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Uma bricolagem toda azul de João Guimarães Rosa

2.4 QUARTO GRUPO: ESSENCIAL

2.4.2 Uma bricolagem toda azul de João Guimarães Rosa

Em fevereiro de 1958, o amigo João Guimarães Rosa (1908-1967) escreve para Henriqueta Lisboa para agradecer o envio do livro Azul profundo, fruto da pequena tiragem que a poeta reservou para poucos, da edição de 1956. Na curiosa carta 337,

enviada do Rio de Janeiro, em que o autor de Magma (1936) manuscreve, talvez intencionalmente, em tinta azul , e também datilografa, encontramos uma verdadeira bricolagem poética . Desde o enunciado, que antecede os versos da Sua poesia , o autor como que sela um pacto por meio da linguagem poética: um código se estabelece, e podemos pensar igualmente, aqui, na inserção do código cromático , e o que Rosa envia para a poeta, na verdade, é um espelho onde o Azul profundo se reflete.

Bem nos moldes preconizados por Antoine Compagnon, e a expressão bricolagem é sua ao teorizar sobre o trabalho da citação 338, o que o escritor mineiro

335 SOUZA, 2010, p. 162 (carta de 31 jul. 1941).

336 LISBOA, Henriqueta. Ariel . Azul profundo, 1969, p. 28.

337 Cf. Pasta Produção Intelectual de Terceiros, Série Memorabilia e Homenagens, no AEM/UFMG. Ver no anexo I cópia da carta original.

338 Cf. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 12.

faz é uma prática do papel , é uma brincadeira, um jogo de recorta-e-cola, uma ablação divertida. Ao exercer puramente o prazer de reescrever o que o outro escreveu, ele cria outro texto, no caso, re-cria , devolve para a Autora uma leitura sintetizada em dezoito versos, extraídos de onze poemas do livro Azul profundo.

Vejamos a recriação rosiana, observando que o emprego das aspas já denuncia uma re-enunciação ou uma renúncia a um direito de autor 339, conforme argumenta

Compagnon:

SUA POESIA:

Vejo a estrela — tão de súbito! — ao meu lado. Alma , a gota de orvalho. Haste delgada que o vento

joga para a imensidade, dade do entardecer. São porcelanas contornando um gato, pelos ares, que elfo

com a ponta dos pés afaga. Tudo é singular a seus olhos (reminiscências de outra luz), tanto a escuridão como a estrela. Tombam no abismo os fatigados búzios,

e o repique de ouro dos sinos no azul profundo

se inscreve.

Em pleno cristal reside o tesouro . 340

Diferentemente de uma cordial carta de agradecimento pelo envio do livro, Guimarães Rosa agradece antes de tudo o prazer proporcionado pela leitura de seus poemas. Alterando muito pouco, apenas a pontuação em alguns versos, e fazendo uma inversão sintática, o escritor elabora um novo poema a partir da leitura de Azul

profundo. Numa reescrita perfeita, em termos de arranjo poético, o autor da

bricolagem devolve à amiga suas próprias imagens, porém com uma nova roupagem, em novo ritmo.

Analisemos um exemplo desse exercício rosiano: no lugar de É um gato/ contornando porcelanas 341, ele escreve São porcelanas/ contornando um gato , numa

339 COMPAGNON, 2007, p. 52.

340 Pasta Produção Intelectual de Terceiros, Série Memorabilia e Homenagens, no AEM/UFMG. 341 Cf. LISBOA, Henriqueta. Do hipócrita . Azul profundo, 1969, p. 41.

fantástica inversão da imagem, procedimento típico do modo de criar do autor de

Sagarana, cujo efeito buscado aproxima-se do especular, conforme já realçamos. A carta-

poema, tal como foi construída, evidencia não somente o carinho de Guimarães Rosa em relação à amiga mineira, ludicamente demonstrado, como sua genialidade de poeta.

Atentemos à fonte geradora da bricolagem rosiana, em que nomeamos, abaixo, cada um dos onze poemas de Azul profundo 342:

Natal - p. 90

Vejo a estrela — tão de súbito ! — ao meu lado.

