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3.2 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS COM AS DOCENTES

3.2.4 PERSPECTIVAS DO CUIDADO NA APS E DO CUIDADO DE

3.2.4.1 Perspectivas do cuidado na APS

Bárbara Starfield (2002) define a APS como o nível de assistência à saúde, responsável pela entrada preferencial no sistema de pessoas que necessitam de cuidado. A Docente 11 – IES G imagina a APS nessa mesma perspectiva.

Eu imagino que a Atenção Primária é a porta de entrada inicial para o cuidado (Docente 11 – IES G).

Em contraposição a essas perspectivas, a Docente 12 – IES H enxerga a APS como “porta de passagem” para o cuidado em outro serviço. Isso é ratificado pela Docente 15 – IES I, quando atesta que os serviços de APS apenas atendem “demanda espontânea”, o que reforça o “modelo curativo” como expresso pela Docente 16 – IES I.

[...] A Atenção Primária, é onde o sujeito deveria ser acolhido, deveria ser entendido, ele precisa ser contextualizado ali naquele serviço e ele

não é. A Atenção Primária hoje é quase que uma porta de passagem, você passa por aqui, daí você vai para algum outro lugar, que o seu problema é cuidado em outro lugar (Docente 12 – IES H).

Cuidado na APS, aqui no município a situação é bem caótica, a tentativa é de promover ações na linha do cuidado. Mas, a maioria dos serviços somente atende demanda espontânea não tem nem mapeamento dos sujeitos em situação de risco (Docente 15 – IES I). Os próprios profissionais têm uma dificuldade grande de entender a proposta da Atenção Primária e da função de cada profissional no cuidado, falando da equipe como um todo, e acaba muito mais reproduzindo aquele modelo curativo mesmo (Docente 16 – IES I).

Mesmo que a realidade apontada mostre contradição quanto à concepção de APS, foi dito que a APS é um espaço de olhar e cuidar da maioria das necessidades em saúde das pessoas, que é um espaço que cuida de pessoas saudáveis e que o cuidado nesse nível assistencial não pode ser somente medicalizante e deve ser realizado por meio da perspectiva intersetorial de ações.

Eu acho que cuidado em saúde [na APS] é você de fato olhar as necessidades e ter respostas mais objetivas possíveis. Eu não sou muito a favor do encaminhamento. Acho que 80% a 90% dos casos você resolve no território (Docente 6 – IES C).

No campo da atenção primária, tem pessoas saudáveis que vão tomar vacina ou vão fazer um acompanhamento de rotina, pensar que a atenção primária propicia, ações de promoção de saúde e de qualidade de vida, cuidados de alimentação saudável, atividade física. Pensar também que todos os profissionais da APS têm que ampliar a consciência sanitária dos usuários, a APS é um espaço de escuta de necessidade, então todo profissional de APS, tem que ter um olhar sobre o que é saúde e o que são necessidades de saúde e, ao mesmo tempo que você escuta a necessidade você cria respostas assistenciais. A APS, ao mesmo tempo que cabe tudo, mas também é um problema sobre o controlar de mais a vida das pessoas, quando você diz como a pessoa tem que se comportar o que ela tem que comer, tem que ter esse cuidado para não tirar autonomia das pessoas para a sua vida e de suas escolhas, então para mim o cuidado em saúde é ampliar a capacidade da pessoa de se perceber, perceber necessidades e claro dá instrumentos, e se ela não quer ter uma vida sedentária, quer reduzir o colesterol dela, como ajudá-la? Não somente com remédio, mas ela entender que ela pode ter um corpo mais saudável, envelhecer de uma forma mais saudável (Docente 1 – IES A).

Eu fico achando que a chance de a gente ter uma Atenção Primária em Saúde efetiva, com o cuidado que ela pode ter, é realmente receber a demanda da população e buscar uma ação em rede para o seu cuidado [...] Eu acho que um cuidado que não poderia ser é um cuidado medicalizante na APS (Docente 4 – IES B).

Esses elementos de reflexão nos levam à análise sobre o cuidado na APS por meio dos quatro componentes fundamentais definidos por Starfield (2002). São eles: o reconhecimento das necessidades em saúde pelo primeiro contato das pessoas com o serviço, a longitudinalidade que pressupõe a existência de uma fonte regular de atenção e seu uso ao longo do tempo, a integralidade pela produção de cuidado que envolva diferentes tipos de serviços e a coordenação do cuidado realizada por meio do trabalho em equipe. Esses componentes também foram abordados pelas docentes nos excertos de suas falas:

Eu partiria dos próprios princípios do SUS, dar oportunidades para que todas as pessoas tenham acesso aos serviços prestados e que isso aconteça de uma forma integral. E quando eu digo integral é que eles tenham acesso a todos os serviços e para todos os contextos aos quais eles pertencem (Docente 10 – IES F).

