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Proclamações liberais e materialização do contrato social

Nas proclamações liberais do século XVIII, embora com alguma diversificação, está presente, em essência, a defesa dos ideais da liberdade, da propriedade e da segurança para os indivíduos. Por exemplo, na Declaration of Rights made by the

Representatives of the Good People of Virginia (Declaração de Direitos feita pelos Representantes do Bom Povo da Virgínia)201, de 1776, existem as seguintes determinações:

Section 1.That all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety.

[…]

Section 6. That elections of members to serve as representatives of the people, in assembly ought to be free; and that all men, having sufficient evidence of permanent common interest with, and attachment to, the community, have the right of suffrage and cannot be taxed or deprived of their property for public uses without their own consent or that of their representatives so elected, nor bound by any law to which they have not, in like manner, assembled for the public good.

[…]

Section 11. That in controversies respecting property, and in suits between man and man, the ancient trial by jury is preferable to any other and ought to be held sacred.202

200 Ibidem, p. 337.

201 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Arquivo Nacional. Declaration of Rights made by the

Representatives of the Good People of Virginia. Disponível em: <http://www.archives.gov/exhibits/charters/virginia_declaration_of_rights.html>. Acesso em: 18 set. 2010.

202 Seção 1. Que todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos

Por sua vez, na Déclaration des droits de l'Homme et du citoyen (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão)203 de 1789, é afirmado que:

Article II. Le but de toute association politique est la conservation des droits

naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l’oppression.

[...]

Article XVII La propriété étant un droit inviolable et sacré, nul ne peut en être privé, si ce n’est lorsque la nécessité publique, légalement constatée, l’exige évidemment, et sous la condition d’une juste et préalable indemnité204

A instauração do Estado Liberal de Direito, advinda de dois eventos significativos que são a Independência Americana (1776-1783) e a Revolução Francesa (1789-1799), materializou a representação simbólica do contrato social por meio respectivamente pela Constituição dos Estados Unidos da America de 1787, incluindo suas dez primeiras emendas, conhecidas como Bill of Rights (Declaração de Direitos), ratificadas em 1791, e pela Constituição Francesa de 1791, com o respeito à propriedade e a liberdade e a submissão e igualdade de todos perante as leis, expressão da vontade geral.

acordo privar ou despojar sua posteridade, ou seja, desfrutar da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade e buscar e obter felicidade e segurança.

[...]

Seção 6. As eleições dos membros para servir como representantes do povo, em assembléia, devem ser livres, e que todos os homens que dêem provas suficientes de interesse comum permanente e pertencimento à comunidade, têm o direito de sufrágio e não podem ser tributados ou destituídos de sua propriedade para uso público sem o seu consentimento próprio ou de seus representantes assim eleitos, nem estejam obrigados por lei alguma que não tenha sido, nos mesmos moldes, constituida para o bem público.

[...]

Seção 11. Que em litígios referentes à propriedade, e em fatos entre os homens, o antigo julgamento pelo júri é preferível a qualquer outro e deve ser considerado sagrado. (tradução livre)

203 FRANÇA. Assembleia Nacional. Déclaration des droits de l'Homme et du citoyen de 1789.

Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp>. Acesso em: 18 set. 2010.

204 Artigo II. O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

[...]

Artigo XVII A propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser privado do mesmo, exceto quando a necessidade pública, legalmente constatada, evidentemente o exige, e, sob a condição de uma indenização justa e prévia. (tradução livre)

No contexto do sistema econômico que se justificou com a ideologia liberal, ou seja, o capitalismo, está a motivação para proteção do instituto jurídico da propriedade. As razões econômicas da proteção estão no fato de que a propriedade consiste na forma normativa de reconhecimento da titularidade das pessoas físicas ou jurídicas sobre os bens materiais ou imateriais, possibilitando a existência de atividades econômicas necessárias para que haja produção e circulação, e existam reservas de valor.

