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Popper, nesta fase, acredita que o empreendimento científico seja um fenômeno biológico. A ciência surge a partir do conhecimento pré-científico, que é uma continuação do conhecimento de senso comum, que, por sua vez, tem origem no conhecimento animal.

Popper (1999) foi um filósofo que manteve uma posição epistemológica polêmica, pois acreditava que nascemos equipados com um alta carga de conhecimento. Uma análise sob a ótica da biologia evolutiva, especialmente nos primórdios da evolução, nos possibilita verificar o fato de que a vida é basicamente um processo químico. O filósofo afirma que Heráclito já havia percebido esse fenômeno há 500 a.C., quando utilizou a metáfora do fogo, ou seja, a vida é um complexo processo químico de oxidação. Não passamos de chamas, ou, de forma mais prosaica, somos como as células, um conjunto de processos de metabolismo, uma rede de processos químicos, ou um emaranhado de caminhos químicos altamente ativos (POPPER, 1999).

Wächterhäuser reforçou a hipótese epistemológica evolutiva da fase final da vida de Popper (1999) ao produzir uma teoria bioquímica adicional para explicar a formação dos primeiros órgãos sensíveis à luz, que foram os predecessores evolutivos dos olhos. O químico afirmou que algum microorganismo unicelular do fundo do oceano escuro deve ter desenvolvido um método eletroquímico para transformar luz solar em energia química, de forma a utilizar a luz solar como um alimento. Esta invenção era perigosa, visto que o excesso de raios ultravioletas da luz solar poderia matar o organismo. Surgem, com esta invenção, diversos problemas a serem resolvidos pelo organismo.

Primeiramente, descobrir onde a luz solar estaria, informação que direcionaria essa bactéria ao seu encontro. A solução deste problema surge com a formação de um órgão sensitivo com a função dos olhos. Este órgão sensitivo teria uma ligação química com algum mecanismo de locomoção para promover a fuga, que resolverá o segundo problema, ligado ao perigo, quando a exposição aos raios ultravioletas é excessiva. A evolução dos olhos se deu a partir de um mecanismo de alimentação da célula e dos mecanismos de evasão do perigo. Esta antecipação ao perigo requer um conhecimento prévio a respeito do meio e de suas futuras possibilidades.

Esta solução totalmente casual e acidental de uma bactéria que usou a luz solar como fonte de alimentação pode explicar a introdução do oxigênio na atmosfera, que produziu a maior revolução na história do meio ambiente, viabilizando o redirecionamento da evolução da vida. Podemos inferir, então, que esta solução resultou de uma tendência geral dos organismos de explorar seus ambientes, e que essa exploração levou estas bactérias a emergirem para as camadas mais superficiais do oceano; algumas foram eliminadas pela luz solar e outras, ao longo de muito tempo, conseguiram se adaptar através de mutações que equiparam quimicamente o organismo e permitiram sua sobrevivência, possibilitando uma rica superfície de alimentação do oceano que beneficiou seus descendentes.

Na natureza, de acordo com Popper (1999), os problemas são provocados por mudanças nas condições de contorno do meio ambiente ou por mudanças na estrutura interna de um organismo. As espécies sobrevivem se resolverem os problemas mudando as suas estruturas genéticas. Portanto, a mudança é um dos fatores que gera problemas que precisam ser resolvidos pela natureza. Popper (1999) apoiou a teoria do surgimento da vida de Wachterhauser que vimos no capítulo três, pois ela se alinha complementarmente à sua tese mais recente, das expectativas ou

antecipações dos organismos, fato que ele designou como conhecimento biológico a priori. Esta sua posição é muito combatida pela maioria dos epistemólogos que defendem a aquisição do conhecimento pela percepção, que, para Popper, são apenas utilizadas para monitoramento e registro momentâneo dos arredores em que o organismo se encontra. Ele acredita que o conhecimento perceptivo, que é momentâneo, seja guiado pelas nossas metas, desejos e intenções, de tal forma que estas podem nos enganar com algo que vemos com nossos olhos e interpretamos, pois estão dominadas pelas expectativas e interesses daquele momento. Do ponto de vista biológico, o conhecimento de qualquer organismo, animal e humano, consiste de expectativas inconscientes e pode ser resumido como conhecimento conjectural.

Popper (1999) acredita que haja uma determinação genética inata no comportamento dos organismos animais e vegetais, que mostra serem eles guiados por leis de regularidades ou leis da natureza. Estas regularidades criam expectativas nos organismos, que, diante de problemas, devem efetuar testes de movimentos para solucioná-los. O filósofo propõe um modelo de 3 estágios, muito similar ao método científico já descrito, utilizado pelos organismos:

1. O problema, a partir da ocorrência de um distúrbio

2. Os esforços para solucioná-lo, que, se derem certo, criarão uma nova expectativa 3. A eliminação das soluções que falharam

No estágio 2 do modelo proposto, é necessário que haja muitas tentativas para solucionar o problema. A espécie ou o organismo da espécie sobrevive se conseguir alterar a sua estrutura genética. O aparato genético é alterado ou uma mutação ocorre repetidas vezes. Porém, a maioria das mutações são falhas e acabam por extinguir o organismo, e, por isso, é fundamental o pluralismo neste estágio.

