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Sobre a simbologia da cor azul

2.4 QUARTO GRUPO: ESSENCIAL

2.4.1 Sobre a simbologia da cor azul

Azul profundo é a cor da noite na poesia de Henriqueta Lisboa. No poema

homônimo, que se encontra na terceira parte do livro, mantendo o estilo declamatório-devocional, intensificado pelas efusivas exclamações e interjeições vocativas, encontramos, também sob a mesma inspiração mística, a noite, enaltecida em cor, ternura, perfume e mistério.

Em Azul profundo , há uma sobreposição temporal sugerida por uma espécie de entrecruzamento semântico, marcado pelos vocábulos: virginal , derradeira , eternidade e nostalgia , gerando um movimento, um ritmo — também semântico —, que é bem característico da lírica henriquetiana. Esse ritmo proporciona a captura do instante, da emoção fugidia, oferecendo-nos justamente um quando , num conjunto de imagens que não detém espaço, nem tempo definidos:

Azul profundo, ó bela noite inefável dos pensamentos de amor! Ó estrela perfeita

sobre o espesso horizonte! Ó ternura dos lagos

refletindo montanhas! Ó virginal odor

da primavera derradeira! Ó tesouro desconhecido por toda a eternidade! Ó luz da solidão, ó nostalgia, ó Deus! 308

Lívia Paulini, tradutora de Henriqueta Lisboa nas línguas húngara e inglesa, reconhece, em Azul profundo , a estrutura melódica de uma verdadeira ladainha, e, sobre a emoção evocada pelas suas imagens, ela observa: Esta ladainha, por ser ladainha na versão húngara, penetra fundo no coração. É uma proposição envolvendo a

simplicidade do Universo, que não corresponde à simplicidade de um mecanismo, mas à sinceridade de uma oração . 309

Num de seus ensaios sobre teoria da poesia, referindo-se à função da imagem poética dentro da composição, Henriqueta, didaticamente, exemplifica usando exatamente os vocábulos azul e profundo , o que vem corroborar o que por ora pretendemos expor em relação à simbologia da cor azul.

Observemos, também, que a Autora, mesmo no texto em prosa, é extremamente poética. Valendo-se de uma linguagem metafórica, ela não dissocia o lirismo da precisão conceitual:

Quando digo, por exemplo, — azul profundo, — tenho a impressão de que há dois valores imagísticos nesses dois adjetivos, o primeiro translúcido, o segundo misterioso. Observando atentamente, noto que ambos se fundem numa só imagem, meio misteriosa, meio translúcida. A imagem, destinada a transformar a impressão interior em expressão, deve ter vida palpitante na alma do artista, para chegar com vida à superfície daquele oceano. 310

Conforme já mencionamos, ao tratarmos d A face lívida em relação ao Livro azul de Mário de Andrade, a cor azul tem sua própria linguagem e, além de evocar serenidade, o azul, para Henriqueta Lisboa, também se associa a um possível estado de perfeição artística . Ao ser questionada, certa vez, quanto à presença de uma constante cromática em sua obra, a poeta de Azul profundo responde que sim, que o azul é nuança frequente. Indo além da uma mera impressão visual reconfortante , a escolha do azul revela o anseio de traduzir o intraduzível. E é a própria escritora quem esclarece, dizendo:

Parece-me que o azul é nuança frequente nas minhas páginas. Pelo menos comparece nos momentos de maior espiritualidade, tentando significar levitação, limpidez, clarividência, serenidade, harmonia, beleza, até mesmo perfeição artística. Em contrapartida, esse meu azul dos anelos é bem melancólico diante do inefável, infinito azul. 311

309 PAULINI, Lívia. Henriqueta Lisboa: Presença e luz. Ensaio trilíngue: português, inglês e húngaro. Belo Horizonte: Edição da autora, 2001, p. 13.

310 LISBOA, Henriqueta. Conteúdo e forma na poesia. In:______. Convívio poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955, p. 78.

311 Pasta Entrevistas, em texto datiloscrito, cuja pergunta está identificada apenas pelas iniciais V.V.G., [S.d.], no AEM/UFMG.

