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Fábio Lucas, em ensaio já referido, afirma:

O universo simbólico de Henriqueta Lisboa é circular. Os magnos problemas voltam sempre. Rosa e amor, azul e morte constituem por assim dizer as fontes imagéticas do seu canto 111.

Tal assertiva corrobora o que postulamos ao ver, em Pousada do ser, a síntese representativa de todo o seu percurso estético-existencial. Com essa obra, Henriqueta finaliza sua trajetória poética, completa o círculo urobórico. Dispôs, na sua segunda parte, o grande poema Celebração dos elementos, que, conforme vimos com Antônio Sérgio Bueno, aproxima-se de um espetáculo sinfônico. Podemos pensar que Henriqueta encerra a sua longa caminhada pelo reino da poesia ao som de um único acorde, emitido pela alquímica sondagem que ela empreendeu, unindo todos os quatro elementos, interligando-os. Encontra-se no seu acervo, em manuscrito, um esboço de um estudo que sintetiza bem o que representa a sua busca: ela está simbolizada no desenho de um triângulo, em cujos ângulos está disposta uma palavra que designa um determinado domínio, a saber: Indivíduo e Natureza na base, com a Humanidade no ápice da figura 112. Uma nova linha sob a base do triângulo reforça a união do Indivíduo com a

Natureza, e a seguinte pergunta elucida a geométrica exposição:

Que deseja o poeta senão o reatamento dos laços perdidos entre o indivíduo, a humanidade e a Natureza — esse triângulo que seria perfeito nos trasladados da poesia? 113

Sublinhamos que, primeiramente, a Autora estruturou Pousada do ser em três partes, a saber: a primeira englobaria poemas, sem subtítulo; a segunda seria O dia azul , iniciando com o poema homônimo e totalizando poemas; e a terceira seria Celebração dos elementos 114. Também é curioso o fato de que o título originalmente

seria Morada do ser , porém, em carta, o amigo Fábio Lucas avisa que já haviam

111 LUCAS, Fábio. O alvo humano. Minas Gerais, Suplemento Literário. 23 nov. 1974. v. 9, n. 430, p. 2. Disponível em: <www.letras.ufmg.br/websuplit/Lib/html/WebSuplt.htm> . Acesso em 10 jun. 2013. 112 Ver no anexo Q o referido desenho.

113 Pasta Esboços e Notas, no AEM/UFMG.

publicado obra homônima. Na folha de um caderno, em manuscrito, podemos ler o seguinte excerto da cópia da carta enviada pela Autora, em 16 de janeiro de 1979:

Fábio, foi bom você me escrever sobre a questão do título: Morada do Ser. Aparecem dezenas de livros todos os dias e eu talvez não notasse a coincidência. Embora lamente perder a 1ª opção, escolherei um outro nome para o meu inédito. Obrigada pelo alerta. 115

Após a desistência, Henriqueta ainda cogita uma Porfia do ser . 116 Porfia é um

dos poemas da obra, e carrega certo grau de dramaticidade, convergindo para um núcleo tenso de urgência, como magma quente em ponto de erupção. Nesse poema, mais uma vez, o ideal maçônico se inscreve, e podemos ver, nitidamente, a representação, em versos, do triângulo desenhado no manuscrito já citado. Aqui, o bloco é a pedra do Templo, e a restauração almejada se faz pelo poder da palavra, com persistência:

Pela restauração do bloco — abrupto nas orlas do penhasco —

desde o alicerce à cúpula cada ladrilho certo no mosaico até que em peso se unifique o mundo

Pelo reatamento dos laços

— rompidos entre espinhos e espólios com violação de parte a parte

em pilhagens e terremotos — até que se reúnam de vez a humanidade e a natureza [...] 117

A obstinação — porfia — está em cada palavra, reiterada, anaforicamente, na entrada de cada nova estrofe pela contração pelo a , intercalando-se, ora pelo , ora

pela , num ritmado juramento:

Pela procura das espécies — ora atoladas em taludes ao vezo dos iconoclastas — até que transpareça puro

115 Pasta Correspondência Pessoal (cópia enviada para Fábio Lucas), no AEM/UFMG.

116 Cf. Pasta Recortes. Henriqueta, bodas de ouro com a poesia. Fernando Magaldi. Folha de São Paulo. 26 dez. 1979, no AEM/UFMG.

