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Para pensar sobre as políticas sobre drogas e seus atravessamentos nos grupos familiares, é preciso falar um pouco da história dessas políticas. Para Baremblitt (2012),

é preciso que esteja claro que a história é feita desde nossos dias para um suposto passado e que, nessa medida, leremos uma história que está inevitavelmente sujeitada a como nos situamos no panorama atual e nos abrimos ao futuro, ou seja, a leitura esquizoanalítica da história não é cronológico-genético-evolutiva, ou sincrônico- diacrônica. A história é sempre retro e prospectiva, sua leitura é produzida como passado e como futuro, sempre a partir das instâncias ativas correspondentes a esses respectivos tempos, num presente que se desdobra continuamente neles. (p.125).

Com essa perspectiva, este capítulo se propõe a discutir como a história sobre as intervenções macropolíticas sobre drogas interferem no campo molecular (a ordem dos fluxos, dos devires, das intensidades e das transições de fases), nas relações familiares, nos processos de subjetivação que compõe as famílias e suas dinâmicas de funcionamento na relação com o uso de drogas. Os conteúdos históricos que se propõe relatar aqui não tem intenção de subsidiar uma discussão que meramente reproduza elementos, mas sim pense seus efeitos na atualidade, atualizando-os. Segundo Baremblitt (2012),

o que retorna é sempre a diferença. Em certo sentido se pode entender essa afirmação como sustentando que é desde o diferente que podemos reconhecer o igual e não o inverso; o diferente será o que retorna como tal por que o igual não retorna, permanece. É por isso que fazer história consiste em produzir, detectar e intensificar o novo e o singular a partir do qual avaliaremos o que permanece e combateremos naquilo que permanece o que não temos sido até então capazes de criticar e mudar. (p. 126).

As primeiras intervenções sobre o consumo de substâncias psicoativas no Brasil se iniciaram no início do século XX, quando o consumo de drogas, com exceção do álcool e do tabaco, ainda era incipiente e não era visto como uma ameaça à saúde pública ou como alvo

de preocupação governamental. A apatia do governo com relação ao alcoolismo incentivou a criação de instituições privadas para lidar com problemas relacionados ao uso de álcool, porém de caráter moralista e higienista. O governo cuidava do aparato jurídico repressor, porém voltado apenas para o consumo de drogas ilícitas. As penas previstas para o usuário de drogas ilícitas eram exclusão do convívio social e encaminhamento para prisões e sanatório e, a partir da década de 1970, para hospitais psiquiátricos.

Para falar sobre a construção das Políticas sobre Drogas no Brasil, é necessário falar um pouco do contexto internacional. As medidas brasileiras de caráter repressor, sobretudo com relação às drogas ilícitas, eram influenciadas pelos acordos internacionais como a Conferência em Xangai de 1909, a Primeira Conferência Internacional do Ópio, ocorrida em Haia em 1911 e que resultou na Primeira Convenção Internacional do Ópio - que regulamentou a produção e a comercialização da morfina, heroína e cocaína -, as reuniões da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1961, 1971 e 1988, que de modo geral condenavam o consumo e a comercialização de determinadas drogas, recomendando aos países a adotarem medidas mais repressoras para evitar a circulação e o consumo de drogas nos seus territórios. Atualmente a UNODC (Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crimes) é a agência das Nações Unidas com mandato de apoiar os países na implementação das três convenções da ONU sobre drogas. Importante ressaltar que as convenções internacionais ocorridas no início do século XX surgem em decorrência da guerra do ópio, conflito entre a Inglaterra e a China, fruto da disputa imperialista na Ásia. Essas convenções eram patrocinadas pelos Estados Unidos e tinha o objetivo de controlar o comercio do ópio e seus derivados. Os acordos preconizam que os países signatários deveriam coibir o consumo e a comercialização, sem indicação médica, de ópio e seus derivados nos seus territórios (Carvalho, 2010). Em 1921 a Convenção de Haia entra e vigor e é criada a Comissão Consultiva do Ópio e outras Drogas Nocivas, sucedida pela Comissão das Nações Unidas

sobre Drogas Narcóticas. Em 1924 ocorre a conferência de Genebra que dá origem ao acordo de Genebra em 1925 e materializa os dispositivos criados pela convecção de Haia em 1912 e amplia o conceito de substâncias entorpecentes. (Carvalho, 2010). Em 1931 e 1936 ocorrem mais duas conferências internacionais.