A gota de orvalho - p. 97

Alma, a gota de orvalho

Bailado - p. 21

Haste delgada que o vento joga para a imensidade,

Serena - p. 63 dade do entardecer, Do hipócrita - p. 41 [...] É um gato/ contornando porcelanas. [...] Do louco - p. 43

Pelos ares, que elfo

Bailado - p. 22

com a ponta dos pés afaga;

Estudo - p. 65

Tudo é singular a seus olhos

Companhia - p. 73

reminiscências de outra luz

Estudo - p. 65

tanto a escuridão como a estrela.

Do surdo - p. 39

Tombam no abismo os fatigados/ búzios.

A menina santa - p. 93

e o repique de ouro dos sinos,

Estudo - p. 67

[...] no azul profundo se inscreve, [...]

O tesouro - p. 87

Em pleno cristal reside o tesouro.

2. . Casa de Pedra : arquitetura da memória

Na terceira parte do livro, deparamo-nos com o longo poema Casa de Pedra , em que encontramos indícios da atmosfera que reinava na ampla casa onde nasceu a poeta, na Rua dos Italianos, em Lambari. Nesse poema, como bem percebe o crítico Antônio Sérgio Bueno 343, as estrofes podem ser agrupadas em três tempos distintos: infância,

adolescência e maturidade, e acompanham, no conjunto das imagens, um percurso supostamente vivenciado pela Autora. Tal percurso encontra-se bem tramado em 36 tercetos, e finalizado com um verso deslocado — monóstico —, harmonizando-se com os três tempos observados por Bueno. Atentemos, quanto ao estrato gráfico da composição, para a posição que a mesma ocupa; ela está inserida, originalmente, na terceira parte do livro, configurando uma estrutura arquitetada cabalisticamente. E, Henriqueta, como fiel leitora de Dante — terza rima —, em Casa de Pedra reconstrói a memória em tercetos, num ritmo constante, como convém a toda longa travessia:

Entre a voz alta da mulher e o pertinaz silêncio do homem, Casa de Pedra, eras completa. Recebias do céu o orvalho, sobre a fronte e, da terra cálida, tinhas o musgo pelos joelhos. À luz da lamparina frouxa cada ano teu berço de vime embalava um novo rebento Adivinhando-o sem senti-lo — fio de seda no casulo, Pérola nascente na concha. [...] 344

343 Cf. BUENO, Antônio Sérgio. Casa de Pedra: a edificação de uma escrita. In: BERNIS, Yeda Prates (Org.) Henriqueta Lisboa: Rosa plena. Edição especial do Suplemento Literário Minas Gerais, 21 jul. 1984, p. 9. 344 LISBOA, Henriqueta. Casa de pedra . Azul profundo, 1969, p. 79.

A casa de pedra é personificada, e o sujeito lírico dirige-se a essa entidade para descrever um trajeto, narrar impressões, liricamente, rememorá-las, ao mesmo tempo em que também a descreve, desenhando seu corpo , num movimento urobórico. Esse movimento é concêntrico e evidencia um procedimento retórico muito recorrente na poética henriquetiana, que é a autorreferência, o estado de concha :

[...]

E eram risadas e eram prantos assaltando teus corredores, alvoroçando-te as janelas abertas para o mundo vário onde pervagavam libélulas ao menor aceno da brisa,

enquanto junto à relva os caules sustinham as corolas presas contra as veleidades do voo. Pelas tempestades, que estranho medo impregnado de prazer se apoderava dessas crianças de olhos atentos ao fulgor dos raios, de espírito alerta à fascinação da desordem. [...] 345

A casa de pedra , que acolheu mais de uma geração dos Lisboa, ainda pode ser contemplada numa gravura da artista mineira Conceição Piló (1927-2011) que ilustra a capa da coletânea Casa de pedra, de 1979, obra comemorativa ao jubileu da poesia de Henriqueta Lisboa 346. Contemplá-la, hoje, é contemplar a representação da casa

onírica da poeta, a casa dos sonhos de que nos fala Gaston Bachelard no seu ensaio sobre as imagens da intimidade:

O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos. Então ela

345 LISBOA, Henriqueta. Casa de pedra . Azul profundo, 1969, p. 79-80. 346 Ver anexo J.

é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa onírica. 347