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Capítulo 1 Introdução

1.2. Pertinência do estudo

No anterior programa do 1.º ciclo (DGEBS, 1990), embora seja realçada a resolução de problemas como eixo organizador de todo o currículo, nada refere sobre o desenvolvimento do sentido de número e estratégias e procedimentos de cálculo. Apesar do significativo avanço destes programas em relação aos anteriores, parece existir alguma inconsistência nas indicações curriculares. Este facto é sublinhado por Brocardo e Serrazina (2008), ao considerarem que os tópicos são apresentados de uma forma espartilhada, não tendo em conta “uma sequência de aprendizagem centrada na construção de conceitos (…) e, relativamente ao número e operações, continua a ser um currículo centrado no conhecimento de factos e na aquisição de técnicas rotineiras” (idem, p. 98). Na mesma perspetiva, Abrantes et al. (1999) consideraram continuar a persistir nos professores a ideia que o treino em procedimentos de cálculo deve constituir uma prioridade do ensino nos primeiros anos. Da minha experiência como professora e formadora, esta ideia permanece atual dado ser ainda muito visível este tipo de ensino em muitas salas de aulas neste nível de ensino. Em Portugal, várias investigações que têm analisado as práticas de sala de aula em Matemática no 1.º ciclo referem que as aprendizagens têm sido muito marcadas pela valorização dos aspetos aritméticos mais rotineiros (Ponte, Matos & Abrantes, 1998), que “os exercícios parecem continuar a ter um papel hegemónico nas práticas letivas dos professores” (Ponte & Serrazina, 2004, p. 69) e que “o cálculo continua a ter grande ênfase nas práticas de ensino, mas, mesmo assim, muitos alunos continuam longe de evidenciar a desejada capacidade de cálculo” (Ponte, 2008, p. 10). Este autor considera que não se deve desvalorizar ou mesmo erradicar o cálculo no 1.º ciclo, mas que é importante “combiná-lo com outros processos de

pensamento matemático e integrá-lo em atividades matemáticas significativas como problemas, explorações e investigações” (p. 10).

Também o relatório do Projeto Matemática 2001 (APM, 1998) menciona que os exercícios na aula de Matemática “são a situação de trabalho mais frequente em todos os níveis de ensino” (p. 31) e que as orientações curriculares têm tido pouca expressão na prática letiva. Tem predominado um “currículo que se vai fixando nos conteúdos da Matemática e, progressivamente, vai ganhando uma natureza menos aberta e flexível” (Silva, Veloso, Porfírio & Abrantes, 1999, p. 73). Este relatório (APM, 1998, p. 43) sugere a necessidade de que a prática pedagógica: (i) valorize tarefas que promovam o desenvolvimento do pensamento matemático dos alunos; e (ii) que haja uma maior diversidade nas formas de trabalho na sala de aula, principalmente, criando oportunidades de discussão.

Durante as últimas duas décadas, tem havido mudanças importantes nos conteúdos e nos processos da educação matemática (Cockcroft, 1982; NCTM, 1991; Treffers & De Moor, 1990). De todas estas mudanças, a mais importante é talvez a mudança de visão da Matemática como um conjunto de conceitos e capacidades a ser dominados de forma isolada, passiva e sem significado e de procedimentos fornecidos por outros, para uma visão da aprendizagem como uma construção ativa de conhecimento em que a resolução de problemas tem um lugar privilegiado (De Corte, Greer & Verschaffel, 1996).

Esta visão é clara em recentes documentos de cunho curricular (tais como, Australian Education Council, 1991; ME-DEB, 2001; ME, 2007; NCTM, 1991, 2007, TAL, 1998) que realçam a importância do sentido de número com o argumento de que a sua compreensão poderá ser muito útil para compreender os números em geral e desenvolver estratégias úteis que envolvam números e operações bem como contribuir para uma melhoria do conhecimento matemático dos alunos. O relatório National Mathematics

Advisory Panel (2008) salienta esta importância do sentido de número considerando que

“ter sentido de número interfere com a aprendizagem dos algoritmos e dos factos numéricos e antecipa o uso de estratégias e procedimentos para verificar a razoabilidade dos resultados dos problemas” (p. 27).

Em Portugal, o atual Programa de Matemática do Ensino Básico (ME, 2007) introduz alterações significativas em alguns aspetos, nomeadamente, ao nível dos objetivos gerais, reforçando a importância dos alunos conhecerem os factos e procedimentos básicos da

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Relativamente ao tema Números e Operações, propõe alterações ao seu ensino e ao ensino dos algoritmos, recomendando a passagem do algoritmo convencional da adição e subtração para o 3.º ano de escolaridade, privilegiando, deste modo, o desenvolvimento do cálculo mental e de outras estratégias de cálculo nos dois primeiros anos. O mesmo visa ainda um trabalho que enfatiza o sentido de número, a compreensão dos números e das operações bem como a importância de nos primeiros anos se valorizar o cálculo numérico na representação horizontal, o cálculo mental apoiado em registos escritos, a utilização das suas estratégias e a capacidade de selecionar as mais eficazes.