Sentindo-se obrigado a cumprir os acordos internacionais, o Brasil publica a primeira lei de drogas em 1921, através do decreto nº 4294, 6/07/1921, no mandato do presidente Epitácio Pessoa. Nessa lei, pessoas que comercializassem drogas como ópio, morfina e cocaína poderiam ser presas, e aqueles que fossem pegos sob efeitos de substâncias ilícitas entorpecentes ou mesmo álcool seriam multados ou internados para tratamento. A lei seca norte-americana de 1920 surte algum efeito nessa lei, pois pela primeira vez é imposto algum tipo de regulamentação para revendedores de bebidas alcoólicas. A lei de drogas de 1921 é o primeiro texto legislativo específico com objetivo de regulamentar o uso de drogas em território nacional. Antes disso, no Brasil, Rodrigues (2004) afirma que em 1910, na capital paulista, o uso de drogas importadas como cocaína e heroína era comum entre os jovens filhos da oligarquia cafeeira. No entanto, essas “drogas de luxo” começam a ser utilizadas também por prostituas, cafetões e cafetinas, dentre outros “fora-da-lei”. Quando isso acontece, esses “vícios elegantes” começam a ser recriminados juntamente ao consumo da maconha associado a negros e caboclos nos seus cultos sincréticos. Esse impulso moralista com relação às drogas fortalece a função controladora do Estado, que já visava determinados grupos, sobretudo composto por negros e pobres. A recriminação do uso de drogas é apenas mais um motivo para “justificar” as ações do Estado de vigilância e repressão da classe subalternizada. Em 1924 o código penal brasileiro cria leis que penalizam o comércio de ópio, seus derivados e cocaína no país e passou a punir casos de embriaguez que perturbassem a ordem pública ou acarretassem risco e problemas a outrem, através de internação compulsória em sanatórios. Alguns anos depois, os EUA, insatisfeitos com o resultado do acordo de Genebra,

organizam duas conferências (1931 e 1936) que fortalecem a política internacional de repressão ao tráfico de drogas. A convenção de 1936 é conhecida como Convenção Internacional para Repressão de Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas e, no Brasil, foi promulgada através do Decreto 2.994, pelo então presidente Getúlio Vargas. Nesse mesmo ano foi criada, também, a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), pelo decreto 780. A partir dela foram criadas comissões estaduais, o que poderia se chamar de um protótipo da construção da Política Nacional sobre Drogas (Carvalho, 2010). O CNFE encomendou várias pesquisas sobre drogas e um dos resultados dela foi a obra “Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros” publicada em 1958.

Essa obra é publicada pelo então Serviço Nacional de Educação Sanitária, vinculado ao Ministério da Saúde, que consistia numa coletânea de trabalhos brasileiros sobre maconha, cujos autores eram na sua maioria membros do CNFE. Em um dos capítulos, intitulado “os perigos sociais da maconha”, escrito pelo professor João Mendonça, podemos ler,

para dar-vos, de início, uma ideia dos perigos sociais da maconha, digo-vos, tão só, à moda de introito, que ela é , ao lado da cachaça, o enlevo das populações nortistas pobres que, no tóxico, tantas vezes, encontram a fórmula doce do sonho para as arestas contundentes da vida. Povo de caracteres étnicos que facilitam a absorção fácil de ideologias abstrusas, assoberbado pelos flagelos da seca, pelas torturas das endemias, e da ignorância, é de apavorar o quadro dantesco que, nesse terreno, os tóxicos podem desempenhar através do indivíduo e a espécie. (p. 99).

Esse é apenas um dos trechos da mesma obra que mostra como a visão que se tinha a respeito do uso de algumas drogas, sobretudo a maconha, era vazia de validade científica e carregada de moralismos e preconceitos.

Em outro trecho da mesma obra, o Psiquiatra Décio Parreiras, no capítulo “Canabismo ou Maconhismo” fala sobre a periculosidade do usuário de maconha,

a grande periculosidade no assassinato, pelo indivíduo lombrado, está na sua instantaneidade; na sua sem nenhuma razão de ser; na ausência absoluta de motivo. Pode-se dizer que o diambista reage esquizofrenicamente e mata esquizofrenicamente.

