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Poder intrafamiliar: econômico e sociocultural

A questão do poder foi identificada em distintos momentos, sob diversos ângulos, detectamos um gradiente de tendências a este respeito. Uma das tendências aponta a persistência do machismo baseado no patriarcado que dá bases para sua perpetuação:

86 mas ainda a gente vê homens ainda, que acham que ele é que tem que trabalhar, que a mulher não é para trabalhar, porque a mulher não pode ganhar mais do que ele, a gente percebe bastante, ainda. Um certo machismo ainda, assim como tem preconceito de raça ainda, é proibido mas tem, as minorias ainda acabam sofrendo e a questão do gênero também. (Entrevistado APS 2)

Primordial identificarmos que o entrevistado reconhece duas dimensões de poder: uma que está ligada ao gênero e a questões étnico-raciais e outra ligada à questão do poder financeiro.

A primeira dimensão se revela na medida em que o entrevistado considera como minorias as grandes parcelas da população – mulheres, negros(as), indígenas, sujeitos da questão étnico-racial e as vislumbra não por sua real dimensão populacional mas por parcelas de poder que podem acessar. Subentendemos, assim, que a ideia do poder está ligada ao homem branco.

A segunda dimensão ligada ao poder financeiro se desdobra em duas reflexões. Uma delas apesar de não mencionada diretamente, se refere à desigualdade entre classes sociais que está presente em nossa análise justamente porque constitui uma das bases em que se fundamenta a sociedade patriarcal/capitalista.

A outra reflexão trata de uma questão mencionada em outros depoimentos, que relacionam o poder de mando intrafamiliar ao poder financeiro. Importante, porque esta questão expõe a existência de uma relação de poder dentro das famílias, que não é subjacente somente ao gênero ou ainda à questão financeira, mas a todas as relações familiares.

A dimensão de classe social é determinante para nossa análise na medida em que identificamos que as relações sociais – inclusive as relações de gênero – são atravessadas por determinações do capital. Nossa leitura é a de que as relações sociais de classe e de gênero se entrecruzam e se apresentam em hierarquias socialmente e sexualmente determinadas. Talvez por isso no que tange às relações familiares haja a representação de que “manda mais

87 quem tem mais dinheiro”, representando a lógica capitalista dentro das famílias ao estabelecer uma relação direta entre poder financeiro e poder de mando como no trecho abaixo destacado:

Por que hoje em dia o poder tá muito, dentro da família, pra aquele que ganha mais... “Eu ganho mais eu mando”, “Eu trabalho, então você que tem as obrigações da casa e você me obedece...”, e hoje tá muito equiparado isso, até por que as mulheres, principalmente aqui, nesse bairro, nessa vila, a maioria trabalha... Seja em creche ou em casas como domesticas, mas a maioria trabalha. Eu acho que o poder está mais com aquela que ganha mais... “Eu ganho mais então eu que dito aqui dentro, eu que decido o que eu vou comprar, no que eu vou gastar...” (Entrevistada UBS 2)

É contraditório que haja essa representação de que “manda mais quem tem mais dinheiro” na medida em que reproduz a ideologia capitalista/patriarcal, ao mesmo tempo em que nega a sobrecarga das mulheres. Esta mesma entrevistada apontou anteriormente em trecho já destacado que as mulheres se sentem fragilizadas quando seu salário é maior do que o dos homens, outras entrevistas apontam para a sobrecarga das mulheres, ou seja, como se articula o fato de poder mandar porque ganha mais dinheiro e se sentir fragilizada porque ganha mais ao mesmo tempo em que não há divisão das tarefas domésticas?

Identificamos a mesma questão no argumento abaixo:

Eu acho que isso acaba enaltecendo, trocando um poder, a gente tira um poder que existe para o homem e passa para a mulher, um poder que muitas vezes é visto como financeiro. Então essa mulher que se diz emancipada por agora ter uma renda, ela acaba usando os mesmos mecanismos que o marido tinha quando tinha o poder financeiro dentro daquela residência. Então eu acho que não rompe. Não, não estabelece uma igualdade, inverte os papéis. (Entrevistada do CRAS 1) Se todas as entrevistas apontaram a sobrecarga da mulher, principalmente com relação às atividades de trabalho doméstico e de cuidados

88 familiares, questionamos: que poder de mando familiar é esse que não se concretiza em divisão das tarefas de cuidado e reprodução da vida social?

No mesmo sentido a argumentação da entrevistada do CCM 3, aponta que as mulheres tem grande participação nas tarefas de reprodução da vida social em movimentos comunitários da sociedade civil, mas que não ocupam cargos de liderança:

A gente aprendeu, logo de criança, em casa, que é que manda. Quem manda no que, e quem dá a última palavra. A gente aprende e isso vai sendo reproduzido em outras instituições, e isso é uma questão cultural, e isso vai fazendo com que muitas mulheres possam ter seus destinos alterados, a perspectiva de vida dela. E aí além dessa questão da mídia, tem a questão de assumir lideranças políticas, e assim como nos serviços públicos, também na sociedade as mulheres são as formiguinhas nas entidades sociais, nas associações de moradores, quem vai fazer a mobilização, mas na frente quem é o líder? Quem é o presidente da associação? Quem lida com dinheiro da associação? (Entrevistada do CCM 3)

Talvez um dos sintomas desta persistência do machismo, baseado na ordem patriarcal/capitalista, esteja representado no apontamento de que apesar do intenso trabalho das mulheres no âmbito de sua comunidade, em tarefas de articulação de recursos e até mesmo na gestão da reprodução da vida social, nas tarefas de liderança os postos são majoritariamente ocupados por homens, sendo frequente encontrar associações, ONGs e instituições em que apesar do grande número de mulheres as funções de liderança são todos ocupadas por homens. É interessante a percepção de que os mecanismos de poder perpassam as relações, mas não são rearticulados com a leitura de realidade.

Em nossa pesquisa empírica ficou evidente que as(os) gestoras(es) entrevistadas(os) no âmbito das políticas de Seguridade Social vislumbram alguns aspectos da desigualdade de gênero, principalmente com relação à sobrecarga das mulheres. Mas essa leitura não se materializa em reflexão crítica a respeito destes determinantes sociais, e consequentemente não se

89 condensam em enfrentamento à desigualdade de gênero no cotidiano de trabalho.

Não negamos que algumas transformações estejam em curso no que tange à relação entre gênero e poder, mas não compreendemos que as mudanças em curso sejam suficientes para afirmar que as mulheres atingiram o mesmo patamar de poder a que os homens têm acesso.

4. 7. Políticas sociais: estratégias de enfrentamento à desigualdade