McIntosh et al. (1992, p. 3) definem sentido de número como “a compreensão geral do número e operações juntamente com a capacidade e a disposição para usar esta compreensão de forma flexível, para fazer julgamentos matemáticos e desenvolver estratégias úteis para manipular números e operações”. Também Sowder (1992) reforça a importância dos alunos desenvolverem o sentido de número dado que lhes permite “relacionar os números e as propriedades das operações e resolver problemas numéricos de um modo flexível e criativo” (p. 381).

Alguns autores referem que o desenvolvimento do sentido de número está muito associado ao desenvolvimento da intuição matemática. Por um lado, esta intuição, na perspetiva de Howden (1989), desenvolve-se com a exploração de números, com a sua visualização numa variedade de contextos e nas suas relações. Por outro lado, como refere Resnick (1986) sabe-se que, antes de entrarem para a escola, muitos alunos já desenvolveram capacidades de resolução de problemas, quer através da contagem, quer através da modelação informal. Esta autora considera que esta visão proporciona o desenvolvimento da sua intuição matemática e contribui, assim, para que os alunos fiquem mais libertos para inventarem os seus próprios procedimentos e, deste modo, construírem o seu conhecimento matemático.

Como afirma Sowder (1992) o sentido de número não se ensina diretamente, embora se possa desenvolver a intuição quantitativa. Assim, refere um trabalho em que os alunos tenham de efetuar cálculos para resolver problemas, neste caso, de adição e subtração, podendo ser o “motor” para que inventem os seus próprios algoritmos, desenvolvam a decomposição e recomposição de números, através de uma sequência de tarefas organizadas com objetivos concretos. Ao efetuá-los, os alunos devem ter oportunidades de desenvolver múltiplas resoluções, discuti-las e ser capazes de empregar estratégias mais

eficazes e mais eficientes tendo em conta componentes do sentido de número e das suas relações.

Assim, ao longo dos primeiros anos, os alunos podem aprender os diferentes tipos de números bem como as suas características. À medida que vão desenvolvendo o conhecimento dos números e das operações adição e subtração, “o ensino deve centrar-se nos procedimentos de cálculo com números inteiros, de modo que os alunos desenvolvam flexibilidade e destreza de cálculo” (NCTM, 2007, p. 37). Segundo o NCTM, é importante dar atenção aos processos de cálculo utilizados pelos alunos bem como a atribuição de significados reais a esses números, ligando-os às suas vivências a partir de contextos reais. É a partir da contagem pelos dedos que a compreensão dos factos matemáticos básicos tem início, devendo facilitar-se a transição do cálculo baseado na contagem para o cálculo estruturado. Para tal, deve proporcionar-se aos alunos tarefas que lhes permitam decompor números em parte iguais, organizando os números em grupos de 2, 5, 10 e 20 de forma que, gradualmente, atinjam o cálculo formal.

Como refere Liedtke (1997) o sentido de número é um requisito importante para que os alunos se tornem bons resolvedores de problemas e uma componente chave da literacia matemática, vista como um conceito mais amplo que o sentido de número e que envolve vários aspetos. Segundo Serrazina e Oliveira (2005), a literacia matemática envolve uma “noção dinâmica, integradora e assente no conhecimento em ação” (p. 37) e, por isso, ter sentido de número envolve a capacidade do indivíduo em usar e aplicar esse conhecimento e, daí, poder proporcionar o desenvolvimento do conhecimento matemático.

Também os Princípios e Normas para a Matemática Escolar salientam, entre outros, a importância da literacia matemática, entendida como um “fator que pode ajudar os alunos a tomar decisões que requerem uma certa competência quantitativa” (NCTM, 2007, p. 4). Esta ideia está de acordo com a definição adotada pela OCDE em 1999 e 2003 sobre literacia matemática ao dizer que se trata da “capacidade de um indivíduo identificar e compreender o papel que a matemática desempenha no mundo real, de fazer julgamentos bem fundamentados e de usar e se envolver na resolução matemática das necessidades da sua vida, enquanto cidadão construtivo, preocupado e reflexivo” (GAVE, 2004, p. 7). A literacia envolve igualmente “uma capacidade de colocar, formular, resolver e interpretar problemas que utilizam a matemática numa variedade de situações e contextos” (idem, p. 8).

