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Pessoalidade e desejo patrimonial no primeiro período medieval

Do século V ao IX, em um ambiente social caracterizado pelo sentimento de insegurança decorrente das invasões dos povos bárbaros, conforme explica António José Avelãs Nunes100, continuou a prática já existente ao final do Império Romano de os lavradores livres se colocarem sob a proteção dos latifundiários, desta vez, sob a égide dos líderes dos bárbaros que haviam se apoderado dos grandes domínios fundiários que pertenciam aos romanos, realizando um pacto de fidelidade pessoal e, em regra, entregando seus bens, passando a condição de servos, um dos elementos essenciais na construção do sistema de laços de dependência pessoal com fundamento na posse da terra, que repercutiu na estrutura econômica, política e social da Europa Ocidental.

Em uma época marcada pelo paradigma teocêntrico, Marvin Perry101 expõe que "o cristianismo foi o princípio integrador da Idade Média e a Igreja, sua instituição dominante", existindo a concepção hierárquica na qual, todos os seres e coisas ocupavam

99 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução de Waltensir Dutra e

Silvana Vieira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 148.

100 NUNES, António José Avelãs. Uma introdução a Economia Política. São Paulo: Quartier Latin,

2007, p. 86.

101 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução de Waltensir Dutra e

uma posição conforme a natureza de cada um, numa ordem na qual Deus é a fonte de toda a existência e ponto de convergência de tudo; havendo, simultaneamente, o fortalecimento do papado por meio da atuação do sumo pontífice Gregório I, o Grande (590-604), que intensificou sua autoridade sobre bispos e monges e utilizou a metodologia romana de administração para "organizar com eficiência as propriedades pontificais na Itália, Sicília, Sardenha, Gália e outras regiões".

No Reino dos Francos, na época da dinastia merovíngia, do século V até o ano de 751, que, no tempo de Clovis I (466-511), correspondia a áreas centrais da Europa, contendo regiões da Alemanha e da França atuais, já existiam, segundo François Louis Ganshof102, a vassalidade, regime de subordinação e de serviço da parte de uma pessoa para com outra, e o beneficium (benefício) de concessão de terras vitalícias, com direito a ocupação e usufruto. Marvin Perry103 explica que após a morte de Clovis I, seus sucessores "não conseguiram manter o controle sobre suas terras, e o poder passou a ser exercido pelo prefeito do palácio, principal funcionário do rei", sendo essa função ocupada por Carlos Martel (688-741), de 717 a 741, sujeitando ao seu domínio todos os territórios francos. Conforme explica Ganshof104, os filhos de Carlos Martel, Carlomano e Pepino, que o sucederam na administração governamental, para solucionar a questão de domínios eclesiásticos, que tinham sido usurpados por guerreiros do reino, realizaram três concílios francos, um em 743 e dois em 744, ficando estabelecido que o prefeito do palácio, possuidor do título de príncipe, ficaria com esses domínios e os concederia a título vitalício aos referidos guerreiros, que os estavam ocupando, devendo ser pago um censo (renda) à Igreja, evento significativo no período medieval.

Vale ressaltar, que o objetivo primordial na Idade Media foi a utilização dos bens para a manutenção da existência, no sentido comunitário e familiar, essa visão de mundo, segundo expõe François Ost105, é fortalecida, em um sentido, pela concepção cristã pela qual "Deus é o único verdadeiro proprietário da terra, e, por outro, pela representação

102 GANSHOF, Francois Louis. Que é o feudalismo? Tradução de Jorge Borges de Macedo. Lisboa:

Europa-América, 1968, p. 24-32.

103 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução de Waltensir Dutra e

Silvana Vieira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 155.

104 GANSHOF, Francois Louis. Que é o feudalismo? Tradução de Jorge Borges de Macedo. Lisboa:

Europa-América, 1968, p. 63-64.

105 OST, François. A natureza a margem da lei: a Ecologia a prova do Direito. Lisboa: Instituto

medieval do indivíduo, concebido dentro do grupo familiar e imerso numa ordem natural imutável", instituindo um sistema de "posse de bens de raiz" ou "propriedade-usufruto que visa a produtividade da coisa", possibilitando abranger vários direitos, tais como a exploração e a passagem, permitindo, também, que haja uma participação de vários titulares, sendo uma forma jurídica versátil, instrumentalmente adequada à realização das necessidades socioeconômicas da época.