É a imprevisibilidade dos delitos, sem a menor discussão anterior, como vimos, recentemente, à noite, num crime cometido em plena avenida Rio Branco, por indivíduo, possivelmente, lombrado. É um lampejo epiléptico. O ato é cometido de uma maneira rápida, inesperada, desconcertante; às vezes, o assassino não conhece a vítima e não tira vantagem do crime. É o caso da matança coletiva naquele jovem de Flórida e que, lombrado, trucida o pai, a mãe, dois irmãos e irmã, sem nenhuma razão. Na alucinose canábica, o homicídio é praticado com os maiores requintes de maldade; com absoluto sangue frio; é o gozo lúdico; matam por prazer. O criminoso, frequentemente, não foge; não reage; deixa-se prender e, às vezes, comparece ao enterro da própria vítima, como no caso do “Bola de neve”, relatado em observação anterior, na capital sergipense. Sou de parecer que a justiça brasileira muito lucraria, em tais casos de homicídio sem motivo aparente, estendendo o inquérito social até esses hábitos individuais e mandando proceder a pesquisa do tóxico na saliva e determinando a realização de cuti-reação específica, já em voga em outras nações americanas. (p. 267).

Essas ideias além de corroborarem para instauração do pânico moral acerca do uso de drogas ilícitas no país, não correspondem à realidade do uso da substância. Além disso, apoiam a lógica de intervenção do campo jurídico-repressor, que respaldado no saber médico- científico, organiza suas estratégias de enfrentamento aos problemas ligados às drogas.

Em 1943, o CNEF realiza uma inspeção na região do Baixo São Francisco para apresentar o problema da maconha nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, mais especificamente na região que compreende esses estados que mais tarde ficou conhecida como polígono da maconha. O relatório informa que a maconha era um problema, sobretudo, dos mais pobres, habitantes dessa região. As intervenções compreendiam desde a apreensão da droga, ou mesmo destruição do plantio, ainda que essa fosse apenas para uso próprio (Carvalho, 2010). A tentativa de pôr em prática um projeto higienista pautado em objetivos internacionais distante de um ideal de justiça e igualdade social faziam com que no Brasil fosse se construindo uma intervenção violenta, opressora e preconceituosa, renegando qualquer possibilidade de entender o consumo de determinadas substâncias de maneira contextualizada. Acreditava-se, apenas, que o uso ampliado da maconha era causado pela falta de repressão.

Internacionalmente, as duas grandes-guerras dificultam a realização de conferências, e em 1946 é assinado protocolo atualizando acordo anteriores sob convocação da ONU. Em 1948 firma-se outro protocolo em Paris e em 1953 um em Nova Iorque, restringindo a produção de opiáceos na fonte, permitindo sua destinação apenas para uso médico.

No entanto, em 1961 é criada a Convenção Única de Nova Iorque, e todas as convenções anteriores são revogadas e a ONU passa a ter a atribuição legal da fiscalização internacional de entorpecentes, contando com a participação de todos os países membros das Nações Unidas. Segundo, Rodrigues (2004), esse seria “o documento-síntese de todos os tratados antipsicoativos acordados desde a primeira década do século XX” (p. 130). Na Convenção se definiu a legalidade com base no uso médico da substância. Drogas como LSD, mescalina e maconha tiveram o seu uso médico vedado na convenção. Já barbitúricos, anfetaminas e outras substâncias sintetizadas por grandes indústrias farmacêuticas multinacionais não foram consideradas ilegais, dada a consideração de sua aplicabilidade em fins médicos (Rodrigues, 2004). O argumento do uso médico é historicamente utilizado para respaldar decisões legais. Decidir entre proibir o LSD (substância de baixa toxidade) e legalizar o álcool coloca em xeque a ideia de “uso médico”. Observa-se assim que a legalização de determinadas drogas e a proibição de outras, coloca a medicina como porta voz de um veredicto repleto de intencionalidades políticas e econômicas. A convenção única foi promulgada no Brasil pelo decreto 5.216 em 27 de agosto de 1964, ano do Golpe Militar.