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O atual Programa de Matemática do ensino básico tem também uma orientação no sentido da literacia matemática. Isso acontece, por exemplo, quando se enunciam as finalidades do ensino da Matemática:

No seu desenvolvimento criativo, a atividade matemática convoca recursos e capacidades cognitivas diversas como o raciocínio plausível, a imaginação e a intuição necessários à produção de conhecimento matemático. (…) Por isso, certamente também mais do que nunca, se exige da escola uma formação sólida em Matemática para todos os alunos: uma formação que permita aos alunos compreender e utilizar a Matemática, desde logo ao longo do percurso escolar de cada um, nas diferentes disciplinas em que ela é necessária, mas igualmente depois da escolaridade, na profissão e na vida pessoal e em sociedade (ME, 2007, p. 2).

Segundo McIntosh (2002), a ênfase no desenvolvimento do sentido de número nos primeiros anos de escolaridade pode colocar vários dilemas aos professores dadas as práticas tradicionais de ensino da Matemática, particularmente, o grande relevo dado ao papel dos algoritmos convencionais no dia-a-dia escolar. Este autor refere um exemplo tentando clarificar alguns dos dilemas que se podem colocar: um aluno que para calcular “27 + 36” esteja habituado a pensar e a raciocinar sobre os números e as suas relações pode mentalmente adicionar as dezenas (20 + 30), depois adicionar as unidades (7 + 6) e então adicionar 50 com 13 para dar 63; ou, de forma alternativa, começar com o 36, o número maior, adicionar mentalmente 20 para dar 56 e, finalmente, adicionar 7 (56 + 4 = 60, + 3= 63). Ambas as estratégias mentais são eficientes e eficazes, deviam ser mais desenvolvidas, baseadas na “compreensão «natural» da forma de adicionar e do trabalho do valor de posição” (idem, p. 2).

É importante o professor construir práticas e compreensões relacionadas com o cálculo mental de números pequenos que os alunos adquiriram e ajudar os alunos a desenvolver extensões dessas práticas, envolvendo registos informais e procedimentos desenvolvidos de forma pessoal. O papel do professor torna-se fundamental nestes momentos, devendo ser capaz de partir dos registos informais dos alunos na perspetiva de “chegar” ao formal. Vários estudos (Carpenter, Hiebert & Moser, 1981; Carpenter, Fennema, Fuson, Hiebert, Human, Murray, Olivier & Wearne, 1999; Carpenter, Franke, Jacobs, Fennema, & Empson, 1997) afirmam que a fase de transição pelos alunos dos processos de modelação e contagens informais desenvolvidas fora do ensino formal, para o uso de factos numéricos

memorizados e para a adição e subtração formais, é uma fase crítica e difícil da aprendizagem matemática e que isso pode conduzir a dificuldades em Matemática em alguns alunos no ensino inicial da adição e da subtração.

Em alguns países, nomeadamente, na Holanda, Estados Unidos e Inglaterra tem havido um número crescente de projetos (Beishuizen, 1999b, 2001; 2003; Blöte, Klein & Beishuizen, 2000; Carpenter et al., 1999; Carpenter et al., 1997; Fuson, 1992; Hiebert & Carpenter, 1992; Kamii & Dominick, 1997; Klein, 1998; Thompson, 1999a; Van den Heuvel- Panhuizen, 2001b) que começaram a desenvolver abordagens baseadas na discussão e encorajamento de estratégias e procedimentos de cálculo flexíveis, alguns deles com resultados interessantes. Estes estudos têm revelado um desenvolvimento progressivo a partir da contagem dos objetos para o uso de procedimentos e relações de contagem mais sofisticadas usando factos matemáticos básicos e relações numéricas.

No nosso país, embora existam trabalhos de investigação que analisam questões ligadas às operações elementares, “são conhecidos poucos trabalhos de investigação que analisem o modo como tem sido encarado o número no currículo” (Brocardo & Serrazina, 2008, p. 97). Segundo Serrazina (1994) existe também pouca ou nenhuma investigação sobre o trabalho com os alunos na resolução de problemas de adição e subtração tendo em conta os vários significados destas operações sem recurso ao algoritmo convencional e com grande incidência em estratégias e procedimentos de cálculo durante a resolução de problemas “olhando” o sentido de número. Esta autora refere que não se conhecem investigações realizadas nas escolas portuguesas sobre esta temática e “sobre estratégias de contagem e o relembrar de factos matemáticos básicos” (idem, p. 88).