A posse dos bens de raiz concedida por meio do benefício (elemento real) unido a vassalidade (elemento pessoal) é o sistema jurídico-econômico e institucional que fundamenta as bases da estrutura social da Idade Média, sendo que, conforme François Louis Ganshof106 explica, da segunda metade do século VII estendendo-se por todo o século IX, há uma propagação intensa da vassalidade e do benefício, uma forma de contrato, no qual, a princípio, predomina a pessoalidade, dessa forma, por exemplo, quando um vassalo guerreiro morresse, caso o senhor continuasse a necessitar de guerreiros, o benefício poderia ser transferido para outro guerreiro, por sua vez, se o senhor concedente tivesse morrido, o beneficiário teria que pedir novamente a concessão do benefício ao novo senhor, sucessor do anterior concedente, que não estaria obrigado a renovar a concessão.

Cabe destacar que, no século VIII, ocorreram dois eventos significativos para a dinastia carolíngia, com repercussão na estrutura política da Europa Ocidental, conforme destaca Marvin Perry107, consistindo na coroação de Pepino (714-768), como rei dos Francos em 751 e na coroação de seu filho Carlos Magno (747-814), como imperador dos romanos pelo Papa Leão III no ano 800, em uma tentativa de restauração do Império Romano do Ocidente, com divisão territorial de aproximadamente 250 regiões administradas por condes que "deviam fidelidade pessoal ao governante". François Louis Ganshof108 destaca, nesse sentido, a organização do poder com encadeamento de vários laços pelos quais os vassalos podem se tornar senhores, na medida em que recebem outros vassalos a seus serviços, atribuindo a eles um benefício derivado de um allodium (alódio),

106 GANSHOF, François Louis. Que é o feudalismo? Tradução de Jorge Borges de Macedo. Lisboa:

Europa-América, 1968, p. 31-39, 53-68.

107 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução de Waltensir Dutra e

Silvana Vieira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 155-157.

108 GANSHOF, François Louis. Que é o feudalismo? Tradução de Jorge Borges de Macedo. Lisboa:

ou seja, uma propriedade isenta de direitos senhoriais, ou de uma fração de benefício que tinham recebido para si próprios, sendo que, ao final do reinado de Carlos Magno a causa jurídica da concessão do benefício, era o serviço prestado pelo vassalo.

Com o tempo a denominação benefício foi substituída por feudo, decorrente da "latinização tardia" feudum, originado provavelmente do frâncico, língua indo-européia, pertencente ao ramo germânico de línguas, sub-ramo ocidental, falada pelos francos, pela qual, segundo informa John Gilissen109, "fehu-ôd = bem móvel de valor" e corresponde a "faihu = rebanho = riqueza mobiliária; ôd = bem", em gótico, língua do ramo germânico da família linguística indo-européia, sub-ramo oriental. Porém, conforme observa Marc Leopold Benjamim Bloch110, o termo feudo foi se afastando do seu conteúdo etimológico, tornando-se comum aos habitantes das casas senhoriais, nas quais sua utilização era diária, guardando somente a ideia de remuneração em si, sem se preocupar com natureza do que era concedido, se bens móveis ou imóveis, por um senhor a um vassalo em troca de obrigações de fidelidade mútua sendo que, para os mais cuidadosos com a conservação da pureza de um idioma, tais como, as chancelarias da Bretanha, da França do Norte e da Borgonha, frequentemente era reduzida "a palavra popular à categoria de comentário" com referência ao termo clássico "benefício (beneficium), vulgarmente chamado feudo", conforme documento datado de 1087.

Além das concessões nobres, que eram os feudos, existiam, segundo explica François Ost111, as concessões plebeias, realizadas pelos senhores, que consistiam na destinação das terras aos servos. Conforme expõe António José Avelãs Nunes112, havia uma divisão tripartite das terras: as reservadas ao senhor, as destinadas aos servos, mediante a imposição da corveia (prestação de serviços ao senhor em retribuição à proteção e a utilização das terras), e as comunais utilizadas tanto pelo senhor quanto pelos

109 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Tradução de António Manuel Hespanha e

Manuel Macaísta Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 189.

110 BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A sociedade feudal. Tradução de Liz Silva. 2.ed. Lisboa:

Edições 70, 1987, p. 179-180.

111 OST, François. A natureza a margem da lei: a Ecologia a prova do Direito. Lisboa: Instituto

Piaget, 1995, p. 56.