Para J. W. Goethe, na sua Doutrina das cores, a cor azul indica privação, sombra, fraqueza, escuro, frio, distância, e ao mesmo tempo, atração 312. Em termos de acústica, é

interessante observar que a cor azul como indicativo de algo escuro , aproxima-se do silêncio .

Na obra, já referida, o compositor canadense R. Murray Schafer diz que o silêncio — ausência de som — é negro. Ao valer-se da relação entre imagem visual e percepção auditiva para descrever a cor do silêncio , Schafer fornece-nos novos recursos interpretativos, e assim ele elucida:

Na ótica, o branco é a cor que contém todas as outras. Emprestamos daí o termo ruído branco , a presença de todas as frequências audíveis em um som complexo. Se filtrarmos o ruído branco, eliminando progressivamente as faixas maiores de frequências mais altas e/ou mais baixas, eventualmente vamos chegar ao som puro — o som sinoidal. Filtrando-o, também, teremos silêncio — total escuridão auditiva. 313 Desse modo, podemos pensar, analogicamente, que, quando Henriqueta Lisboa declara que fez da sombra e do silêncio 314 a sua morada, é a um estado anímico que se

aproxima da simbologia da cor azul que ela está se referindo, que, por sua vez, se identifica com o isomorfismo das imagens do Regime Noturno durandiano, imagens que revalorizam o estado onírico, o mundo dos sonhos fecundos, o lugar da germinação, do escondido.

Na obra Do espiritual na arte, Wassily Kandinsky (1866-1944), baseando-se em impressões psíquicas de caráter empírico, ao referir-se ao amarelo em contraste com o azul, observa que o primeiro se irradia e adota um movimento excêntrico, quando disposto num círculo, e o segundo, ao contrário, é animado de um movimento concêntrico que se pode comparar ao de um caracol que se retrai em sua casca . 315

Kandinsky diz ainda que o azul está para o preto como o amarelo está para o branco e que pode atingir uma profundidade que confina com o preto. 316

312 Cf. GOETHE, J. W. Doutrina das cores. Apresentação, seleção e tradução Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993, p. 123.

313 SCHAFER, 1991, p. 71.

314 Cf. LISBOA, Henriqueta. Poesia: minha profissão de fé. In:______. Vivência poética, 1979, p. 11.

315 KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte: e na pintura em particular. Tradução Álvaro Cabral; Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 83.

Gaston Bachelard, em seu estudo sobre a imaginação do movimento, O ar e os

sonhos, dedica um capítulo para analisar o céu azul . Valendo-se de expressões como função azulante , uma lembrança azulante , ou simplesmente um movimento azul , o filósofo enfatiza que é no domínio do ar azul que o devaneio ganha realmente profundidade 317, o que nos leva a pensar no hiperbólico azul henriquetiano, ainda

que, predominantemente, o imaginário da poeta gravite em torno da simbólica da noite, ou seja, de um céu noturno.

Ainda sobre a simbologia da cor azul, reportamo-nos a G. W. Friedrich Hegel (1770-1831), em Cursos de estética, quando ressalta, na Pintura, a relação simbólica do

azul e do vermelho :

[...] o azul corresponde ao que é mais suave, pleno de sentido, mais silencioso, ao olhar para dentro de algo com riqueza de sentimento, na medida em que possui o escuro como princípio, que não oferece resistência, ao passo que o claro é mais o resistente, o producente, o vivo, o sereno; o vermelho é o masculino, o dominante, o real [Königliche]. 318

E para exemplificar a diferença de tonalidade simbólica entre as duas cores, o filósofo recorre à imagem de Maria, dizendo que esta [...] quando é representada ocupando o trono, como rainha dos céus, porta frequentemente um manto vermelho, quando ela ao contrário aparece como mãe, porta um manto azul 319. Essa imagem,

portanto, reforça o poder de receptividade sugerido pela cor azul , e, do mesmo modo, de pacificidade.

Nos versos do poema As palavras , do livro Pousada do ser (1982), há quase que uma definição poética do vocábulo azul — que bem poderia figurar entre as suas reverberações 320—, na qual a poeta joga com as vogais — a e u , especialmente —,

explorando um efeito sonoro — em insinua , flauta e azul —, conjugando-o com a própria imagem, de eficácia mnêmica, diríamos, também sonora , evocada pelo

317 BACHELARD, 2001, p. 170.

318 HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. volume III. Tradução Marco Aurélio Werle, Oliver Tolle; consultoria Victor Knoll. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p. 235. Em nota, o tradutor realça que a expressão Königliche se refere ao adjetivo de rei e não de realidade .

