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No ano de 527, César Flávio Justiniano (483-565) tomou posse como imperador em Constantinopla, seu objetivo foi a restauração da unidade do Império Romano, realizando campanhas militares e ordenando a sistematização do Direito Romano, de efeitos pragmáticos no que concerne a estruturação e a aplicação jurídicas, apresentando- se como um meio visando possibilitar a manutenção da pretendida reunificação.

No âmbito dos direitos reais, Justiniano determinou, conforme explica César Rascón García73, o fim da distinção entre as coisas res mancipi e as res nec mancipi referindo-se numa Constituição de 531, que aquele tipo de classificação não tinha sentido em sua época, sendo uma coisa inútil, passando a ser relevante o fato das coisas serem classificadas em móveis e imóveis; além disso, foram extintas, também, as distinções entre dominium ex iuri Quiritium (propriedade quiritária), in bonis habere (propriedade bonitária) e possessio vel usufructus (propriedade provincial).

Na organização jurídica determinada por Justiniano destaca-se o Digesto ou Pandectas, cujo significado exprime o sentido de uma abrangência ordenada e plena, contendo a compilação das obras dos jurisconsultos titulares do ius respondendi que emitiam as responsa prudentium, consistindo nas sententiae et opiniones eorum, quibus

permissum est iura condere (sentenças e opiniões que possuíam permissão para construir o direito), munidas de força de lei pelo imperador Adriano (76-138), conforme explica Ebert Chamoun74, a iurisprudentia desenvolvida possuía observância obrigatória, ou seja, magistrado devia decidir de acordo a jurisprudência estabelecida, sendo livre para julgar somente quando vários jurisconsultos tivessem opiniões divergentes sobre o caso. Porém, segundo informa Juan Iglesias75, no Digesto composto por cinquenta livros, dividido em sete partes, também foram acolhidos, contra a determinação de Justiniano, fragmentos de juristas que não eram titulares do ius respondendi.

73

GARCÍA, César Rascón. Manual de derecho romano. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2000, 303.

74 CHAMOUN, Ebert Vianna. Instituições de direito romano. 4. ed. São Paulo: Forense, 1962, p.

35-39.

75 IGLESIAS, Juan. Derecho romano: historia e instituciones. 10. ed. Barcelona: Ariel, 1990, p. 75-

Em 30 de dezembro de 533, entraram em vigor o Digesto e as Institutas, sendo o segundo livro inspirado nas Institutas do jurista clássico Gaio (117-180), conforme destaca José Carlos Moreira Alves76. A palavra institutas é o equivalente em língua portuguesa do vocábulo latino instituta e significa instituições, correspondendo à forma plural de institutus, no sentido daquilo que foi fixado ou estabelecido, sendo a origem etimológica da palavra instituto. As Institutas de Justiniano constituem uma obra destinada ao instituere que, conforme explica Ebert Chamoun77, era designação do ensino teórico elementar. Os preceitos quanto à propriedade, portanto, estão presentes no Digesto e de uma forma mais suscinta aparecem também nas Institutas.

A posse e a propriedade dos bens são perfeitamente distinguidas no Digesto, segundo informa José Carlos Moreira Alves78, nas seguintes sentenças: nihil commune

habet proprietas cum possessione (D. 41, 2, 12,1)79, significando que a propriedade nada tem em comum com a posse, e separata esse debet possessio a proprietate (D. 43, 17, 1, 2), que quer dizer que a posse deve ser separada da propriedade. Contudo, conforme Clóvis Beviláqua80, há também no Digesto a menção de que dominium rerum ex naturali

possessione cœpisse (D. 41, 2, fr. 1º, § 1º), ou seja, que o domínio sobre as coisas começa naturalmente com a posse.