O cuidado na Atenção Primária, ele tem alguns princípios, que, na realidade, reforçam os princípios do SUS. Então um dos primeiros princípios é o cuidado longitudinal, que, na verdade, a Atenção Primária, ela tem que se haver com isso, porque isso acontece. Então o sujeito, ele só vai deixar de ser cuidado por você se ele se mudar, se ele vir a óbito. A corresponsabilidade do cuidado é, então, um princípio importante, porque não é um cuidado só de um profissional, é o cuidado de uma equipe, e não é só daquele serviço, a APS também tem essa responsabilidade de articular os outros serviços que aquela pessoa precisa para o cuidado, e isso tem a ver com a questão da clínica ampliada que é um dos princípios da humanização. O outro princípio é o do matriciamento, que acho que tem a ver com a questão de compartilhar os saberes, primeiro na equipe em que se trabalha e também com a comunidade (Docente 5 – IES B).

O cuidado na APS hoje, ele está conseguindo avançar para termos aquelas metas que foram prioritariamente estabelecidas pela constituição do SUS, metas da integralidade, da longitudinalidade do cuidado, da ampliação do acesso, da cobertura de assistência, da produção de vínculo com o território. Acho que esses são cuidados que a Atenção Primária conseguiu ampliar. Hoje eu acho que conseguimos ampliar para um tratamento que enfoca uma ação em saúde de tratamento e de reabilitação também na Atenção Básica (Docente 3 – IES B).

A presença de críticas e dos preceitos da APS nos depoimentos das docentes é positiva, já que esse nível assistencial possui, alta complexidade tecnológica, e exige formação específica aos profissionais que nele trabalham. Essa aproximação conceitual com APS já na formação em terapia ocupacional pode potencializar uma maior apreensão desse lugar.

Nesse sentido, como forma de nos aproximarmos do cenário brasileiro, que enfrenta dificuldades em propor uma APS abrangente com a presença dos componentes descritos por Starfield, concordamos com Campos et al. (2008) que afirmam a necessidade de que sejam estabelecidas diretrizes organizacionais para que a APS cumpra seu devido papel. Seriam elas o acolhimento à necessidade em saúde e a busca ativa com avaliação de vulnerabilidade; a clínica ampliada e compartilhada, envolvendo características biológicas, subjetivas e sociais através do compartilhamento do cuidado; ações de saúde coletiva por meio de atividades de cunho preventivo e de promoção de saúde no território; participação na gestão (co-gestão) que permite o controle social e o diferencial democrático da gestão dos serviços.

Além do caminho importante apontado por Campos et al. (2008), as docentes apresentaram como potência do cuidado nesse nível assistencial, a possibilidade de utilização dos recursos comunitários como uma estratégia de proximidade com o cotidiano de vida das pessoas.

Para o cuidado na APS é fundamental a gente saber da história daquela comunidade, saber a regionalização, cada lugar tem uma demanda e tem as suas especificidades. Eu vejo que a gente tem que conhecer um pouco daquele lugar, é difícil, por mais que eu tenha isso no discurso, a gente não consegue fazer isso na prática. Conhecer um pouco da história, das relações daquele lugar, um pouco da cultura, embora a gente tenha uma cultura muito maior, mas a gente tem também uma forma de ver que as pessoas verem o mundo e as relações e as coisas de uma forma diferenciada, então, assim, a gente consegue fazer um pouco isso, conhecendo os usuários porque eles são daquela região (Docente 14 – IES H).

E que eu acho que ainda em alguns momentos eu vejo as pessoas entenderem que a atenção básica não tem recursos, quase como se fosse uma ideia de que “ah, esse é o espaço que está desprovido de recursos”, e não a ideia de que nele se encontram outros recursos, e conhecer quais são esses outros recursos: os recursos que a comunidade tem, os recursos que a estrutura tem, que o equipamento tem, os recursos que você como pessoa deve também saber. O fato de você saber realmente quais são os problemas e quais são as potencias da comunidade, mudar um tanto dessa visão que hegemonicamente a gente tem de que a comunidade é só privação, a comunidade é só pobreza, a comunidade é só fragilidade, mas se você conseguir realmente se aproximar daquilo que é a vida das pessoas no seu dia a dia e nas suas possibilidades de produção, seja produção de saúde, seja de cultura, seja de arte, seja de trabalho eu acho que isso é de uma riqueza inominável para a [APS] (Docente 7 – IES C).

O outro destaque vai para a possibilidade do cuidado na APS ser realizado tanto pela atenção à família como às pessoas de maneira individualizada.

[Na APS] eu vejo o cuidado centrado em dois eixos, um é pensar a atenção à família, porque estamos na saúde da família, então pensar, as ações dessa equipe, olhando para essa família no sentido de entender esse contexto. E um outro eixo, pensando no cuidado, mais vinculado às pessoas que estão naquele território (Docente 8 – IES D).

Assim, com os depoimentos das docentes percebemos que o cuidado na APS deve ser um cuidado continuo, entretanto, esse cuidado não consegue ser sempre efetivo. Além disso, essas docentes percebem que o cuidado na APS não precisa ser apenas medicalizante e deve ser estendido para as pessoas, famílias e comunidades com apoio no entendimento do cotidiano e do seu território, com respostas às necessidades de maneira individualizada e em articulação intersetorial.