferreira 50 M 28 N Maria de Nazaré 45 F 30 S Alves 57 M 30 S Maria 29 F 4 S Maria Letícia 33 F 10 N Melissa 32 F 1 N Sull 30 F 1 N

Fonte: elaborado pela pesquisadora (2020). Legenda: F: sexo feminino, M: sexo masculino.

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Esses dados foram obtidos por meio das entrevistas e nos fornecem um panorama geral da representatividade dos entrevistados, apresentando grande diversidade, o que enriquece nosso trabalho, ao mesmo tempo em que dificulta a interpretação e a busca por respostas.

No conjunto referente à idade, não tivemos predomínio de uma faixa etária, sendo equilibrado: três professores na faixa dos 50 anos, três na faixa dos 40 anos, 4 na faixa de 28 a 35 anos e um que se absteve de informar sua idade. Nesse panorama, percebemos gerações que se entrecruzam no movimento de ensinar nas Salas Multisseriadas, o que reflete no tempo de experiência em salas dessa natureza. Essa variação de faixa etária nos proporciona uma ligação com o passado e com o presente, instando-nos a perceber que em algumas situações esses professores ensinam tendo em conta práticas de um passado distante. Diante disso, podemos presumir que mesmo com gerações diferentes, existe uma invariante entre elas, a possibilidade de repetição de práticas de quando foram estudantes da escola básica. Essa discussão de que os professores podem vir a repetir o que vivenciaram em suas experiências enquanto estudantes, pôde ser percebida desde a graduação, quando colocamos a experiência de Lacan (1996) como formadora do sujeito dentro da perspectiva da formação de professores:

Quando Lacan (1996) escreveu ‘O estádio do espelho como fundador da função do eu’ sobre a descoberta de que crianças bem pequenas se mostram capazes de reconhecer no espelho sua própria imagem e a do adulto que a carrega. Mostra o momento de transformação do sujeito, quando ele se identifica e assume, de forma individual uma imagem como sendo sua, porém baseada na imagem do outro (COSTA, 2017, p. 25).

Enquanto sujeitos, temos uma gama de imagens que nos servem de espelhos, de parâmetros, de modelos, inclusive e principalmente em nossa formação da educação básica: os professores. Subjetivamente, acabamos nos espelhando em suas ações para subsidiar nossa prática. Com o mesmo raciocínio, Nacarato (2019) tece reflexões sobre isso:

O que leva uma professora a construir determinado modelo de aula de matemática? Como as práticas de sala de aula vão sendo apropriadas e naturalizadas pelas professoras – futuras ou em exercício? Essas questões merecem reflexão e, [...] há necessidade de conhecer as experiências com a matemática que as futuras professoras já vivenciaram durante sua escolarização. Diferentes autores têm discutido o quanto a professora é influenciada por modelos de docentes com os quais conviveu durante sua trajetória estudantil, ou seja, a formação profissional docente inicia-se desde os primeiros anos de escolarização (NACARATO, 2019, p. 17).

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Apresentamos o exemplo de Maria de Nazaré, relatando que quando começou a ensinar em uma Sala Multisseriada, foi porque sua professora estava doente e ela só tinha quinze anos: “Ela deixou o caderno com muitos planos, eu olhava, tinha dia que eu acrescentava alguma coisa, e tinha dia que eu fazia só aquilo ali” (MARIA DE NAZARÉ, 2019). Apoiada com o caderno de planejamento da professora, Maria de Nazaré sendo tão nova, iniciava o processo de ensinar como tinha aprendido, até constituir-se num processo de formação formal, ao longo de sua trajetória profissional se formou em Pedagogia e participou de muitos cursos de formação. Apontamos a necessidade do importante papel que uma formação profissional sólida exerce na medida em que fornece teorias e possibilidades de práticas que podem quebrar esse com esse ciclo: aprendi assim – ensino o que aprendi, ou ainda, como destaca Nacarato (2019) o desafio de ensinar o que não se aprendeu.

O fato de encontrarmos apenas três professores do sexo masculino ensinando nessas classes nos mostrou que, dentro do contexto das salas de aula, a predominância do sexo feminino ainda existe. Sobre esse assunto, Queiroz (2018) revelou que, em sua pesquisa na década de 1980, junto a professores de Salas Multisseriadas do município de Ceará-Mirim, no RN, 97,5% dos seus entrevistados eram do “gênero feminino” (QUEIROZ, 2018, p. 76). Sem entrar em minúcias, discussões posteriores ao estudo supracitado indicam que o conceito de sexo, seja masculino, seja feminino, está ligado a fatores biológicos, enquanto a ideia de gênero ou identidade de gênero é uma construção sociocultural (MOORE, 1997).

