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2.1 PRIMEIRO GRUPO: ESPONTÂNEO

2.1.2 Sob o Velário

Em Velário (1936), Henriqueta destaca a inserção de novos motivos em concentração mística, realçando a influência da formação espiritual cristã e do universo simbólico, assinalando as variações rítmicas de índole musical 61. Para a poeta mineira,

o ritmo e a musicalidade do poema derivam do estilo daquele que o expressa, é marca pessoal e intransferível: o ritmo é de ordem interior, individual, insubstituível. [...] Fonte de equidade premonitória, anunciadora e preservadora dos elementos da composição [...] 62.

Como na música, a Autora defende que a musicalidade do poema não se especifica apenas no ritmo, mas ainda na melodia, na harmonia e no timbre, este como

58 Cf. LISBOA, Henriqueta. Enternecimento. In:______. Obras completas I-Poesia Geral, 1985, p. 21-23.

59 No Suplemento Literário Minas Gerais n. 11, p. 12-13, mar. 1996, encontra-se um texto, sem autoria, em que está realçada essa particularidade do livro Enternecimento. Disponível em:

<http://www.letras.ufmg.br/websuplit/exbGer/exbSup.asp?Cod=00001103199612-00001103199613> Acesso em 11 jul. 2012.

60 Ver no anexo E a capa do livro Enternecimento. 61 Pasta Depoimentos (TP/HL), no AEM/UFMG.

o que de mais íntimo se encerra adentro da musicalidade, a resguardar-se de qualquer fluidez, surgindo apenas como ato de presença, atitude, convicção, persuasão 63.

Destacamos que Henriqueta Lisboa detém conhecimento técnico de música, provavelmente adquirido ainda nos bancos escolares do internato do Sion, tendo inclusive musicado alguns de seus poemas, conforme atestam as partituras que se encontram no acervo da escritora; dois poemas do livro O menino poeta (1943), Tempestade e Segredo , recebem o crédito de letra e música de Henriqueta Lisboa e arranjo de Carlos Eduardo Prates 64.

Em Velário, como o título já sinaliza, o vocábulo originário do latim, velarium, seria um toldo, pano estendido por cima do teatro para proteger o público da chuva ou do sol 65, o que nos remete, naturalmente, a um sentido de proteção, de cuidado, de

custódia. No Velário de Henriqueta, no entanto, o espetáculo se dá no âmbito do religioso, na câmara sagrada, no recôndito do que lhe é mais precioso, mais íntimo.

Nesta obra, Henriqueta manifesta explicitamente a sua religiosidade, a qual se revelará uma força criadora, propulsora, espécie de usina de imagens, derivando um grande poder de simbolização . Este já apontado pelo ensaísta Oswaldino Marques em carta endereçada à Mestra Henriqueta Lisboa , momento em que, numa leitura crítica d

O menino poeta , ele o realça, nestes termos: E um prodígio a transvisualidade, a

cristalucente glória de Frio e sol . Mas não é só a irisação, o jaspeamento da sensorialidade que me fascinou. Os seus poderes de simbolização! 66.

É importante reportarmo-nos à imagem que ilustra a capa original de Velário 67:

ela traz um anjo em traços lânguidos, cujas mãos ostentam uma espécie de véu; com as asas em repouso, o movimento sugerido é o de um deslizamento suave, mais que um voo propriamente, sobrepondo-se a um indefinido plenilúnio, encimando pequenas ondas.

A leitura dessa imagem reforça o que já referimos quanto ao sentido evocado pelo étimo de Velário, ou seja, algo que cuida, guarda, protege, agora mais explicitamente na ordem do sagrado, no campo do simbolismo teofânico; lugar natural do simbolizante

63 LISBOA, Henriqueta. Poesia: minha profissão de fé. In:______. Vivência poética, 1979, p. 14. 64Cf. Produção Intelectual do Titular, Pasta Partituras , no AEM/UFMG.

65Cf. Verbete: Velário . Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 3.0, 2009. 66 Pasta Correspondência Pessoal, (MARQUES, Oswaldino) AEM/UFMG [grifo nosso]. 67 Trabalho de arte de Adelli. Ver anexo F.

anjo , cujo simbolizado de estrutura bastante complexa 68 é recorrente no imaginário

da poeta.

Sob o velário henriquetiano, encontramos, entre outros poemas que têm o predomínio de um léxico litúrgico, dentro do universo simbólico-cristão, a tétrade composta pelos seguintes poemas-oração: A humilde oração , Oração do deserto , Oração do momento feliz e Oração suprema 69. Manuel Bandeira, em 1938,

referindo-se a Oração do momento feliz , surpreende-nos ao percebê-la como um belo grito lírico 70, imagem de efeito semântico tão díspar daquela lírica sussurrada,

segredada de Henriqueta Lisboa, ainda que intensa.

Em Oração suprema , a circularidade autorreferente remete-nos à simbologia do círculo perfeito, ao mito da uroboros, que, assim como o símbolo do anjo — este, símbolo de verticalidade cósmica 71 —, também está presente de forma acentuada no

manancial do imaginário da poeta:

Creio em Ti

porque minha alma exige a tua existência. Deus.

Porque os meus sentidos adivinham a tua presença na música, no perfume, na claridade, na água e no fogo. Creio em Ti

porque tenho necessidade da tua perfeição e dos teus infinitos.