Outros autores (Ponte et al., 1998) assinalam ter sido dada uma menor atenção no nosso país às aprendizagens conceptuais envolvendo, por exemplo, o sentido de número, bem como estudos que “relacionem os aspetos cognitivos com os aspetos sociais” (p. 124). Relativamente às aprendizagens, estes autores consideram que “se podem obter mudanças na aprendizagem dos alunos desde que se altere de modo adequado os processos de ensino e o ambiente de sala de aula” (p. 163). Sugerem que nos primeiros anos deve haver uma valorização dos “aspetos complexos” (não rotineiros) e que devem ser dadas oportunidades aos alunos de explorarem ideias matemáticas de um modo que vá para além da memorização de procedimentos.

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Nesta perspetiva, Ponte e Serrazina (2004) consideram que é necessária uma outra abordagem que coloque o acento tónico não na qualidade da fala do professor, mas na qualidade do discurso partilhado do professor e alunos e no modo como os significados matemáticos são interactivamente construídos na sala de aula: “considera-se importante que os alunos participem no discurso de aula e que desenvolvam a sua competência para comunicar ideias matemáticas, oralmente ou por escrito” (p. 58).

Na última década, conhecem-se poucos estudos no âmbito do desenvolvimento do sentido de número nos primeiros anos de escolaridade (Brocardo, Delgado, Mendes, Rocha & Serrazina, 2006). Um dos estudos conhecidos sobre o desenvolvimento do sentido de número, embora no âmbito dos números racionais, foi realizado por Ferreira (2002) com o objetivo de conhecer e perceber o modo como alunos do oitavo ano de escolaridade aprendem os números e as operações e de que forma se pode contribuir para um desenvolvimento significativo do sentido de número. Neste estudo, a autora procurou responder às seguintes questões: (i) como compreendem os alunos os significados do número; (ii) como manipulam as diferentes representações dos números e que conhecimento têm das relações existentes entre elas; (iii) qual o conhecimento que demonstram do efeito relativo de operar com os números; (iv) qual a sua capacidade de escolher e aplicar uma estratégia adequada na resolução de problemas que envolvem números e operações; (v) de que forma contribuem as interações aluno-aluno e aluno- professor para o desenvolvimento do sentido do número; e (vi) que relação existe entre o domínio do sentido do número dos alunos e o grau de confiança na sua capacidade de fazer Matemática.

O estudo utilizou uma metodologia qualitativa, tendo optado pela realização de seis estudos de caso em que o trabalho investigativo foi realizado extra aula. A recolha de dados foi, essencialmente, realizada com recurso à entrevista semiestruturada tendo sido propostas tarefas apresentadas em formatos diferentes: entrevista individual e em grupo de dois elementos. Após a análise dos dados, a autora refere que uma das conclusões a que chegou foi que os alunos, de um modo geral, apresentam falta de compreensão do significado dos números e que a capacidade de escolher uma estratégia adequada aos problemas propostos está relacionada com o nível de desenvolvimento do sentido de número, o grau de confiança em fazer Matemática e com as suas experiências.

Um estudo mais recente foi realizado por Gonçalves (2008) com o objetivo de compreender como os alunos do primeiro ano de escolaridade mobilizam aspetos do sentido de número na resolução de problemas numéricos, em que procurou identificar: (i) que estratégias utilizam os alunos na resolução de problemas numéricos; (ii) que dificuldades experienciam os alunos na resolução de problemas numéricos; e (iii) que contextos favorecem a resolução de problemas numéricos. Este estudo teve como base uma proposta pedagógica desenvolvida ao longo de seis aulas, tendo adotado uma metodologia de investigação essencialmente, qualitativa e realização de três estudos de caso. A recolha de dados teve como instrumentos preferenciais a observação participante, entrevistas de natureza clínica e recolha documental. Na análise de dados, a autora refere a motivação dos alunos na resolução dos problemas numéricos com recurso a diferentes estratégias em que mobilizaram diversos aspetos do sentido de número, tendo concluído que os alunos desenvolveram aspetos importantes do conhecimento e destreza com os números e operações, aplicando este conhecimento em contextos de cálculo. Relativamente às dificuldades encontradas, este estudo aponta a explicação dos raciocínios, a interpretação dos problemas e a compreensão de relações entre o contexto do problema e o cálculo necessário.

Em síntese, considero que este estudo é pertinente tendo em conta: (i) a ênfase dada ao sentido de número no atual Programa de Matemática do Ensino Básico (ME, 2007); (ii) vários autores (McIntosh et al., 1992; Yang & Tsai, 2010) que referem que o desenvolvimento do sentido de número é um aspeto essencial da aprendizagem matemática e que o seu ensino e aprendizagem devem estar integrados nos currículos de matemática nos primeiros anos; e (iii) à pouca investigação existente em Portugal sobre esta temática.