Para Queiroz (2018), estudar sobre a diferença entre os gêneros na profissão docente, foi de grande importância para o entendimento sobre a sobrecarga de papéis exercidos pelas mulheres enquanto professora, mãe, dona de casa, e ainda exercerem múltiplas funções na escola; e nos ajudou a traçar os parâmetros das mudanças e das permanências do ser professor de Sala Multisseriada. Nesse período, retratado na sua pesquisa, o professor, no geral, exercia múltiplas funções na escola,

[...] muitas delas exerciam funções diversificadas na escola, como a direção, respondendo por ela de forma eventual ou sistematicamente, e a coordenação da merenda escolar –, desde a responsabilidade de trazê-la da sede do município até seu feitio e a distribuição dos estudantes (QUEIROZ, 2018, p. 67).

A autora salienta que, no caso das professoras, essas múltiplas funções se somavam às funções relativas às tarefas domésticas e, algumas vezes, aos cuidados com o sítio, ou com a

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fazenda do patrão onde moravam, o que causava uma sobrecarga de trabalho para essas professoras.

As estatísticas consultadas a partir de 1975 não apresentam mais dados do magistério por sexo, mas por dependência administrativa. Tornou-se impossível seguir a análise histórica do período estudado quanto à presença feminina no magistério. Sabemos, no entanto, que, pelo menos no 1° grau, de modo particular nas quatro primeiras séries, as mulheres eram, e ainda são, maioria no magistério (QUEIROZ, 2018, p. 69).

Essa afirmação tão impositiva de Queiroz (2018), proclamada em meados dos anos 1980, remete aos dados estatísticos do período e da invisibilidade a respeito da distinção entre professores e professoras. No entanto, percebemos que a necessidade de mostrar o perfil por distinção de sexo se renovou a partir de 1997, quando o Ministério da Educação e Cultura (MEC), por meio de seu Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), realizou, pela primeira vez em âmbito nacional, o Censo do Professor. Tal levantamento abrangeu 1.617.611 professores das redes pública e particular de ensino básico – mais de 90% da categoria, conforme dados do INEP – e teve como objetivo contribuir para um diagnóstico que orientasse as políticas educacionais. O censo foi divulgado somente em 1999 e, de acordo com esse documento, 14,1% da categoria era constituída de homens e 85,7% de mulheres (VIANNA, 2002, p. 83).

No ano de 2007, esse estudo foi repetido, nas creches, na pré-escola e nos anos iniciais do ensino fundamental, indicando que o universo docente é predominantemente feminino (98%, 96% e 91%, respectivamente). No entanto, percebemos que, a cada etapa do ensino regular, ampliava-se a participação dos homens, que representavam 8,8% nos anos iniciais do ensino fundamental, 25,6% nos anos finais e chegavam a 35,6% no ensino médio. Somente na educação profissional, encontrava-se situação distinta, pois havia uma predominância de professores do sexo masculino. Não obstante, se consideradas todas as etapas e modalidades da educação básica, 81,6% dos professores que estavam em regência de classe eram mulheres e somavam mais de um milhão e meio de docentes (1.542.925), no mesmo período.

No site oficial do MEC, percebemos que o Censo do Professor foi descontinuado, ou não publicado na página, pois não encontramos mais referência alguma a esse levantamento específico. Encontramos dados sobre o perfil dos professores, novamente, no Censo Escolar do ano de 2017. De acordo com o documento, havia 2.192.224 docentes da Educação Básica, distribuídos da seguinte maneira: 1.909.462 atuavam na zona urbana e 345.604 na zona rural;

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a maioria (1.753.047) era formada por mulheres, sendo 594.012 entre 30 e 39 anos; e 439.177 eram homens, sendo 161.344 na faixa etária de 30 a 39 anos (BRASIL, 2018).

No entanto, contrariando a citação supracitada de Queiroz (2018) e com posse desses dados, podemos, sim, estabelecer uma análise histórica desses 30 anos de ensino. Apesar de o referido Censo do Professor não ter dados específicos sobre os professores do Rio Grande do Norte, podemos estabelecer relações, inclusive com nosso corpus de entrevistados, indicando que ao longo dos anos, o ser professor esteve intimamente ligado com o ser mulher. Embora sejam dados gerais do Brasil, percebemos que a predominância das mulheres na Educação Básica pode ser considerada uma permanência no contexto da educação, e nossos entrevistados foram um reflexo dessa predominância apontada nas estatísticas, uma vez que temos a presença de 8 mulheres para 3 homens.