319 Id., ibid.

320Henriqueta Lisboa publica seu dicionário poético , Reverberações, em 1976, sobre o qual tratamos na página155 et seq. de nosso estudo.

significante flauta , o que proporciona, poeticamente, uma melodia extremamente azulante , como diria Bachelard nos seus inspiradores devaneios aéreos:

[...]

Algo se insinua de abandono e flauta na palavra azul 321

[...]

Segundo a Autora, não apenas Azul profundo, mas também Velário (1936) e O alvo

humano (1973) representam com intensidade o seu lado místico. Suas modestas

incursões em busca do conhecimento das causas primeiras e dos primeiros princípios 322, tentando observar o ser enquanto ser, sem a ilusão das aparências 323,

se dão em escala emocional 324, sem pretensões que escapem do seu âmbito de poeta,

de uma artista da palavra. Nessas incursões que Henriqueta realiza, diríamos, contrariando-a, nada modestas , há uma precisão quanto ao uso das palavras, como se o máximo do sentido lhes fossem arrancado, fazendo vir à tona, desse modo, até mesmo o que estava mais oculto, o sagrado segredo que elas encerram, porém sem jamais decifrá-lo.

No poema O irrevelado , desde sempre encerrado na matéria bruta — no trigo —, o que não pode ser revelado é transubstanciado no rito, no sacramento, pelo poder da palavra proferida; e somente por meio desse poder, é que Ele passa realmente a

existir:

Eis o trigo. Poucas porém decisivas palavras bastam para transmudá-lo no corpo e sangue do Esperado. Trigo incorrupto na infecundidade, eis a matéria à espreita

de algo que lhe dera estrutura, de algo que a modelara, dócil, à força. 325

321LISBOA, Henriqueta. As palavras . Pousada do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 27.

322Cf. Entrevista concedida a Edla van Steen, Henriqueta, unida aos homens e a Deus, pela poesia . In: BERNIS, Yeda Prates (Org.) Henriqueta Lisboa: Rosa plena. Edição especial do Suplemento Literário Minas

Gerais, 21 jul. 1984, p. 7.

323 Id. ibid. 324 Id. ibid.

Antes de recorrer à imagem aérea de um azul profundo , conforme já referimos ao analisar o simbolismo da cor azul na fenomenologia de Bachelard, Henriqueta pensou na sutileza de outra matéria para compor o título do seu livro. Segundo a amiga Aurélia Rubião, que lhe escreve de São Paulo, em , o título seria Orvalho quotidiano . Na resposta à Autora, que costumava confidenciar aos mais próximos sobre o que vinha produzindo em assuntos de poesia, assim refere-se Aurélia: Achei lindo também o título que está pensando substituir Orvalho quotidiano , Azul profundo me parece mais simples 326.

O simbolismo do orvalho, no entanto, mantém-se dentro do mesmo campo semântico do azul, do azul profundo , uma vez que o seu poder cromático relaciona-se com a noite e com a escuridão. O orvalho, simbolicamente, está revestido de sacralidade, como indicam todas as coisas que descem do céu 327, mas com um duplo significado

que alude à iluminação espiritual, por ser digno precursor da aurora e do dia que se aproxima . 328

José Jorge de Carvalho, no seu estudo sobre o Mutus liber (1677) — o livro mudo da Alquimia —, ao descrever a quarta prancha onde o alquimista e sua soror mystica recolhem o orvalho, salienta a relação mágica que há entre esse orvalho filosófico e a noite. O ensaísta destaca também que o orvalho alquímico , conhecido pelo nome de

nostoc, termo originário do grego noe, niktós, segundo Fulcanelli 329, corresponde ao

latim nox, noctis, noite. E, portanto, ele seria alguma coisa que nasce à noite: tem necessidade da noite para desenvolver-se e só pode ser trabalhada à noite 330, sem

esquecer que a Alquimia é uma arte noturna 331.

