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Perversa ambiguidade: a proteção que subordina

A negação ou não reconhecimento da desigualdade de gênero também está presente em mecanismos criados de proteção/emancipação das mulheres. Inseridas nas políticas analisadas, algumas medidas, benefícios, programas, ações mostram-se ambíguas sob a perspectiva de gênero, de forma que podem reforçar a desigualdade de gênero sob o pretexto de enfrentá-la. Reconhecer a contradição existente em medidas, benefícios, programas, como integrantes de políticas, pode levar a uma reflexão que permita distinguir os seus efeitos. Neste sentido, compreendemos que sob a perspectiva de gênero, a adoção do trabalho com famílias reflete um caminho duplo: um que aponta para a proteção da mulher aí vista como vulnerável, e

74 outro que reitera os papéis de gênero, sendo que ambos possuem o mesmo destino: a subordinação da mulher.

Grande parte dos depoimentos se refere à mulher enquanto mãe, avó e/ou cuidadora, responsável pelo provimento emocional. Entendemos que este tipo de reconhecimento não retira a mulher do lugar de subordinação, mas configura, em si mesmo, em um reconhecimento subordinante. O entendimento de que as mulheres estão mais vulneráveis ao sistema patriarcal/capitalista, não garante por si o entendimento de que esta é uma desigualdade de gênero. Reconhece elementos que a tornam socialmente vulnerável ao mesmo tempo em que os reforça.

O que estamos denominando de reconhecimento subordinante, não significa, portanto, o reconhecimento da subordinação/dominação inerente ao sistema patriarcal/capitalista; ao contrário o reconhecimento subordinante é em si a materialização da subordinação de gênero dentro das políticas de Seguridade Social.

Entendemos que esse tipo de reconhecimento representa um modelo de proteção que reitera os papéis de gênero, cristalizando a desigualdade de gênero e imprimindo com cores fortes a subordinação/dominação cotidianamente vivenciada pelas mulheres, justamente porque a mulher não é priorizada enquanto mulher e sim como cuidadora.

É, é o que eu falo, hoje, o conceito de família que a gente tinha antiga... uns tempos atrás, o homem, a mulher e os filhos, hoje já não existe praticamente. Hoje existe a mulher, com a... a

mãe, a filha e os filhos. A avó muitas vezes como sendo a cabeça da família, entendeu. Então nisso existe uma mudança,

a gente sente bem, a grande maioria de pessoas que estão separadas e que a mulher que passa a ser a cabeça. Então o trabalho que a gente faz enquanto família, também, hoje, é bem diferente. Então a gente tem essa observação de que a família não é mais como era. Então a gente sempre tem que trabalhar também isso, então o foco não é mais o casal, é mais

a mulher que cuida dos filhos. Então é um pouco diferente.

75 Neste fragmento detectamos ainda a expectativa de uma família patriarcal, como um ideal, quando aponta que o foco não é o casal. Ou seja, na ausência do homem provedor a mulher passa a assumir um papel que não é considerado “naturalmente” seu.

Corroborando a ideia de que o homem deve ser o provedor, uma das entrevistadas argumenta:

O que eu percebo, na maioria das vezes quando isso acontece é a sobrecarga da mulher, né? Porque a mulher busca muito essa liberdade, gosta de ditar as regras, enfim, mas quando ela tem alguém em casa, que ou ganha pouco ou não trabalha e depende do salário dela parece que ela se sente muito fragilizada. Quer inversão, mas acaba não gostando muito de estar naquelas condições, porque acaba sendo muito pesado pra ela, por que ela é mãe, ela é esposa, ela é a provedora do lar...E eu acho que no fundo no fundo a mulher não gosta muito desse papel, não e eu vejo que é muito pesado pra ela... (Entrevistada UBS 2)

Este depoimento é especialmente provocante porque instiga algumas importantes reflexões:

A) indica que as mulheres buscam uma inversão, apesar de não apontar ao certo se trata da inversão de poderes ou de papéis, a ideia de inversão pressupõe a assimetria e a disputa na relação entre homens e mulheres.

B) Outra reflexão está ligada ao fato de que assumir a provisão material não desonera a mulher de continuar prestando outros serviços familiares, constituindo-se em agregação de mais uma tarefa.