Observa-se, portanto, a utilização no Digesto das palavras latinas proprietas e

proprietate, e dominium. Quanto ao sentido destes vocábulos, Roberto Ruggiero81 explica que para os romanos o termo dominium era mais frequente, significando o poder do dono (senhor) sobre alguma coisa, enquanto que o termo proprietas tem o sentido de demonstrar o pertencimento de alguma coisa a alguém.

76 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 41,

49.

77 CHAMOUN, Ebert Vianna. Instituições de direito romano. 4.ed. São Paulo: Forense, 1962, p.

35-39.

78 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 273. 79 Nas indicações referentes à sistematização jurídica ordenada por Justiniano, a letra corresponde a

inicial da obra, e a numeração que vem em sequência refere-se respectivamente ao número do livro, do título, do fragmento (no caso do Digesto) e do parágrafo, cabendo observar que se fosse um principium ao invés de parágrafo, pr. é a abreviação utilizada.

80 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das coisas. Brasília: Senado Federal, v.1, 2003, p.115.

81 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. 2. ed. Campinas: Bookseller, v. 2, 2005, p.

A doutrina geral das ações e a proteção judicial da propriedade estão dispostas nos livros 5º ao 9º, conforme expõe Juan Iglesias82, matéria de especial relevância quando o proprietário é privado do bem ou de alguma forma pode vir a ser prejudicado na utilização ou fruição do mesmo. António dos Santos Justo83 expõe que no caso de privação da propriedade cabe a rei vindicatio, e havendo a condenação para restituição da

res era admitida a execução direta com recurso à autoridade pública (manu militari) (D. 6, 1, 68); sendo que, a título de exemplo de ação com o objetivo de retirar uma limitação incidente sobre o bem, pode-se citar a actio negatoria (D. 8, 5, 2, pr.), visando rejeitar a afirmação de outrem que existia sobre o bem uma servidão. Cabe observar, que as servidões, consoante explicação de Antonio Guarino84, podiam apresentar-se como

servitutes praediorum (servidões prediais) e servitutes personarum (servidões pessoais, tais como o usufruto e direitos análogos), limitações ao proprietário quanto à plenitude do exercício dos direitos sobre a propriedade.

As servitutes praediorum (servidões prediais), conforme esclarece José Carlos Moreira Alves85, "visam à utilidade objetiva de um imóvel", constituindo-se em "um direito real sobre coisa alheia que acarreta limitação no uso de um imóvel (que se diz serviente) em favor de outro (que se denomina dominante)". As servitutes praediorum (servidões prediais), segundo informa António dos Santos Justo86, subdividem-se em

servitutes praediorum rusticorum (servidões prediais rústicas ou rurais) e servitutes

praediorum urbanorum (servidões prediais urbanas). Luiz Antonio Rolim87 explica que as servidões prediais apresentam a "característica da perpetuidade", somente se extinguindo "com o desaparecimento da coisa serviente ou dominante, pelo desaparecimento do titular, pela renúncia e pelo seu não uso", tornando-se "parte integrante do imóvel serviente, acompanhando-o mesmo quando alienado", devendo os imóveis ser vizinhos;

82 IGLESIAS, Juan. Derecho romano: historia e instituciones. 10. ed. Barcelona: Ariel, 1990, p. 76. 83 JUSTO, António dos Santos. Direito privado romano. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.

109-116.

84 GUARINO, Antonio. Diritto privato romano: lezioni istituzionali di diritto romano. Napoli:

Eugenio Jovene, 1957, p. 405.

85 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 335-

336.

86 JUSTO, António dos Santos. Direito privado romano. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.

178.

