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O processo de acumulação, que é fundamento para o início do processo formação sistema capitalista, havia começado no segundo período medieval, com o ressurgimento do comércio e da economia monetária, continuando nos meados do século XV, com a consolidação da possibilidade jurídico-econômica de mercantilização das propriedades imóveis.

Após a Guerra das Duas Rosas (1455-1485), com o estabelecimento da monarquia absoluta dos Tudor, a nobreza se conscientiza, segundo explica António José Avelãs Nunes151, de que "a riqueza era fonte do prestígio e do poder", quando se inicia o movimento dos enclosures, cercamentos de terras comuns nas áreas rurais, e sua apropriação pelos grandes proprietários de terras. A possibilidade de obter rendas com a venda de lã para fabricação de tecidos gerou a motivação para realizar os cercamentos, sendo fundamentada, segundo afirma Jean-Philippe Lévy152, pela alegação dos senhores de que os foros plebeus não eram hereditários e, portanto, quando ocorria a morte dos camponeses, era negada a renovação da concessão aos seus filhos.

Nesse sentido, lembra Karl Polanyi153 que a exclusão dos pequenos produtores rurais, devido ao cercamento de campos envolveu intimidação e violência “demolindo casas que até então, por forças dos antigos costumes, os pobres consideravam como suas e de seus herdeiros”. Acontecendo uma ação continuada na qual, além da não renovação dos foros plebeus aos filhos dos camponeses, os agricultores também eram compelidos a venderem a baixos preços seus direitos sobre as terras. Essa situação se revela nos diálogos dos personagens da obra "A Utopia" de Thomas More, publicada em 1516, numa forte crítica que recomenda providências para reverter o processo de cercamentos de campos, gerador de concentração da riqueza materializada por meio do exercício de práticas abusivas por aqueles que sendo detentores de alta capacidade econômica numa atitude individualista de quem demonstra nenhuma solidariedade, ocuparam-se

151 NUNES, António José Avelãs. Uma introdução a Economia Política. São Paulo: Quartier Latin,

2007, p. 108-109.

152 LÉVY, Jean-Philippe. História da propriedade. Lisboa: Editorial Estampa, 1973, p. 60.

153 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Tradução de Fanny

predominantemente em ampliar o seu poder, repercutindo no direito de propriedade e trazendo problemas sociais como consequências nocivas:

É assim que um ávaro impaciente e insaciável pode tornar-se uma praga para o seu próprio país, fechando com um só muro milhares de hectares de terreno, escorraçando os agricultores das suas casas, uns por meio de fraude, outros empregando a violência, obrigando-os, com perseguições e insultos, a vender as suas terras por uma ninharia. Em conclusão, por um meio ou por outro, pela força ou pela astúcia, são os desgraçados obrigados a partir, maridos e mulheres, órfãos e viúvas, mães chorosas com crianças de peito, afastando-se da sua terra e casa, sem em qualquer lugar encontrarem refúgio. São forçados a vender todos os haveres domésticos, cujo fraco valor ofereça mesmo assim possibilidades de venda. Esgotado este recurso, no decurso da sua vagabundagem forçada, que lhes resta senão roubar e serem em seguida enforcados, ou então a mendicidade nas cidades, e neste caso serem lançados nas prisões, acusados de vagabundagem, de não terem casa nem trabalho, o que não é de admirar, se ninguém Ihes dá trabalho, embora se empenhem em oferecer os seus serviços!

[...]

Arrancai do vosso país estas abominações perniciosas, fazei uma lei que obrigue os que destruíram sítios e vilas e provocaram a decadência da agricultura a reconstruir tudo o que destruíram, ou a ceder o terreno aos que as quiserem reconstruir por si próprios. Não autorizeis que os ricos comprem tudo aquilo a que podem deitar a mão, para com esses terrenos especularem e monopolizarem as transações.154

O cercamento de terras foi realizado, com variações, em diferentes países, conforme Karl Marx155, repercutindo, também, no processo de arrendamentos, segundo observa Leo Huberman156, constatando-se que, os senhores, no objetivo de obter uma produção agrícola melhor, frequentemente cercavam as propriedades, e dessa forma, "os infelizes arrendatários que tinham faixas de terra ambicionadas pelo senhor viam-se logo entre as fileiras das pessoas sem teto".

Além disso, observa-se, no século XVI, segundo informam Michael E. Tigar e Madeleine R. Levy157, a introdução no patrimônio da burguesia das terras pertencentes à

154 MORE, Thomas. Utopia. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 30. 155 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna,15. ed.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 831-850.

156 HUBERMAN, Leo. A história da riqueza do homem. Tradução de Waltensir Dutra. 19. ed. Rio

de Janeiro: Zahar, 1983, p. 116.

157 TIGAR, Michael E. e LEVY, Madeleine R., Direito e Ascensão do Capitalismo. Tradução de Ruy

nobreza, materializando-se pela compra ou aluguel perpétuo dos domínios direto e útil, ou somente do domínio direto, adquirindo, ocasionalmente, também, os títulos de nobreza, almejando reconhecimento social. Roland Mousnier158 informa que os burgueses e membros da nobreza efetuaram o arrendamento dos domínios ou constituíram meações, com desenvolvimento de atividades voltadas para o mercado.

Sobre o processo de modificação nos arrendamentos, explica António José Avelãs Nunes159, que "tinham-se descoberto novas técnicas de cultivo das terras que vieram favorecer a grande propriedade fundiária", substituindo-se o arrendamento enfitêutico, geralmente com prazo de noventa e nove anos, por arrendamentos de no máximo nove anos, viabilizando a elevação periódica das rendas e a exclusão dos pequenos produtores agrícolas independentes. Além disso, informa Leo Huberman160 que, quando o chefe da família falecia, normalmente era paga uma pequena taxa de transmissão, permitindo ao filho que ele continuasse com o arrendamento, porém, isso foi impossibilitado pelo aumento das taxas, passando as terras a serem arrendadas por valores mais altos ou vendidas a outros.

Portanto, no transcorrer do século XVI, a sequência contínua de fatos jurídicos e econômicos, que apresentam certa unidade e regularidade, com reativação do comércio e da economia monetária, os cercamentos de campos e as aterações nos arrendamentos, revelam o processo de acumulação capitalista.