C) Traz também a necessidade de refletir sobre a imagem de homem somente provedor, que se vê fragilizado quando não consegue cumprir esse papel.

No que diz respeito à primeira reflexão, ou seja, a afirmação de que as mulheres buscariam uma inversão, tanto de papéis quanto de poderes, resulta na ideia de que lugar de mulher é distinto do lugar de homem. E ainda que as mulheres ficariam insatisfeitas quando atingissem esse lugar, sugerindo que o lugar natural da mulher é o do cuidado, do âmbito privado, da submissão. Essa

76 compreensão de que as mulheres não gostam de ficar na posição de provedoras, como no caso apontado pela entrevistada, nos remete a uma dupla possibilidade, a de que ela não gosta de ficar nessa posição porque ela introjetou o que foi culturalmente determinado de que o papel de provedor é o do homem, ou seja, o que ela buscaria seria exatamente um homem que realizasse esse papel, aceitando o papel de cuidadora do lar e da família à ela atribuído.

Outra possibilidade está relacionada à ideia de que ela não gosta de ficar nessa posição porque ela não tem com quem dividir todas as outras atividades/responsabilidades. O problema não seria exatamente o fato dela ser a única ou principal provedora, mas o fato de que as responsabilidades de cuidado continuam sob sua responsabilidade; a mulher acessa o papel do homem, mas ele não acessa o papel da mulher, que aí se encontra em uma bifurcação: uma leva para o entendimento do trabalho de cuidado com a família e com a casa como um trabalho de menor importância e por isso de responsabilidade da mulher, o outro caminho leva ao entendimento de que o homem é incapaz de realizar tais tarefas.

Este posicionamento pode ser decorrente de uma imagem de feminismo que corresponde a mulheres que querem tomar o lugar dos homens. Esse seria o lugar do poder, da força, posicionando-se num patamar elevado com relação à outros componentes da organização familiar, que também é visto num patamar elevado em relação à sociedade. Certamente, houve momentos e grupos que postularam a inversão de papéis, contudo, conforme tratamos anteriormente, o feminismo é constituído de diversos feminismos, o que resulta dizer que a defesa dessa imagem do feminismo – e tudo o que a ela é relativo – como um movimento que busca destruir o outro, na atual conjuntura corresponde a defender os mesmos interesses que postulam a desigualdade de gênero.

Ou seja, a própria ideia de inversão se constitui uma questão a ser debatida, considerando que em nosso entendimento o ideal seria não haver

77 papéis a serem invertidos, menos ainda que um papel se sobrepusesse ao outro com maior ou menor grau de importância.

O segundo argumento é relativo à menção, pela entrevistada, de que a mulher assume o papel de provedora material, acumulando os outros papéis atribuídos à ela: mãe, esposa e cuidadora. Um aspecto desta afirmação remete a um argumento tratado anteriormente de que as mulheres buscaram a igualdade, no sentido de que elas ambicionaram a conquista do espaço publico – aqui compreendido como fora do âmbito doméstico – e agora parte do pressuposto de que a conquista já se concretizou. Do que poderiam reclamar as mulheres se foram elas que buscaram isso? Questionamos aqui a naturalização desse processo, tomando como apropriada essa divisão.

A questão da divisão sexual do trabalho reprodutivo/doméstico é elemento importantíssimo tanto para a manutenção da desigualdade de gênero quanto para sua desconstrução. A dupla, tripla, quádrupla (ou quantas forem possíveis) jornada de trabalho, são indicadores de que as mulheres tem sido responsabilizadas por um sem-número de atividades produtivas/reprodutivas em todas as esferas da vida social.

Mais uma vez identificamos que o fato de reconhecer essa sobrecarga não retira a mulher da condição de subordinação/dominação, já que se identifica a sobrecarga como inerente à condição de mulher.

Em relação ao terceiro ponto de reflexão, não podemos negar que há famílias que se organizam de forma em que as mulheres se configuram como provedoras e os homens ficam no âmbito do lar, ou ainda famílias em que as mulheres auferem salários maiores do que os homens. Entretanto, somente o fato de homens cuidarem das atividades de reprodução/cuidado, ou ainda, de mulheres atingirem maiores salários, não constitui em si um problema. O problema encontra-se na ideia de que isso não é normal.