É justamente após o golpe militar que no Brasil começa a operar uma fiscalização mais rigorosa acerca do uso e comércio de drogas. Antes do golpe os usuários, dependentes e experimentadores não eram criminalizados. O sistema que se aplicava era o médico-policial. Os casos considerados mais graves eram internados compulsoriamente. Em 1964 é criado o SRTE (Serviços de Repressão a Tóxicos e Entorpecentes). Segundo Rodrigues (2004), nessa época está montado o cenário em que “a sociedade sã insurgiu-se contra a “degradação moral

e cívica” por meio de determinações proibicionistas prenhes de positividades com “garras” para capturar indesejáveis, dissonantes e “perigosos”.” (p. 138).

Em 1971 tem-se a Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas, ocorridas em Viena, que passa a controlar a preparação, uso e comércio de psicotrópicos. Em 1972, firma-se em Genebra o Protocolo de Emendas à Convenção Única sobre Entorpecentes, na tentativa de aperfeiçoar a convenção de 1961, passando a salientar a necessidade de oferta de tratamento ao toxicômano. Em 1977 a Secretaria Geral das Nações Unidas convoca a Conferência Internacional sobre o Abuso de Drogas e Tráfico Ilícito.

Em 1976 o presidente Ernesto Geisel cria por meio de decreto um Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão para tentar cumprir a convecção de 1971 e 1972. Vemos que os maiores esforços de se concretizar uma política nacional de drogas surgiram em meio à ditadura, porém, se concretizando apenas na década de noventa.

Em 1986, a Organização dos Estados Americanos (OEA) criou a Comissão Interamericana de Controle do Abuso de Drogas (CICAD), com o objetivo de criar a cooperação multilateral no combate ao tráfico de drogas no continente.

Em 1988 tem-se Conclusão da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas (Vena) e em 1990 entra em vigor internacional a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas que complementa as Convenções de 1961 e 1972, acrescentando, entre outras coisas, o éter etílico e acetona, no rol das substâncias controladas.

Na década de 1970 a psiquiatria passa a influenciar a legislação sobre drogas no país. Pela primeira vez é proposta uma diferenciação entre usuário e traficante, porém ambígua até os dias atuais. A psiquiatria aparece como mecanismo de controle e repressão ao uso de drogas no país oferecendo seu aparato tecno-científico para auxiliar o Estado em seus trabalhos ligados à questão das drogas. São criadas instituições públicas e privadas com

finalidades específicas de tratamento, ressocialização e controle do usuário de drogas. As influências do modelo médico-psiquiátrico nas intervenções governamentais podem ser percebidas pelos seguintes detalhes: mudança do termo viciado para dependente químico; proposição de tratamento hospitalar e extra-hospitalar. As intervenções saneadoras surgem com o objetivo de restabelecer o usuário de drogas para compor o grupo dos corpos saudáveis e produtivos. (Rodrigues, 2004).

Essa preocupação governamental com a saúde do usuário de drogas começa a crescer na década de 1970 fruto, também, da expansão do consumo de drogas ilícitas como maconha e cocaína. A maconha passa a ser consumida, a partir da década de 1960, pela classe média, quando antes estava restrita a grupos marginalizados como prostitutas, detentos, assaltantes e malandros. Já a cocaína tem seu consumo acrescido na década de 1970 com a diminuição do seu valor e aumento da oferta. Não é de se espantar que, nessa época, década de 1970, em pleno regime Militar Brasileiro, quando o consumo de drogas se amplia na classe média brasileira, impregnada pelo clima opressor e conservador da ditadura militar, que se passa a história de Astregéliso Carrano (2001), contada na obra “O Canto dos Malditos” e mais conhecida através do filme “Bicho de Sete cabeças”. Em um dos trechos do livro em que conversava com alguns amigos sobre o modo de vida hippie, comum na década de 1970, o protagonista qualifica a sociedade brasileira burguesa,

eles representam não eles mesmos, e sim os valores familiares. Eu também. Se eu deixar o cabelo crescer e começar a falar gíria, o meu pai tem um enfarte. Eles são muito radicais para aceitarem uma transformação de valores tão violenta como a que está ocorrendo nos últimos anos. E a única saída que essas pessoas enxergam é a represália, através do autoritarismo em que o país vive. Mas vocês cabeludos, porra- loucas...desafiam esse poder e pagam com sofrimento essa ousadia. (p. 36).

