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UMA POÉTICA DE DIFÍCIL ENQUADRAMENTO

Manuel Bandeira, em Brief History of Brasilian Literature, publicada em Washington, em , assim se refere à poeta: Henriqueta Lisboa, hoje tida como um dos nossos mais fortes e perfeitos poetas 84; contudo não a inclui na sua Apresentação da Poesia Brasileira 85. Anos mais tarde, em carta endereçada à poeta, datada de

setembro de 1961, ele se diz inconsolável, que não se perdoa por tal falha, e diz ainda: pensar que citei de má vontade tanto nome celebrado, mas cuja poesia não me diz nada! 86. Esta declaração, aparentemente ingênua de Bandeira, suscita muitas questões

acerca da formação do cânone da literatura brasileira e, também, quanto à nossa historiografia crítica; o que nos leva a repensar os critérios estabelecidos definidores do cânone. Afinal, quem os define? A quem é dado tal poder? Como se dá o processo de

canonização de um artista, ou de uma obra?

Fato interessante no episódio com Bandeira é que o poeta escreve para Henriqueta no mesmo ano em que ele esteve com Blanca Lobo Filho, momento em que esta preparava tese de doutoramento sobre a lírica henriquetiana. Na verdade, Blanca Lobo Filho defende duas teses sobre a poesia de Henriqueta Lisboa. A primeira outorgou-lhe o título de Mestre em Artes, pela Universidade de Columbia, e a segunda, de Doutor em Filosofia, pela Universidade de Nova Iorque. Ambas as teses estão publicadas conjuntamente, sob o título A poesia de Henriqueta Lisboa, com tradução de Oscar Mendes 87. É neste texto que encontramos a seguinte declaração: A autora deste

estudo esteve com Manuel Bandeira no verão de 1961, em cuja ocasião preparava Bandeira uma lista renovada dos mais famosos poetas modernos do Brasil 88.

84 BANDEIRA apud LOBO FILHO, Blanca. A poesia de Henriqueta Lisboa, 1966, p. 37.

85 Obra originalmente publicada em 1946. Na edição de 2009 há referência à poeta de Flor da morte, porém sem indicação da frase supracitada, e com apenas um de seus poemas na antologia selecionada. Cf. BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira: seguida de uma antologia. Posfácio de Otto Maria Carpeaux. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 191 e 394.

86 Pasta Correspondência Pessoal do Titular (BANDEIRA, Manuel), 28 set. 1961, no AEM/UFMG. Essa carta encontra-se publicada em Presença de Henriqueta, edição de 1992, organizada por Abigail de Oliveira Carvalho, Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda.

87 Cf. LOBO FILHO, Blanca. Apresentação. A poesia de Henriqueta Lisboa, 1966. Após este estudo, Blanca Lobo Filho ainda empreende outra pesquisa importante, esta de cunho comparativo entre a poesia de Henriqueta Lisboa e Emily Dickinson (1830-1886), publicada em 1973. Cf. LOBO FILHO, Blanca. A poesia

de Emily Dickinson e de Henriqueta Lisboa. Tradução Oscar Mendes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,

1973.

Blanca Lobo Filho foi uma grande incentivadora da obra de Henriqueta Lisboa e muito contribuiu para que ela fosse conhecida além de nossas fronteiras. No acervo da escritora encontram-se mais de cem documentos enviados por Blanca, entre cartas, cartões e livros, provas concretas de uma relação de amizade que se construiu com muito trabalho e admiração mútua e, acima de tudo, em favor da obra poética de Henriqueta Lisboa, que é considerada pela ensaísta uma criadora de uma nova escola de poetizar 89.

No Brasil, a poesia de feição metafísica, ontológica, sempre causou certo desconforto na crítica, tendo em vista, como já apontamos, a predominância dos estudos de cunho sociológico na nossa historiografia; soma-se a isso a condição feminina da poeta em questão, que sofre, assim, um pré-julgamento sobre a sua produção. Conforme aponta Alceu Amoroso Lima (1893-1983) no seu Quadro Sintético da Literatura

Brasileira, [...] os grandes parnasianos e simbolistas foram homens. E os primeiros modernistas igualmente. O meio ainda não favorecia as vocações literárias femininas, que sempre houvera, mas por exceção 90. O crítico justifica dizendo que o caráter demolidor da primeira fase do Modernismo brasileiro não condizia com o espírito feminino, naturalmente construtivo, segundo sua concepção. Ele insere a poeta mineira

no chamado neomodernismo, na segunda geração, por volta de 1930, momento, então, considerado como propício para o surgimento crescente de figuras femininas.

Cabe salientar, que, em alguns estudos em torno da obra da escritora, o uso do prefixo neo parece ser uma tentativa de enquadramento, pois para uns ela é

neossimbolista, para outros neomodernista, ou antimodernista, usando uma expressão de

José Guilherme Merquior (1941-1991) quando este se refere ao modernismo espiritual partilhado pelo grupo da revista Festa 91. Henriqueta Lisboa, no entanto, manteve-se

sempre fiel a si mesma, dialogando intensamente com seus pares, porém seguindo seu próprio caminho. Quanto a um lugar para a poética henriquetiana, cremos que Blanca Lobo Filho foi quem melhor o definiu, nestes termos:

Tomou ela [Henriqueta Lisboa] o melhor de cada escola literária que, numa época ou noutra, a influenciou, combinando num estilo único os elementos do Simbolismo e Classicismo com os dos românticos e

89 Cf. Pasta Correspondência Pessoal, (LOBO FILHO, Blanca), carta de 30 set. 1984, no AEM/UFMG. 90 ALCEU AMOROSO LIMA, Quadro sintético da literatura brasileira, Rio de Janeiro: AGIR, 1959, p. 152. 91 Cf. MERQUIOR, José Guilherme. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p. 94.

parnasianos. Nesta síntese, transcendeu qualquer escola e tornou-se um poeta moderno que cabe ao mesmo tempo em todas as categorias e em nenhuma delas. 92

Carmelo Virgillo, ao entrevistar Henriqueta, naquele que talvez tenha sido o seu último encontro com a poeta, em julho de 1984, pergunta-lhe sobre se estaria certo em classificá-la como pós-modernista 93, ao que ela responde, corroborando a tese de

Blanca Lobo Filho:

Suponho que seja correta a minha classificação dentro do pós-modernismo, se considerarmos que o mesmo não constitui uma escola, porém sim um campo de liberação para a criatividade. Sem embargo das sugestões naturais do tempo, lugar e circunstâncias, não me ative a nomes que não fossem os da minha convicção. Fui tomando experiência, cada dia, através de enganos e acertos, até o encontro de um estilo pessoal. 94

Considerando-se que este encontro de um estilo pessoal é o mais alto princípio do Modernismo marioandradiano, cremos que já podemos pensar em qual moldura , caso fosse possível, Henriqueta Lisboa melhor se ajustaria.