Identificamos, nesse sentido, três apontamentos primordiais.

1) Reconhecer como “fora do normal”, homens ganharem menos ou cuidarem da casa e dos(as) filhos e filhas, no limite, corresponde à reprodução

78 da naturalização de papéis socialmente atribuídos. Essa perspectiva não é boa nem para as mulheres e nem para os homens.

2) O não cumprimento do seu papel de provedor, traz para o homem o sentimento de incompetência e impotência. Se seu principal papel é o de provedor, e nisso ele falha, logo “o homem da casa é a mulher”, visto que caberá a ela cumprir esse papel. Esvaziar a identidade do homem com a imagem do provedor é perigoso porque gera sensação de insatisfação tanto para homem que não cumpriu seu papel, quanto para a mulher que esperava que ele o fizesse. Nesse sentido ambos têm expectativa baseada na seguinte operação: homem = provedor = bem sucedido.

3) Perguntamos: Ora, não estávamos tratando de famílias? Onde estão os outros membros e quais são seus papéis nestas famílias?

Constitui em grande armadilha, para as mulheres, negar a capacidade de cuidado do homem, negar a possibilidade do homem realizar as atividades de produção e reprodução. Não se pode negar que por motivos óbvios os homens não podem engravidar, fora isso, todas as outras expectativas são socialmente construídas.

Torna-se perigoso porque nega a capacidade do homem de realizar as tarefas de cuidado com o lar e com a família. Perigoso, também, porque atribui somente ao homem as capacidades inerentes ao acesso à recursos materiais. Podemos citar que em mais de um depoimento houve menção de que homens tem mais facilidade de chefiar, ou maior disponibilidade para o trabalho, como um atributo naturalmente masculino. Fragilizando a imagem da mulher quando de seu acesso à essas situações.

Importante ponderar sobre a dimensão coletiva e cultural destes pontos refletidos, na medida em que essas relações são mediadas culturalmente por uma dinâmica que exige de todas e todos o sucesso baseado na ideologia capitalista/neoliberal. Essa dimensão se torna especialmente pertinente na medida em que as pessoas são responsabilizadas por seu sucesso ou fracasso, desconsiderando que os papéis de gênero são socialmente construídos.

79 Devemos afirmar que o sistema patriarcal é cruel com homens e mulheres. Não se trata aqui de dizer que as mulheres são vítimas e homens algozes, também não se trata de afastar os homens, criando uma oposição binária, muito pelo contrário, é necessário expormos e darmos visibilidade para a questão de gênero para que fique nítido que nem homens e nem mulheres têm liberdade para se constituírem como seres plenos e livres. Homens, mulheres, e todas as identidades de gênero tem seu cotidiano transformado pela lógica patriarcal/capitalista, não se trata portanto de uma luta individual por reconhecimento, mas uma luta coletiva por justiça e liberdade.

É necessário reiterar que não há sociedade livre e equânime, havendo desigualdade de gênero, isso pressupõe dizer que não se trata de inverter as posições de dominação/subordinação/exploração entre os sexos. Significa, sim, a construção de um outro modelo de sociedade livre de qualquer tipo de dominação/subordinação/exploração, inclusive a de gênero.

Nos meandros da desigualdade de gênero, sob a ótica patriarcal/capitalista, alguns mecanismos que aparentemente buscam efetivar a emancipação da mulher, trazem em si armadilhas porque tornam mais resistentes os grilhões que a aprisionam.

Exemplo disso é a oferta de cursos em que se reforçam atividades em que as mulheres possam permanecer em casa, ou ainda que as oportunidades advindas do curso são relativas a trabalhos precários, mal pagos.