87 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de direito romano. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos

nesse sentido, são citados vários tipos, com as correspondentes finalidades; no âmbito rural, por exemplo, são indicadas as servidões de passagem ou trânsito, nas modalidades

iter "a pé, a cavalo ou de liteira", actus para "animais ou rebanhos" e via "a pé, com animais ou com veículos"; a servitus aquaeductus, "direito de canalizar água"; a servitus

aquae hauriendae, "direito de retirar água" e a servitus arena fondiendae, "direito de retirar areia"; por sua vez, no espaço urbano são mencionadas a servitus oneris ferendi, "direito de apoiar uma construção" e a servitus tigni immitendi, "direito de colocar vigas", em ambos os casos na parede do imóvel vizinho; a servitus prospiciendi e a servitus altius

non tollendi, consistindo as duas hipóteses no direito de impedir "que a construção vizinha diminua a luminosidade ou a vista do imóvel dominante" e que se realizem "construções mais altas" que prejudiquem de alguma forma o referido prédio; a servitus

stillicidii vel fluminis recipiendi visando "receber as águas servidas que correm, ou aos poucos (stillicidii) ou na forma de pequeno córrego (flumen)" e a servitus cloacae para "escoamento de esgoto".

As servitutes personarum (servidões pessoais), segundo José Carlos Moreira Alves88, "visam ao benefício pessoal de deteminado indivíduo", "são inseparáveis da pessoa a quem favorecem, e não duram permanentemente, mas, no máximo, até a morte do seu beneficiário", e, conforme explica Luiz Antonio Rolim89, "surgiram no período do direito justinianeu e classificavam-se em usufruto, uso, habitação e serviços de animais e escravos", incidindo, portanto, sobre bens imóveis, móveis e semoventes. Das servitutes

personarum a mais significativa é a usus fructus est ius alienis rebus utendi fruendi salva

rerum substantia (D. 7, 1, 1; I. 2, 4, 1), ou seja, o usufruto, o direito de usar e fruir uma coisa alheia, preservando a sua substância, sendo que, segundo esclarece António dos Santos Justo90, o imperador Justiniano, excepcionalmente, permitiu que o usufrutuário alterasse a substância do bem, quando autorizou a abertura de novas minas em terreno sujeito a usufruto, desde que o minério possuísse um valor superior que justificasse, não houvesse prejuízo para a agricultura ou para atmosfera e nem fosse necessária a utilização de um grande número de operários (D. 7, 1, 13, 5-7), cabendo ressaltar que proprietário

88 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 335-

336.

89 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de direito romano. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2008, p. 236-237.

90 JUSTO, António dos Santos. Direito privado romano. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.

continuava com o poder de disposição do bem. Conforme observa Max Kaser91, o direito de usufruto incidente sobre bens móveis e imóveis é intransmissível inter vivos e mortis

causa, e pode ser defendido pelo usufrutuário por meio da vindicatio usufructus ou da

actio confessoria (reverso da actio negatoria, que era destinada ao proprietário). Por sua vez, é estabelecido que Cum autem finitus fuerit usus fructus, revertitur scilicet ad

proprietatem, et ex eo tempore nudae proprietatis dominus incipit plenam habere in re potestatem, (I. 2, 4, 4), isto é, cessado o usufruto, há a reversão a propriedade, e a partir desse tempo, o dono da nua propriedade passa a ter pleno poder sobre a coisa, ou seja, há a consequente recuperação pelo proprietário dos poderes de usar e fruir.

Outros exemplos de servitutes personarum (servidões pessoais), constituindo-se em iura in re aliena, isto é, direitos que incidem sobre a propriedade de outra pessoa, conforme António dos Santos Justo92, são o quasi ususfructus que incide sobre bens consumíveis, sendo que se houvesse o consumo existia a obrigação de repor ao final do usufruto outros bens de mesmo gênero e qualidade (I. 2, 4, 2; D. 7 ,5, 7), o usus, que na sua origem foi o direito intransmissível e indisponível de usar um bem sem ter o poder de fruição (I. 2, 4, 2; D. 7, 8, 19), a habitatio, uma modalidade de usus indisponível e vitalícia para habitar ou arrendar uma casa alheia (I. 2, 5, 5; D. 7, 8, 10, 3), a operae

hominis vel cuius alterius animalis, ou seja, o direito de usufruir dos trabalhos de um escravo ou animal alheios (D. 7, 9, 5, 3) e a fructus sine usus, que ocorre quando o direito de fruição é de uma pessoa que não possui o direito de uso (D. 7, 1, 42, pr.).