Porque ouço o teu passo marchando no fundo das noites e dos mares, vejo o sinal de teus dedos na filigrana dos lírios e das espumas, sinto a tua respiração tranquila na aragem das madrugadas de Junho. [...] 72

Ainda sobre os poemas-oração de Henriqueta Lisboa, lembramos que Jamil Almansur Haddad (1914-1988), na sua seleção das Obras-primas da poesia religiosa

68 Valemo-nos aqui da terminologia empregada por Marc Girard, na obra Os símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal, especialmente no capítulo dedicado ao símbolo do anjo: Um caso mais complexo – o anjo . Cf. GIRARD, Marc. Os símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. Tradução Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997, p. 737-782.

69 Cf. LISBOA, Henriqueta. Velário, 1936, p. 117-125.

70 BANDEIRA, Manuel. Crônicas inéditas II, 1930-1944. Organização, posfácio e notas: Júlio Castañon Guimarães, São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 178-179.

71 GIRARD, 1997, p. 763.

brasileira 73, inclui A humilde oração e Oração suprema entre as mais representativas

da nossa poesia de cunho religioso.

Outro poema do livro Velário que encerra características de concentração mística, exemplar de uma ascese poeticamente trabalhada, tem por título Valor . Neste, evidencia-se um movimento que descreve como que estados de uma iniciação espiritual, que se encaminha para um aprofundamento cada vez maior, marcado por um ritmo anafórico, a cada repetição do enfático verbo querer , tal um credo professado, deliberadamente:

Eu quero a vida mais cálida, mais incisiva, mais densa, para um esforço maior. Quero a realidade lúcida de provações e misérias para então me engrandecer. Quero o veneno das áspides, a vertigem dos abismos, para me purificar.

Quero um tumulto de máscaras nos labirintos da treva,

para ver claro o meu ser. Quero as tempestades lívidas em que me perca no oceano, para mais longe me achar. Quero nas plagas anônimas deixar marca de meus joelhos, para subir ao Tabor.

Quero acender minha lâmpada nas profundezas da terra, para os céus iluminar. 74

Na última estrofe do poema Valor , supracitado, podemos ver poetizada a primeira lei enunciada na Tábua de Esmeralda, texto fundador atribuído ao mítico Hermes Trismegisto, que diz:

73 Cf. HADDAD, Almansur Jamil. Prefácio, seleção e notas. Obras-primas da poesia religiosa brasileira. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1955, p. 333-337.

É verdade, sem qualquer mentira e muito verídica.

Que o que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo, para que se realize o milagre de uma única coisa. 75

Ao comentar sobre Velário, em carta dirigida a Mário de Andrade, em 1943, Henriqueta confessa-lhe que o livro reflete certa depressão de espírito 76 e tinha

sempre receio de ouvir falar 77 nele. Alusivamente, na mesma carta, Henriqueta evoca

um polêmico artigo de Álvaro Lins (1912-1970), cujo teor era uma crítica que ele fizera a seu livro Prisioneira da noite (1941). Lins teria insinuado que a Autora estaria sugestionada pela obra de Augusto Frederico Schmidt, tanto em relação à escolha dos temas — a noite, o mar, a morte —, quanto ao próprio estilo de compor 78. O que nos

interessa, no entanto, aqui, é a resposta que Henriqueta concede ao crítico. Esta, em forma de poema — como lhe era peculiar fazê-lo —, vem explicar seu pensamento, segundo expressão da própria Autora. Reportando-se ao poema Cantarei a noite e o mar , em que busca manusear os valores eternos 79, fundir, por um sentimento de

presença com simplicidade a pureza, o perene e o transitório 80, Henriqueta acrescenta

que ele contém uma observação a certo crítico 81que a impugnou o tratar de temas de

determinado poeta 82, numa clara indicação ao episódio mencionado.

Em Cantarei a noite e o mar , do livro A face lívida (1945), Henriqueta reafirma a universalidade como característica da sua temática e responde ao crítico Álvaro Lins evidenciando que determinados temas não são exclusivos de um poeta. E a Noite, assim como o Mar, são revelações de um Deus Único, porém Numeroso nas suas manifestações. Estruturalmente, num conjunto de seis estrofes heterogêneas, entre tercetos, quartetos e dísticos, a ênfase recai sobre o vocativo Ó , mais uma vez acentuando um forte ritmo anafórico, a partir do primeiro verso de cada estrofe:

75 Cf. BONARDEL, Françoise. Filosofar pelo fogo: antologia de textos alquímicos. Tradução de Idalina Lopes. São Paulo: Madras, 2012, p. 66.

76 SOUZA, 2010, p. 251 (carta de 30 mar. 1943). 77 Id., ibid.

78O artigo Problemas e Figuras na Poesia Moderna é publicado no Correio da Manhã, em 1941. Ver nota relacionada à carta de Mário de Andrade datada de 5 dez. 1943, em SOUZA, 2010, p. 271.

79 SOUZA, 2010, p. 250 (carta de 30 mar. 1943). 80 Id., ibid., p. 251.

81 Id., ibid. 82 Id., ibid.

Ó Noite de altas estrelas que por milênios fulguram como no instante da gênesis! Ó Mar que ninguém viajou de ondas que semelham corças ariscas, antes do amor!

Ó Noite, ó Mar, ó Virgindade, ó pureza das mãos de Deus! Ó Noite de cada ser

que a todos tens pertencido com tua vastidão de trevas e teu hálito de flor!

Ó Mar que todo navegante encontra nos seus mergulhos, e que surge das espumas amargas de cada boca. Ó Noite, ó Mar, revelação de Deus Único e Numeroso! 83