É cabeleireiro, no ano passado nós tínhamos, cabeleireiro, corte e costura, canto coral e expressão corporal. Aliás cabeleireiro e manicure tem uma procura muito grande, porque é trabalho imediato, né. Corte e costura também porque nós temos muitas paraguaias de bolivianas...elas trabalham numas oficinas aí na região do Brás... ou mesmo elas montam com o companheiro uma oficininha de roupa, e ai vão vender na feirinha da madrugada, então tem essa procura também. Porque aí é uma possibilidade de trabalhar em alguma oficina. É assim: a possibilidade de conseguir um trabalho, mas cabeleireiro e manicure é o que elas mais procuram. Artesanato agora, tá caminhando, porque é um artesanato ecológico, reciclado, então não tem muito gasto porque elas

80 vão pegando aí pela rua madeira, retalho... (Entrevistada CCM 2)

Entretanto, o mais instigante é a compreensão da existência deste curso como uma real possibilidade de “emancipação”11, não podemos negar que em

alguns casos as mulheres são beneficiadas por terem acesso à uma renda com a qual não podiam contar. Não podemos negar também que, de qualquer forma, esses cursos se configuram em uma oportunidade para mulheres que não tem nenhum outro recurso. Contudo, isso não significa defender que essas ações são suficientes para atender às necessidades dessas mulheres, ou seja, atuam como um lenitivo. É ambígua a oferta deste tipo de serviço (cursos, cooperativas, etc) porque ao mesmo tempo em que se configuram em oportunidades, reiteram a inserção subordinada, precária e flexibilizada das mulheres no mercado de trabalho, refletindo em salários ainda menores.

Uma possibilidade que justificaria esse entendimento seria a de que a renda das mulheres é uma renda complementar, em que ela tem papel coadjuvante, o provedor principal é o homem. Essa justificativa compreende mulher como naturalmente destinada ao lar e a família, assim sua dedicação ao trabalho se daria em duas circunstâncias, uma em que o homem é bem sucedido em seu papel de provedor, portanto ela tem a opção de realizar um trabalho remunerado, outra circunstância seria a de que a renda principal é a do homem e ela trabalha por necessidade de complementação da renda familiar.

Ocorre que muitas vezes a mulher é responsável pela provisão da família com o equivalente à renda complementar. Como apontado por uma das entrevistadas; às vezes a mulher tem mais facilidade de conseguir trabalho:

11 Inserimos a palavra emancipação entre aspas, por entendermos que a

realização da emancipação não se dá com a inserção no mercado de trabalho sob a lógica do capital. Neste caso, menor ainda a possibilidade de emancipação através de atividades que não se configuram nem mesmo em inserção formal no mercado, mas em trabalhos precários, parciais, mal pagos.

81 mas talvez pela responsabilidade ou por ele não conseguir manter, por exemplo, monetariamente essa família, então ele se sente menosprezado porque é colocado, para normalmente o homem assumir a cabeça da família e hoje ele não consegue, às vezes a mulher tem mais oportunidade do que o homem para conseguir empregos não definidos, mas de ir

como doméstica, como faxineira, com empregos, ou até fazer em casa alguma coisa, então ela consegue manter, ter o dinheiro mais do que o homem que exige uma certa... mais firmeza ou uma coisa mais definida. (Entrevistada CRAS 2,

grifo nosso)

Podemos, aqui, depreender dois aspectos relevantes, o primeiro diz respeito à naturalidade com que a entrevistada encara o fato de que as mulheres sejam destinadas à trabalhos informais, precários, flexíveis e mal pagos, reiterando que aquele não é seu papel, ela o realiza em momentos de necessidade familiar. E que no caso apontado pela entrevistada a mulher passa a receber pagamento por um trabalho que é naturalmente destinado à ela.

O segundo aspecto é que ela utiliza a palavra “normalmente” para descrever que o homem é quem deve prover materialmente a família, dizendo inclusive que para o trabalho do homem é necessário que seja “uma coisa mais definida”.

Os últimos dois fragmentos de entrevista remontam à naturalização da divisão sexual do trabalho, delimitam os papéis sexualmente e socialmente atribuídos, colocando cada qual em seu lugar. Ao mesmo tempo em que dão destaque para ações, que a priori, são entendidas como práticas que retiram a mulher da subordinação.