em essência e reflexos o cristal da palavra

Pelo reencontro do sangue — desencadeado e já sem fibras em corpos que se dilaceram nos desvios da insânia até que afinal se entendam de coração adentro

os homens

Pela volta da lágrima ao recesso das pálpebras. 118

A perfeição sempre foi a meta que Henriqueta Lisboa buscou alcançar durante todo o seu percurso poético, e, mesmo antes de representá-la como o Alvo humano , no livro Além da imagem, ela já revelava a sua Opção :

Não pela torre de Babel com zoeira de passaredo. Não pela colina agreste

com sombra a ensombrar os vales. Não por deleite ou delíquio

de lua longe em desgarre. Pelo diadema completo: pela rosa e pelo orvalho. De coração ledo e pronto por esse reino carrego peso de pedra nos ombros. 119

No poema Opção , estão representados os grandes símbolos da Grande Obra, podemos dizer que nele está disposta, em versos, a síntese alquímica, na tríade dos significantes: rosa, orvalho e pedra, sem esquecer que o triângulo é símbolo maçônico, e um dos mais poderosos símbolos da chamada Ciência Sagrada. São três as colunas que sustentam o Templo: a Sabedoria, a Força e a Beleza. 120

É de Pousada do ser o poema Rosa plena , que, conforme relata Pe. Lauro Palú no prefácio do livro, foi concebido a partir da contemplação de uma rosa que Henriqueta ganhou no Natal de 1978. Na pasta onde se encontram os originais do livro, a data

118LISBOA, Henriqueta. Porfia . Pousada do ser, 1982, p. 57-58.

119Id. Opção . Além da imagem. In:______. Obras completas I-Poesia geral, p. 328.

120 Cf. STAVISH, Mark. As origens ocultas da Maçonaria. Tradução Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Pensamento, 2011, p. 82.

confirma: 25 de dezembro de 1978 121. A efeméride é significativa, porque remete a uma

constelação de imagens que está atrelada ao significante rosa e que é dominante no imaginário do extremo Ocidente, conforme expressão de Gilbert Durand. A imagem da rosa, passando por Dante, quando personalizada em Beatriz, ascenderá na imagem luminosa de Maria, e é na abertura do canto XXX do Paraíso, da Divina comédia, que iremos encontrar a seguinte descrição:

E achou-se diante de um rio de luz, que logo assumiu forma circular, como a de uma imensa rosa, em cujas pétalas, bem como na aura luminosa sobre elas suspensa, se demonstravam os ocupantes do Paraíso, as almas beatificadas e os Anjos, respectivamente. 122

Atentemos aos versos de Rosa plena :

Rosa plena. Em glória de cor

de forma de febre

de garbo.

Em auréola sobre si mesma — estática.

Em arroubo diante da luz — dinâmica.

Enrodilhada em aconchego de concha buscando o núcleo.

Fugindo-lhe ao cerco

— asas aflantes flamejantes. Rosa plena.

Turíbulo. Ostensório. Convite à valsa dos ventos. Tributo ao círculo — perfeição de chegar e partir.

Cada pétala é um sonho de retorno. E as pétalas se avolumam compactas E esmaecidas logo se despejam ao longo e ao largo

— no fascínio do pretérito pelo devir.

Sangue em oblata

no altar maior. Amor e morte

pela revelação.

121 Cf. Pasta Produção Intelectual do Titular (originais de Pousada do ser), no AEM/UFMG.

122 ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. v. 2. Tradução Cristiano Martins. 2ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979, p. 531.

Rosa plena. Poesia que se fez Carne 123

Pe. Lauro Palú, no estudo já citado, que intitulou Ser e Celebração , vê no poema Rosa plena uma chave para a leitura de todos os outros. A maravilha do livro 124,

segundo Palú, busca o núcleo, cada poema vão ser as palavras que criam e defendem seu núcleo 125. Tal observação é reforçada quando sabemos que Rosa plena foi um dos

títulos pensados pela Autora para a sua última obra, depois de Morada do ser , e também para ser o título de todo o conjunto da sua obra poética, hoje Poesia Geral . Nos esboços em que preparou a relação dos seus poemas para a edição das suas Obras

completas, está a indicação clara dessa sua intenção. 126 Rosa plena , portanto, é

emblemático por tudo que representa — semântica e simbolicamente, dentro da estrutura da obra como um todo.