No poema A gota de orvalho , do livro Azul profundo, a alma é a gota de orvalho: Alma, a gota de orvalho/que de teus bordos pende/ [...] 332. E também será a clara

medalha sobre o peito de Ariel , no poema Ariel , pleno de imagens aéreas, aqui banhadas pela luz do sol:

326 Pasta Correspondência Pessoal (RUBIÃO, Aurélia), carta de 10 ago. 1954, no AEM/UFMG. 327Cf. Verbete: Orvalho . CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos, 1984, p. 433. 328 Id., ibid.

329 Fulcanelli teria sido o Mestre de Eugène Canseliet (1899-1982), reconhecido alquimista, comentador e editor de importantes obras da tradição hermética no século XX, inclusive da própria reedição do Mutus

liber, em 1967. Há quem acredite que Fulcanelli seja o próprio Canseliet, tendo em vista os mistérios que

envolvem a sua biografia. Cf. CARVALHO, José Jorge de. Mutus liber: o livro mudo da Alquimia. Ensaio introdutório, comentários e notas José Jorge de Carvalho. São Paulo: Attar, 1995, p. 28.

330 Id., ibid., p. 92 [grifo do autor]. 331 Id., ibid.

Dança Ariel sob raios de sol entre o vergel, vergando as finas hastes, as corolas repletas de orvalho. A gota de orvalho, que clara

medalha sobre o peito de Ariel! Dança Ariel renascido

de frias ruínas, como o arco-íris do fundo dos vales. E o vento

com suas flautas e bronzes, que impulso para os aéreos movimentos de Ariel! [...] 333

Sobre Ariel , lembremos as palavras do escritor uruguaio José Enrique Rodó, no seu livro homônimo, Ariel (1900), no qual, ao iniciar um discurso dirigido à juventude da América , reporta-se ao simbolismo da personagem shakespeariana — de A

tempestade —, nos seguintes termos:

Ariel, gênio do ar, representa no simbolismo da obra de Shakespeare a parte nobre e alada do espírito. Ariel é o império da razão e do sentimento sobre os baixos estímulos da irracionalidade; é o entusiasmo generoso, o móvel elevado e desinteressado na ação, a espiritualidade da cultura; a vivacidade e a graça da inteligência — o término ideal a que ascende a seleção humana, corrigindo no homem superior os vestígios tenazes de Caliban, símbolo de sensualidade e torpeza, com o cinzel perseverante da vida. 334

Agora, observemos um pouco mais a dança do Ariel henriquetiano, tendo em mente as palavras que a Autora envia para o amigo Mário de Andrade, em carta de julho de 1941:

Veja que coincidência: neste momento passarinhos invisíveis cantam aqui perto da janela do meu escritório, cantam e saltitam em gaiolas penduradas do outro lado do muro vizinho, lembrando-me aquele que costuma esvoaçar nos seus pensamentos... Passarinho esvoaçante é coração contente, Mário. Quem foi que falou em coração magoado?... Afinal de contas porque magoado?... Porque o mundo está infestado de Calibans? Mas há também Ariel, Ariel!

333LISBOA, Henriqueta. Ariel . Azul profundo, 1969, p. 27.

334 RODÓ, José Enrique. Ariel. Tradução Denise Bottmann. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991, p. 13-14. Sublinhamos, aqui, a presença de um símbolo maçônico: o Cinzel, que, juntamente com o Malho, serve para o desbastamento da Pedra bruta. Sobre a relação entre Maçonaria e Literatura, trataremos no quarto capítulo de nosso estudo.

Varinha mágica de condão, sopro leve que vence tudo quanto é cimento armado e peso pesado! A vida pode ser triste, mas será bela enquanto Ariel existir.

Deus os guarde, a você e a ele, tão bem identificados no meu afeto 335. As palavras de Henriqueta soam quase como um sortilégio, Varinha mágica de condão , e do mesmo modo podemos ler os versos encantatórios de Ariel , em imagens claras evocando, sobretudo, o sentimento de alegria:

[...]

Dança Ariel sobre o altar das noites, despertando as estrelas. E elas próprias, suspensas

de secretos transportes, que ardentes comparsas para o sacrifício de Ariel! Dança Ariel para o tempo, à margem da eternidade. E que precária cousa, a eternidade,

para a alegria pura de Ariel! 336