Naquela época, o porte e o uso de drogas ilícitas eram tratados com prisão e tortura. Em outro trecho do livro, Carrano (2001) descreve um pouco essa situação em que ele mais um grupo de amigos foram detidos pela política por terem oferecido drogas a uma garota,

ficamos surpresos com aquela recepção. Estávamos de cabeça feita. Mas na hora é o mesmo que ser jogado embaixo de um chuveiro de água fria. A doidera desapareceu dando lugar a uma tremedeira que não dava pra controlar. Passava tudo pela cabeça da gente: pau-de-arara, porrada... e a tortura que viria depois. (p. 45).

Em outro trecho do mesmo livro,

fomos entregues aos homens da Entorpecentes. Levaram-nos para o seu quartel- general. Sabíamos que iríamos conhecer o famoso comandante “japonês”. Era conhecido por pendurar maconheiro no pau-de-arara, e ele mesmo fazer as torturas. Chegavam a dizer até que arrancavam unhas de viciados. Dormimos os quatro numa cela. Não tivemos o prazer de conhece-lo aquela noite. Mas pela manhã fomos levados a uma sala. Lá estavam nossas mochilas reviradas. (p. 46).

Carrano (2001) elucida, também, de forma bastante interessante o panorama político- social repressor com relação ao uso de drogas naquela época:

os anos 70 foram também marcados pela tortura da polícia brasileira. Barbarizavam, pois o famigerado AI-5 lhes garantia essas atividades. Torturavam, desapareciam com as pessoas, tudo em nome da lei, chegando ao ponto das atitudes desses carrascos ultrapassarem as barreiras nacionais. Os jovens, os cabeludos maconheiros, como éramos denominados por uma sociedade dirigida a pensar como os ditadores desejavam, eram alvo de todas as atenções. Os dirigentes-ditadores, inteligentemente desviavam a atenção da sociedade em nossa direção. Enchiam os jornais de manchetes como “Maconheiro cabeludo estupra menor”, “maconheiros cabeludos assaltam para comprar drogas”...e outras manchetes desse gênero. Criavam na população aversão a qualquer jovem que usasse cabelos compridos. Fomos assim perseguidos não só por policiais, mas também discriminados e repudiados até por nossos familiares. (p. 49.)

E é justamente na década de 1980 que surgem os primeiros centros de tratamento especializados ligados ao poder público. No entanto, os primeiros centros de tratamento eram voltados para o uso de substâncias ilícitas e não para alcoolismo. Isso mostra que o país

estava muito mais atento aos acordos internacionais preocupados com a repressão e controle do tráfico, do que a atender as reais demandas da sociedade no que se refere ao consumo de drogas. O pânico moral causado pelo proibicionismo também gerava mais demanda de intervenções psiquiátricas, da salvação médica, aos “viciados degenerados”. A família, naturalmente como parte da sociedade e alvo das regulações do Estado, também buscava esse recurso, internando seus parentes em busca de solução para os dilemas causados pelo uso de drogas. A literatura autobiográfica de Autregésilo Carrano exemplifica bem essa situação, quando conta que fora internado pelo pai devido ao uso de maconha na adolescência.

Com a influência da medicina na legislação brasileira sobre drogas na década de 1970, embalada pelo contexto proibicionista, faz-se uma distinção baseada em critérios psiquiátricos entre usuários criminosos e usuários doentes. Dessa maneira o modelo interventivo se divide entre a punição e a recuperação. A partir daí cresce o número de instituições privadas especializadas no atendimento ao uso de drogas, baseadas na lógica da reclusão e da abstinência.

Com o passar dos anos, lentamente as estratégias para controle do uso e tráfico de drogas vão se aperfeiçoando, e em 1980, ainda na ditadura militar, foi regulamentado o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) (previsto pela lei 6.368 de 1971). Apesar de estar responsável, também, pela fiscalização das ações de repressão ao consumo e tráfico de drogas, o CONFEN em momentos da sua história incentivou a implementação de ações de prevenção, assim como estimulou a criação de centros de estudos, pesquisa e tratamento a