Constata-se, portanto, nas manifestações jurídicas do modelo liberal, a proteção do ativo patrimonial dos indivíduos, nas hipóteses do interesse público exigir os bens privados por necessidade, impondo ao Estado o dever de indenizar os particulares, como por exemplo, se observa na quinta emenda à Constituição dos Estados Unidos da America205, ao determinar impedimentos a uma ação arbitrária pela utilização do poder no sentido de lesar os direitos fundamentais dos indivíduos, coloca na sua parte final, que "nor shall private property be taken for public use, without just compensation".206

Na Constituição Francesa de 1791, no artigo 3º do Título Primeiro concernente as “Disposições fundamentais garantidas pela Constituição”207 há determinação semelhante, desde que seja verificado por meio da lei que realmente existe a necessidade pública:

La Constitution garantit l'inviolabilité des propriétés, ou la juste et préalable indemnité de celles dont la nécessité publique, légalement constatée, exigerait le sacrifice.208

O enaltecimento do poder do proprietário é bem visível no Código Civil dos Franceses de 1804209, pela utilização do vocábulo absoluto, conforme se constata na

205 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Arquivo Nacional. Bill of Rights. Disponível em:

<http://www.archives.gov/exhibits/charters/bill_of_rights_transcript.html>. Acesso em: 18 set. 2010.

206 "nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa compensação".

(tradução livre)

207 FRANÇA. Conselho Constitucional. Constitution de 1791. Disponível em: <http://www.conseil-

constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la- france/constitution-de-1791.5082.html>. Acesso em: 18 set. 2010.

208 A Constituição garante a inviolabilidade das propriedades, ou a justa e prévia indenização daquelas

cuja necessidade pública, legalmente constatada, exija o sacrifício. (tradução livre)

209 FRANÇA. Assembleia Nacional Code civil des Français. Disponível em: <http://www.assemblee-

transcrição do artigo 544:

La propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements.210

No que concerne ao ponto de vista semântico e lógico, Caio Mário da Silva Pereira211 percebe contradições do no artigo 544 do Código Civil Francês de 1804. Primeiramente, por se colocar a expressão "mais absoluto", pois absoluto não comporta superlativo, ou seja, ou uma coisa é absoluta ou não é, portanto, colocando essa expressão, está se relativizando o conceito de absoluto, isto é, se está atribuindo um valor relativo, que é destinado a coisas que, para serem avaliadas, dependem de outras com a finalidade de efetuar comparação. Além disso, ao colocar a condição "desde que delas não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos", desfaz o sentido absoluto, pois este não comporta limitação.

Entretanto, conforme explica San Tiago Dantas212, não obstante a expressão "la

manière la plus absolue" seja considerada pleonástica, foi utilizada para conferir maior vigor ao que está sendo manifestado, em oposição à uma organização feudal da propriedade na qual "a liberdade de dispor estava comprometida pelos vínculos pessoais", sendo que, "pourvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les

règlements", consiste numa "reserva clássica, introduzida por Bártolo, e incorporada ao direito de propriedade para sempre".

A ênfase do poder absoluto do direito de propriedade e sua característica de exclusão repercutiram no pensamento liberal do início do século XIX, sob a forma de uma “teorização do sufrágio restrito”, conforme observa Jorge Reis Novais213, consistindo na idéia de não conceder direitos políticos aqueles que não tivessem propriedade ou uma

210 A propriedade é o direito de desfrutar e de dispor das coisas do modo mais absoluto, contato que

delas não se faça um uso proibido pelas leis ou regulamentos. (tradução livre)

211 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 21. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:

Forense, v. 4, 2008, p. 90.

212 DANTAS, Francisco Clementino San Tiago. Programa de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro:

Editora Rio, 1981, p. 93-110.

213 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito

determinada capacidade econômica. Dessa forma, Henri Benjamin Constant de Rebecque214 (1767-1830), autor das obras Principes de politique applicables à tous les

gouvernements représentatifs et particulièrement à la Constitution actuelle de la France

(Princípios de política aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à Constituição atual da França), de 1815, e Cours de politique constitutionnelle (Curso de política constitucional), com primeira edição publicada nos anos de 1818 a 1820, foi defensor da idéia de que “só a propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos”. Nesse sentido, acrescenta José Carlos Vieira de Andrade215 que no pensamento liberal, o instituto jurídico da propriedade transcende essência conceitual de um direito fundamental, expressando-se numa "garantia de liberdade - constituindo e distribuindo o poder de escolha (de compra) - e simultaneamente, de felicidade”.