112 NUNES, António José Avelãs. Uma introdução a Economia Política. São Paulo: Quartier Latin,

servos. Existindo, segundo François Ost113 uma harmonia ecológica que segue os "desígnios de Deus" sendo "assimilada pelas injustiças de uma sociedade de castas e privilégios", na qual, não obstante isso, há a delimitação dos direitos de utilização em prol do bem comum, como, por exemplo, as regras para a manutenção dos diques para evitar inundações nos terrenos na região de Flandres, que poderiam ser utilizados para fins agrícolas; a recomendação, no que concerne as formações vegetais silvestres, de "conservar como floresta e utilizar como um bom pai de família, sem excessos nem abusos" e a proibição de uso com relação aos bosques antigos, ficando o desrespeito sujeito a aplicação de multa ou a outra forma de penalização; sendo que, os disciplinamentos de utilização das terras comunais, conforme Jean-Philippe Lévy114, emanavam da autoridade do senhor, nomeando oficiais para guardar essas áreas.

No período em que vigorou o feudalismo, segundo Marc Leopold Benjamim Bloch115, raramente havia uma referência à propriedade, sendo difícil encontrar um processo judicial no qual se defenda o direito de propriedade, não existindo esse tipo processo em nenhum outro lugar diverso da Itália, pleiteando-se, na realidade, o direito de saisina (saisin em francês antigo) ou gewere (em alemão), ou seja, o direito a posse dos bens de raiz respeitada por sua duração, na qual se não se recorria aos ordálios ou aos duelos judiciários, bastava como testemunho a memória dos homens, apresentando documentos somente para auxiliar a memória ou provar que já era uma posse, por ter havido anteriormente a sua transmissão.

Entretanto, no século IX, já se observa uma propensão para apropriação dos benefícios pelos vassalos, isto é, uma tendência de os vassalos tratarem os benefícios concedidos como suas propriedades, ou seja, afastando-se de sua real situação jurídica de direito de usufruto. Nesse sentido, François Louis Ganshof116 menciona a observação de Carlos Magno: "auditum hebemus qualiter et comites et alii homines qui nostra beneficia

habere videntur comparant sibi proprietates de ipso nostro beneficio", ou seja,

113 OST, François. A natureza a margem da lei: a Ecologia a prova do Direito. Lisboa: Instituto

Piaget, 1995, p. 55-57.

114 LÉVY, Jean-Philippe. História da propriedade. Lisboa: Editorial Estampa, 1973, p. 60.

115 BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A sociedade feudal. Tradução de Liz Silva. 2.ed. Lisboa:

Edições 70, 1987, p. 133.

116 GANSHOF, François Louis. Que é o feudalismo? Tradução de Jorge Borges de Macedo. Lisboa:

"soubemos que os condes e outros homens que de nós têm benefícios adquirem propriedades em detrimento desses benefícios que nos pertencem", valendo ressaltar que, os reis e imperadores adotavam providências para que suas res proprietatis nostrae "direitos de proprietários sobre seus alódios", que eram concedidos como benefícios para seus vassalos não fossem por eles apropriados, o que consistia numa atitude de infidelidade, evento motivador da perda do benefício.

Marc Leopold Benjamim Bloch117 observa que a vassalagem não se transmitia pelo sangue, e, dessa forma, as contraprestações, sob a forma de concessões de bens, para o vassalo, em retribuição aos serviços prestados, não deveriam se revestir um caráter hereditário, sendo, portanto, transitórias. Porém, um sinal do desejo de apropriação do benefício está no anseio do vassalo de que os bens, objeto do benefício, fossem necessariamente transmitidos, tanto no caso da morte do vassalo, neste caso, destinando- se o benefício para o seu sucessor hereditário, quanto na morte do senhor, quando se esperava que o novo senhor renovasse a concessão ao vassalo que tinha prestado serviços ao senhor anterior. Em ambas as situações, o objetivo era a segurança da manutenção de posição social ou mesmo da sobrevivência, no primeiro caso para a sua descendência, e no segundo para o próprio vassalo. Não obstante isso, a princípio, o benefício não se transmitia automaticamente, visto que, contido na vassalidade, há a pessoalidade, e, portanto, o contrato pessoal firmado por meio da homenagem e juramento de fidelidade cessa com a morte do vassalo ou do senhor, nessa perspectiva, o herdeiro do vassalo poderia não ser investido pelo senhor de seu ascendente, e, de igual forma, o novo senhor podia não concordar a renovação da investidura para o vassalo de seu antecedente.