Nas escolas rurais com Salas Multisseriadas, esse panorama de sobrecarga de multitarefas, executadas pelo professor em geral, sofreu mudanças importantes, como a presença de um profissional auxiliar de serviços gerais na escola, que mantém a escola limpa e, muitas vezes, também faz serviço de merendeira (em sua maioria são mulheres que exercem essa função). A direção, por sua vez, fica ao encargo do Centro Rural, que tem a responsabilidade administrativa e pedagógica de todas as escolas rurais da cidade. Assim, pelo que observamos no decorrer de nossa pesquisa, os professores podem concentrar-se em suas funções pedagógicas.

Outro aspecto que consideramos importante é que, dos professores entrevistados, 5 moram na comunidade da escola, enquanto 7 não moram. Isso nos permite inferir a importância dada ou não a assuntos políticos e de permanência da criança na escola, e possível envolvimento, ou não, com a comunidade. Além disso, podemos perceber como a instituição reflete os ideais de escola do Campo, lembrando que Caldart (2009) afirma categoricamente que Educação rural não é o mesmo que Educação do campo, conforme já descrevemos na introdução deste trabalho. Mas, relembrando, a Educação do campo parte de uma perspectiva social que permeia a concepção de comunidade do campo, de suas necessidades e de seus movimentos sociais envolvidos nesse contexto. Dessa forma, percebemos escolas com educação Rural e escolas com Educação do campo, coexistindo no amplo panorama de nosso estado. Um exemplo de Educação do campo pode ser citado por uma das falas de uma de nossas entrevistadas:

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Nós brigamos para ficar aqui, porque teve uma época, que eles [a Secretaria de Educação] queriam fechar as escolas rurais, todas, e transportar todo mundo para a rua [cidade]; foi preciso fazer parceria com o sindicato, e mais alguns órgãos, com os pais, para ficarmos na zona rural. Temos essas dificuldades, não sei se é porque eu sou daqui que acho que eles têm o direito de estudar perto de casa, como eu estudei, que morava quase dentro da escola. Uma criancinha pequena para viajar para São Fernando, eu acho muito, eu sofria quando fui fazer o quinto ano, são 18 km, você viajou, você viu?! (MARIA DE NAZARÉ, 2019, entrevista cedida em 04/09/2019).

O contexto da Maria de Nazaré é interessante, uma vez que conseguiram manter a escola atualem que ela trabalha, Escola Municipal Luiz Conrado de Medeiros, mas a anterior, que tem o nome de sua avó, foi fechada para a construção da barragem de Oiticica.

Dentro dessas nuances que se configuram entre os professores que moram ou não na comunidade, percebemos que existem os que não moram, mas a valorizam e muito, como foi o caso de Tadeu, que procurou uma maneira de conhecê-la melhor e aproximar-se de seus alunos.

Para conhecer a comunidade, eu tive a ideia de um pequeno projeto, o objetivo era que eu conhecesse a comunidade, a história e a economia, e o lado social da comunidade, e nós fomos conhecer a lagoa que intitulou o nome da comunidade, o nome da comunidade é Lagoa Limpa. E eu perguntava aos alunos: – por quê? E diziam: – é o nome de uma lagoa que tem ali. E lá eu fui, com aquele monte de menino, e quando chegamos lá, a fala de um aluno me deixou muito pensativo, meu Deus do céu, tem coisas que a gente não sabe, e essas criaturas sabem, o que um pé de hortelã, um pé de hortelã da folha gorda é diferente da folha miúda, e de repente tinha um buraco, e o menino disse: – olha o caboré. E para mim um buraco é um buraco de cobra, pensei que tinha uma cobra ali, eu disse: – sai daí. E, quando fui ver, não era uma cobra, era um pássaro que parece uma coruja, e o nome era caboré, e ele [o aluno] conhece, ele vive isso ali. E outra realidade são as casas de farinha; eu passei pela comunidade, passamos a manhã toda conhecendo, na casa de um avô, de uma avó, e comecei a perceber que eles podiam me ajudar em tudo aquilo. E o projeto durou aproximadamente quinze dias, e nós fomos conversando, conversando, e fui conhecendo as crianças, e foram conhecendo a minha pessoa, e foi bem no início da minha ida para a comunidade. E conheci a lagoa, e conheci as casas de farinha, entre a Lagoa das Figuras e Lagoa Limpa, se não estou me enganando, é na faixa de 15 a 19 casas de farinha, é como se cada família tivesse a própria casa de farinha, e a grande economia dessas duas comunidades, que são próximas, é a mandioca, o cultivo, a farinha, a goma27

e o beiju28 (TADEU, 2019, entrevista cedida em 02/09/2019).