Na súmula de Pousada do ser, a Autora escreve:

O livro recentemente publicado – Pousada do ser – se insere no 5º Grupo (ontológico), ao prosseguir na busca de explicações para os fenômenos existenciais, principalmente os do tempo presente, em que o homem se distancia de si mesmo pela inversão dos valores estabelecidos. O poeta se recusa a aceitar as aparências que se impõem como verdades ao mundo de hoje, o qual se torna conflitivo em toda a sua extensão. Há certa dramaticidade na verificação desses conflitos a que não acodem perspectivas mais lúcidas. Pertencem ao livro os poemas de Celebração dos elementos , em que há procura de equilíbrio entre espírito e matéria, intuídas as afinidades do ser humano com o mundo que habita. 127

Reiteramos que Pousada do ser é a síntese do percurso estético-existencial henriquetiano, é a chegada e a partida, o alfa e o ômega, o ciclo que se completa uroboricamente e que tem a Rosa plena como insígnia da sagração da poesia.

123LISBOA, Henriqueta. Rosa plena . Pousada do ser, 1982, p. 23-24. 124 PALÚ, Pe. Lauro. Ser e Celebração, ibid., p. 12.

125 Id., ibid., p. 14.

126 Cf. Pasta Esboços e notas (Planos e roteiros), Série Produção Intelectual do Titular, no AEM/UFMG. 127 Pasta Depoimentos (TP/HL), no AEM/UFMG.

A FORMAÇÃO DE UM MITO PESSOAL

A cruz está fortemente enlaçada de rosas, Quem, pois, terá unido as rosas com a cruz?

Goethe, Die Geheimnisse [Os segredos]

Consta do Inventário do Acervo Henriqueta Lisboa, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, mais precisamente na pasta intitulada Fotografias individuais , uma fotografia que tudo indica ser a mais antiga da poeta Henriqueta Lisboa. No verso, junto ao ano de 1908 e as iniciais H.L.V.L., em traço distinto, há um nome: Henriqueta Lourdes Vilhena Lisboa, acompanhadas da seguinte observação:

Coroação de Nossa Senhora 1

Celebrado sempre no mês de maio, o tradicional ritual da Coroação de Nossa Senhora é um momento de puro encantamento para as crianças que dele participam; principalmente para as meninas, pela exaltação da maternidade física e espiritual da Virgem Maria, símbolo do princípio feminino sacralizado.

Na antiga fotografia, aos três anos de idade, a pequena vestida de anjo 2, e com

uma coroa de flores sobre os cabelos cacheados, não esconde um claro espanto, denunciando no olhar toda a fragilidade daquela que escreveria mais tarde:

A menininha ríspida

nunca disse a ninguém que tinha medo,

porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,

Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida — batendo, batendo assombrado! 3

Entre as mãozinhas, contrastando com a cor suave do vestido do anjo, podemos ver o desejado cartucho de amêndoas, o mimo oferecido às crianças ao finalizar o ritual. Um detalhe que só se percebe após a leitura do poema Coroação , cujos versos analisamos na sequência.

Walter Benjamin, quando escreve o ensaio sobre a Pequena história da fotografia , refere-se a um inconsciente ótico que só a fotografia consegue revelar.

1Pasta Fotografias individuais , no AEM/UFMG. Ver anexo M.

2 Descrição segundo a própria Henriqueta Lisboa em texto endereçado à Editora Ática, que se encontra na pasta intitulada Dados biobibliográficos , no AEM/UFMG.

Esta, segundo Benjamin, fornece um meio de acesso ao inconsciente ótico da mesma forma que a psicanálise o faz em relação ao inconsciente pulsional 4, o que torna o

documento fotográfico uma riquíssima fonte de informações, principalmente quando nos propomos a fazer uma leitura comparada , cruzando dados de diferentes textos, e em diferentes suportes.

Sobre os cartuchos de amêndoas , um dado interessante se encontra nos registros do diário de Helena Morley (1880-1970), transformado no livro Minha vida de

menina, em que ela relata as lembranças de uma infância também passada no interior

mineiro, entre os anos de e . A respeito dos ritos da procissão, conta-nos a escritora que as amêndoas eram dadas somente às pessoas mais importantes, incluindo os padres e os cantores. E os menos favorecidos recebiam cartuchos recheados de sugestivos manuscritos , como eram chamados os confeitos de cacau. A pequena Helena encerra a narrativa dizendo que os cartuchos de amêndoas valiam mais do que três dos outros e lembra a inveja que sentia dos que os ganhavam 5.