Além das limitações ao exercício dos atributos do direito de propriedade, configuradas pelas servitutes praediorum (servidões prediais) e servitutes personarum (servidões pessoais), são, também, iura in re aliena a enfiteuse e a superfície, que, conforme José Carlos Moreira Alves93, originalmente, eram reconhecidas como direitos pessoais, e com o advento do direito justinianeu passaram a ser classificadas como

91 KASER, Max. Direito privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p.172-175.

92 JUSTO, António dos Santos. Direito privado romano. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.

201-205.

93 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 335-

direitos reais sobre coisa alheia. António dos Santos Justo94 observa que a enfiteuse, de origem grega, não foi incluída nas servitutes personarum (servidões pessoais), "provavelmente por absorver quase totalmente o exercício da propriedade da res"; por sua vez, o direito de superfície é um instituto jurídico essencialmente romano, elaborado para remover as consequências antieconômicas da concepção romana de dominium: "constituindo a propriedade imobiliária um pequeno território e pertencendo ao dominus

fundi tudo o que se lhe acrescentasse ou incorporasse (superfícies solo cedit), o edifício construído não podia deixar, também, de lhe pertencer", nesse sentido, o direito justinianeu possivelmente "influenciado pelo direito helenístico — que ignorava o princípio superfícies solo cedit e admitia a divisão da propriedade imobiliária em planos horizontais —, atribuiu à superfície a natureza de direito real".

O direito do enfiteuta, explica Antonio Guarino95, é o de usufruir e dispor, por um longo período de tempo ou perpetuamente, das terras de outrem, mediante o pagamento de uma renda, e, conforme comenta Max Kaser96, configura uma posse hereditária, ou seja, transmitida por direito de sucessão, que é alienável, penhorável e tem como medida de defesa uma actio in rem conforme o modelo da ação reivindicatória (I. 3, 24, 3).

O direito de superfície, assim como na enfiteuse, também se transmite inter vivos e mortis causa, segundo observa António dos Santos Justo97, constituindo-se de forma perpétua ou por um grande período de tempo, sendo que seu objeto é a fruição plena e exclusiva de edificação construída em solo alheio, mediante o pagamento de uma renda anual denominada pensio ou solarium. Max Kaser98 considera que o meio de defesa do direito de superfície, a "action in rem segundo o modelo da rei vindicatio só foi concedida caso a caso".

94 JUSTO, António dos Santos. Direito privado romano. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p.

206-212..

95 GUARINO, Antonio. Diritto privato romano: lezioni istituzionali di diritto romano. Napoli:

Eugenio Jovene, 1957,p. 438.

96 KASER, Max. Direito privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p.177-178.

97 JUSTO, António dos Santos. Direito privado romano. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 210. 98 KASER, Max. Direito privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle.

O Império Romano pela obra de reunificação de Justiniano chegou a abranger a Grécia, a Ásia Menor, a Itália, o sul da Espanha, o norte da África, os Bálcãs e partes do Oriente Próximo, conforme destaca Marvin Perry99, porém, após seu governo, esses territórios foram sendo progressivamente perdidos, em decorrência da invasão de outros povos, tais como, novas invasões bárbaras na Europa, por exemplo, a conquista da Itália pelos Lombardos em 568. Entretanto, a sistematização jurídica ordenada por Justiniano influenciou intensamente o desenvolvimento do Direito na civilização ocidental, valendo ressaltar a construção, no segundo período da era medieval, a partir do século XII, da concepção dos poderes do proprietário, que repercutiu em várias codificações tais como, o Código Civil francês de 1804, o Código Civil alemão de 1896 e o Código Civil brasileiro de 1916 e o atual de 2002.