Contudo, ocorreu um progressivo processo de transformação da concepção do benefício que resultou na sua incorporação ao patrimônio do vassalo. Uma decisão de Carlos, o Calvo, rei da Francia Occidentalis, reforçou o sentido da transmissão aos descendentes, quando, conforme explica François Louis Ganshof118, em 877, antes de partir para uma expedição à Itália, determinou na assembleia de Quierzy-sun-Oise, um regime de administração provisória dos benefícios, caso os vassalos morressem, e seus filhos não estivessem em condições de assumir os benefícios por estarem na expedição ou

117 BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A sociedade feudal. Tradução de Liz Silva. 2. ed. Lisboa:

Edições 70, 1987, p.188-189.

por serem muito novos, afirmando que seriam posteriormente revestidos dos cargos dos pais, e, ordenando, igualmente, que seus vassalos fizessem o mesmo com relação aos próprios vassalos, reconhecendo, dessa forma, o direito a sucessão por hereditariedade.

Em relação a livre disposição dos benefícios pelo sucessor do senhor, quando da morte do seu antecessor, o que representava a possibilidade de não renovar a concessão dos benefícios aos vassalos que estavam na sua posse, François Louis Ganshof119 comenta que havia resistência dos vassalos quando o novo senhor desejava exercer esse direito, exemplo disso, ocorreu após a morte de Carlos, o Calvo, em 877, quando seu filho Luís, o Gago, foi impedido de exercer o direito de não renovação dos benefícios devido à oposição geral dos mais significativos componentes do reino.

Naquele período, correspondendo aos séculos X e XI, Marc Leopold Benjamim Bloch120 explica que, tanto o caso do reconhecimento da hereditariedade do benefício, quanto a hipótese de retirar a concessão do benefício de um vassalo, eram, sobretudo, uma questão de equilíbrio de forças, nesse sentido, quando o senhorio era da Igreja, as autoridades eclesiásticas, geralmente, não possuíam a força necessária para fazer valer suas pretensões, conseguindo, os vassalos impor suas vontades; em outras situações, os senhores faziam valer suas prerrogativas, por exemplo, no caso do benefício laico de Saint-Saturnin, no período dos condes Foulque Nerra e Geofroi Martel (987-1060), quando foi frequente a retomada do benefício nas situações de perspectiva da infidelidade e de probabilidade de não realização dos serviços.

Vale ressaltar, a peculiar situação da Inglaterra, na qual após a vitória dos normandos em Hastings, no ano de 1066, Guilherme I (1027-1086) reservou para si um sexto de toda a terra, e distribuiu o restante entre a nobreza normanda que lhe ofertou apoio militar e lhe jurou fidelidade, e, para reforçar o controle real, conforme expõe Marvin Perry121, conservou a organização administrativa anglo-saxônica, continuando a terra dividida em shires (condados) administrada por sheriffs (agentes reais), sendo o

119 GANSHOF, François Louis. Que é o feudalismo? Tradução de Jorge Borges de Macedo. Lisboa:

Europa-América, 1968, p. 24-32, 63-64.

120 BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A sociedade feudal. Tradução de Liz Silva. 2.ed.Lisboa:

Edições 70, 1987, p. 210.

121 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução de Waltensir Dutra e

caráter de transmissão hereditária aos sucessores considerado normal, conforme observa Marc Leopold Benjamim Bloch122, porém, nunca foi admitido que o pai do vassalo morto fosse o sucessor, pois, provavelmente idoso, não poderia prestar o serviço militar decorrente da obrigação feudal, contudo, em geral, na sociedade europeia medieval, colocavam-se, em relevo, as linhagens e os laços de sangue, sendo frequente a sucessão hereditária, tendo em vista que, o senhor necessitava de vassalos para estarem aos seus serviços, e, considerava-se que os mais indicados seriam os descendentes dos vassalos, além disso, recusar o herdeiro de um vassalo poderia gerar intranquilidade para os outros vassalos quanto ao futuro de suas descendências e desencorajar novas fidelidades.

Portanto, não obstante a característica essencial do benefício feudal ser a pessoalidade, ao término do primeiro período medieval, são nítidos os sinais de que o feudo estava sendo considerado como patrimônio familiar, representando pelo desejo de uma proteção visando garantir, por meio do domínio direto das terras, a continuação do poder e mesmo da própria existência de um grupo com ancestralidade comum.

1.5 Incorporação patrimonial do feudo e construção do conceito jurídico de