No poema Coroação , que compõe O menino poeta, à doçura das cobiçadas amêndoas acrescentam-se as súplicas mais sinceras, demonstrando pelo olhar da criança o que o adulto não vê, e que só a poesia consegue expressar:

Queremos a Maria flores oferecer A igreja regorgita de curiosas cabeças. (A igreja é um grande lírio que se acendeu na colina para espantar o frio.) Queremos a Maria flores oferecer [...]

Observemos nas estrofes acima a repetição do dístico inicial propositadamente sem pontuação —, e o primeiro verso dos tercetos seguintes. Ambas as estruturas, somadas à presença do coro, e também pela constituição fonêmica,

4 Cf. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 1993, p. 94.

5 Cf. MORLEY, Helena. Minha vida de menina. Ilustrações Lúcia Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 296.

acentuam um ritmo marcado por rimas assonantes, o que torna o poema bem próximo, melodicamente, de uma autêntica ladainha — característica do encerramento do ritual de uma Coroação :

[...]

Pela nave corre um frêmito: abram ala para as virgens! Os lábios da virgenzinha aquela que vem à frente trazendo salva e coroa, os lábios da virgenzinha parece que estão tremendo: Nossa Senhora permita que a coroa fique firme no alto de sua cabeça. Nossa Senhora permita

que eu ganhe o maior cartucho todo de amêndoas graúdas. Enche-se o templo de incenso. Nossa Senhora sorrindo pergunta a gente por que... 6

Sobre Coroação , a irmã mais velha de Henriqueta, Maria, escreve relatando suas reminiscências despertadas ao ler o poema num jornal local, em 1950. Refere-se também ao poeta Carlos Drummond de Andrade, que escrevera sobre o livro Flor da

morte, editado no ano anterior, em 1949:

Acabei de ler com entusiasmo o excelente e profundo artigo do Carlos Drummond sobre a Flor da morte; achei admirável a análise feita por ele. Também no Correio da Manhã reli com prazer a Coroação tão singela, tão verdadeira, tão viva... e senti saudades dos cartuchos de amêndoas gostosas e graúdas que desapareceram... e do tempo em que as três meninas coroavam N. Senhora, do receio que eu sentia da coroa cair... 7 A festa religiosa — as coroações de maio — ficará na memória da poeta mineira ao lado das montanhas azuis da pitoresca cidadezinha de Lambari e da irmandade numerosa , como as imagens mais queridas do ambiente da sua infância 8. Imagens e

6LISBOA, Henriqueta. Coroação . O menino poeta, 2008, p. 30-31.

7 Pasta Correspondência Pessoal (BACHA, Maria Lisboa), carta de 9 maio 1950, no AEM/UFMG. 8 Cf. Pasta Entrevistas, no AEM/UFMG, datada de 11 set. 1941, para Vamos ler!, Rio de Janeiro.

sentimentos que a escritora irá desenvolver ao longo de toda a sua trajetória, como temáticas centrais da sua obra, que são mais precisamente a religião — o sentimento do sagrado —, o amor à terra natal e a própria infância, conjugados num único e profundo sentimento, que é o da própria transcendência.

Extremamente religiosa, a poeta de Prisioneira da noite nasce e cresce sob a proteção da Igreja Católica, tendo a Bíblia Sagrada como livro de cabeceira 9, fato que

justifica o acentuado ritmo bíblico de muitas das suas composições 10. Influenciada

primeiramente pela mãe, esteio moral e espiritual da família Lisboa, e mais tarde pelas irmãs da Congregação Sionense, Henriqueta aprende muito mais que o domínio de uma língua estrangeira. Juntamente com a gramática francesa e o esmerado exercício da caligrafia, em meio à instrução religiosa, trava conhecimento com os clássicos portugueses e franceses, entre eles, François Coppée (1842-1908) e Sully Prudhomme (1839-1907) 11, ambos ligados a uma poética de cunho espiritualista cristão. É neste

ambiente, segundo suas próprias palavras, espiritual, grave e místico , que Henriqueta verá se acentuarem suas tendências para a meditação 12, resultando, entre outras, nas

reflexões que a fizeram responder em versos, anos mais tarde, qual é o alvo humano? 13