27 Nesse contexto goma se refere à goma de mandioca, que é produzida por meio da hidratação da fécula da mandioca hidratada, sendo usada no preparo da tapioca. Disponível em: http://tudosobretapioca.com.br/goma-de- tapioca-o-que-e/ Acesso em: 12 abr. 2020.

28 Beiju: o mesmo que tapioca recheada, porém feito a partir da mandioca ralada. Disponível em: http://tudosobretapioca.com.br/goma-de-tapioca-o-que-e/ Acesso em: 12 abr. 2020.

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Outro fator existente para os professores que não moram na comunidade que ensinam é uma preocupação, e principalmente atenção, com a linguagem utilizada pelos estudantes e moradores dessas localidades, quando perguntada se existia algum ponto sobre o ensino das Salas Multisseriadas, pois não tinha sido abordado na entrevista, Sull respondeu:

Tem uma coisa, não sei se é da Matemática, mas, a linguagem das crianças. Eu acho que é importante, em se tratando da zona rural, porque eles têm uma linguagem própria, e se o professor não souber fica meio perdido. Teve uma situação que me marcou muito, teve um menino, o mais danado, que disse: – tia, eu achei um azougue!29 Eu pensei: – o quê? Fiquei pensando: o que é isso?

Então, eu disse: – você achou o que, meu bem? Os meninos da sala também falaram: – é tia, tem um azougue ali. Eu disse: – então traga para eu ver. Quando eu vi, eles trouxeram um imã! Então eu falei assim: – vocês trouxeram um imã! Era uma pedra de imã bem grande! Eles falam umas coisas assim: – Eu estou caçando aqui e não estou achando. Caçando no sentido de procurar. Pelo contexto entendemos, mas achei interessante que tem palavras que se não soubermos, ficamos sem entender, ficamos sem comunicação. Eu aprendi muitas palavras com eles. E quando eles falavam, eu já sabia, e aproveitava e usava no conteúdo (SULL, 2020, entrevista cedida em 24/09/2020).

Esses aspectos mostram como esses professores se importam com a comunidade em que trabalham, mesmo não morando nela, e ainda nos permitimos dizer que as falas apontam para um entendimento de que conhecer a comunidade onde se ensina, e estabelecer uma comunicação adequada podem contribuir para a base do exercício pedagógico eficiente do professor.

Em discordância, outros professores, disseram que as pessoas que vivem na comunidade só são chamadas à escola nos momentos de encerramento dos bimestres e nas festas comemorativas, como Dia das Mães, Dia dos Pais e Festas Juninas. Reconhecem, no entanto, que esse diálogo entre a comunidade e a escola é importante.

Ainda a respeito de morar ou não nas comunidades das escolas em que ensinam, surgiram nuances interessantes, como o sentimento de pertencimento em quem não reside no local na vida adulta, mas já morou na infância:

Sinto, porque eu nasci e me criei lá. Eu sou de lá, meus laços familiares são de lá, meu marido é de lá, a família dele todinha é de lá, eu vim para aqui [cidade] porque foi necessário, lá [na comunidade] não tinha recurso para 29 Nesse contexto específico, azougue possui um significado diferente do atribuído pelo dicionário em que significa: substantivo masculino; quem expressa esperteza e ligeireza; rápido, esperto. Disponível em: https://www.dicio.com.br/azougue/ Acesso em: 12 out. 2020.

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nossa família sobreviver, então meu pai teve que mudar, e nossa família se fixou na cidade, fiz o concurso e passei, e voltei à minha origem (BARBOSA, 2019, entrevista cedida em 03/09/2019).

Um dado que emergiu de nossas entrevistas nos fez ter um olhar diferenciado para as Salas Multisseriadas: alguns professores foram alfabetizados em Salas Multisseriadas, como foi o caso de Maria de Nazaré, Maria e Barbosa. Com isso, elas têm uma perspectiva interessante sobre o ensino nessas Salas, o que veremos um pouco mais à frente.