Uma reflexão realizada por um dos entrevistados revela a preocupação com a tentativa de proteção social que pode se converter em armadilha no âmbito da Previdência Social:

hoje, a licença-maternidade é de quatro meses, aí querem aumentar para seis meses, mas se você quer criar uma medida que é para proteger, você acaba prejudicando, porque – quem vai contratar, deixa de contratar porque ela tem essa proteção. Então não é simplesmente: vamos criar uma proteção maior

82 para a mulher, só que se você cria uma proteção maior para a

mulher você acaba criando uma certa dificuldade (...) vamos dar o salário-maternidade para mulher, então dá para o homem, também. Então fica os dois os quatro meses em casa, daí você vai ter uma equiparação. Então na hora de contratar

eles falam: “não vou contratar mulher, prefiro contratar o homem porque o homem não tem licença-maternidade”. (Entrevistado APS 3, grifo nosso)

O entrevistado fundamenta sua preocupação sob a ótica do(a) empregador(a)12 alegando que este(a) ficaria sem sua funcionária pelo período da licença, que pode variar de 140 a 180 dias. Argumenta que uma das alternativas seria a criação da licença paternidade, assim não haveria distinção, de forma que tanto homens quanto mulheres teriam direito à licença.

O mesmo entrevistado aponta que houve recente decisão judicial concedendo o salário-maternidade para um homem, a este respeito o entrevistado argumenta:

Se o homem está na condição de mãe daquela, se nasceu a criança e a mãe faleceu, ele vai ficar nessa condição, também tem que ser igual. Então a gente tem essa questão. (Entrevistado APS 3)

Nesse caso seu argumento se baseia na condição, ou seja, baseia-se no papel atribuído. Quando o entrevistado diz que o homem vai ficar na condição de mãe, subentende-se condição de cuidador.

Estes dois posicionamentos parecem não se relacionar, mas ambos reconhecem a capacidade do homem de exercer atividades de cuidado, reconhecem que há uma divisão sexual do trabalho e que existem formas de enfrentar esta questão. particularmente interessante que esta reflexão tenha sido realizada por um homem, pois significa a possibilidade de um movimento

12 Ressalte-se que não há ônus para o empregador com referência ao salário

maternidade. No caso da mulher empregada (com vínculo empregatício) o empregador paga o salário e recebe abatimento dos impostos devidos. No caso da mulher desempregada, trabalhadora doméstica, trabalhadora rural, contribuinte individual, facultativa ou avulsa, ou ainda no caso de mulheres adotantes o requerimento é realizado nas agências do INSS e pago pelo mesmo órgão.

83 de desnaturalização da relação entre maternidade e paternidade, principalmente aquela que considera maternidade sinônimo de cuidado.

Entendemos que a preocupação apontada pelo entrevistado é pertinente na medida em que as responsabilidades de cuidados são consideradas como atributos naturais das mulheres, e portanto, ao gerar medidas – sob este estigma – que visem proteger as mulheres produz o efeito de reiteração desses atributos reforçando assim as desigualdades de gênero.

Exemplo disso está no trecho abaixo destacado em que a entrevistada se refere à saúde da mulher:

Eu acho que assim, isso é muito claro, você tem na saúde da mulher, você tem o pré-natal, você tem o papanicolau, você tem a mamografia, e é tudo muito bem divulgado. (Entrevistada UBS 2)

É importante salientar a ambiguidade presente no fato de que a entrevistada faz referência à saúde da mulher, reduzindo-a à saúde reprodutiva. Não negamos a importância da saúde reprodutiva de homens e mulheres, mas acreditamos que no que tange ao atendimento básico de saúde seria necessária uma visão mais ampla e holística. A entrevistada adverte ainda para o fato que não há distinção entre homens e mulheres reivindicando a universalidade de acesso, mas revela a tentativa de traçar um perfil epidemiológico relativo à hipertensão, pois de acordo com a experiência profissional acredita haver maior incidência de hipertensão arterial entre as mulheres devido à sobrecarga de responsabilidades. Identifica que há maior sobrecarga das mulheres, vislumbra o impacto desta sobrecarga sobre as mulheres, mas cita ações específicas para trabalhar a saúde do homem.

Temos a inferir que, nesse caso, a ambiguidade presente no discurso reforça a naturalização dos papéis de gênero, e se condensa sem questionamento na materialização de seu trabalho.

Paralelamente a esta reflexão, pedimos licença ao leitor para recuperarmos uma discussão anteriormente iniciada, relativa à família.

84 Desejamos aqui propor uma reflexão, sobre o que entendemos ser uma ambiguidade: a leitura que se faz da questão de gênero ao adotar-se a família como foco de trabalho. O entrevistado do CRAS 3, refere que a questão de