Desde as mais primitivas formas de vida, desde as primeiras células, a adaptação é a grande solução encontrada pelas criaturas vivas. Elas se adaptam ao meio e vão aprimorando sua adaptação.

Para exemplificar e construir sua teoria, Popper propõe um experimento mental e nos convida a imaginar se pudéssemos criar vida dentro de um tubo de ensaio, a partir de um ou vários genes. Dificilmente essa vida sobreviveria, pois ela não estaria adaptada ao tubo de ensaio, já que se trata de um meio extremamente pobre para que a vida possa florescer. Poderíamos melhorar as condições de contorno e colocaríamos um equipamento auxiliar especial, que interagiria de forma recíproca com a vida e colocaríamos vários adendos periféricos ao meio, no caso o tubo de

ensaio, para dar suporte à vida. O ponto do experimento é que o simples fato de gerar vida não resolve o problema. Popper (1999) suspeita que a vida deve ter sido gerada milhares de vezes até que essa reciprocidade e interação entre o meio ambiente e a vida chegasse às condições ideias de geração e manutenção da vida.

Este experimento e estas hipóteses o conectam com o conhecimento, pois, para o filósofo, a adaptação da vida ao meio ambiente é um tipo de conhecimento, sem o qual a vida não sobrevive. Se o meio não é minimamente constante ao longo do tempo, a vida terminará e terá que começar novamente. Desta forma, ele conclui que tanto a vida quanto o conhecimento precisam de estabilidade. A adaptação, portanto, é uma forma de conhecimento a priori e a premissa inicial é que a vida, desde o seu princípio, tem que ter uma antecipação inata sobre as condições do meio ambiente. Não basta apenas haver uma adaptação momentânea ao meio, ela deve ocorrer ao longo de vários períodos de tempo. Concluímos que a vida, desde o início, antecipou o futuro do meio. Isto pode ocorrer numa questão de horas ou de milhares de anos, e, portanto, o conhecimento geral, que pode ser chamado de conhecimento das leis da natureza, vem antes do conhecimento momentâneo ou episódico. Popper reconhece que esta é uma ideia um tanto quanto antropomórfica e, em vez disso, sugere a mesma estratégia utilizada por Darwin, que utilizou a hipótese da homologia. Esta foi uma premissa fundamental para o desenvolvimento da teoria evolutiva que levou Darwin à conjectura que nos remeteu a um ancestral comum de todas as espécies. O que pode ser homólogo nos organismos são os seus órgãos, suas funções, seus procedimentos, até seus comportamentos. Por homologia, entende-se a similaridade entre estruturas de diferentes organismos, que remete a uma mesma origem embriológica. A hipótese de Popper sobre a teoria da homologia não é uma simples metáfora para explicar a epistemologia; ele acredita que o conhecimento tácito de qualquer organismo tem a característica de expectativas potenciais, que, quando frustradas, causam surpresa.

Ele estabelece uma diferença entre o conhecimento inconsciente de condições de longo prazo para a adaptação que se dá ao longo da evolução de muitas gerações do organismo em comparação com o conhecimento de curto prazo, que ocorre ao longo da vida do organismo. A habilidade do organismo de responder às mudanças do meio ambiente no curto prazo depende de sua adaptação de longo prazo, ou seja, do conhecimento a priori que determina seu estado de preparação para resolver problemas.

A origem e evolução do conhecimento necessários para a adaptação e, consequentemente, à sobrevivência, coincide com o origem e evolução da vida, ambas intimamente ligadas à origem e evolução do planeta terra.

Essa epistemologia evolutiva assume que todo o conhecimento é hipotético e é fundamental para a adaptação de um organismo a um meio parcialmente desconhecido. É o resultado de frequentes sucessos e insucessos, tentativas antecipadas e erros inevitáveis de eliminação. Alguns desses erros, que ingressam na constituição hereditária do organismo, provocam a sua extinção. No entanto, alguns erros escapam e essa é a razão dos organismos serem falíveis, pois a adaptação ao meio nunca é ótima e perfeita. Popper cita o sapo como exemplo dessa imperfeição da adaptação, que é constituído de um conhecimento a priori, na maneira com que ele percebe as moscas. Entretanto, mesmo que elas estejam bem próximas, ele não pode vê-las se elas não se moverem.

Finalmente, a posição de Popper é muito clara ao afirmar que as ciências usam fundamentalmente o mesmo método de tentativa e erro que o senso comum. Ele respeita o senso comum, quase sempre o mais valioso e confiável guia que temos, em quase todas as situações possíveis. Quando se trata de assuntos científicos ou de epistemologia, entretanto, é muito importante termos uma atitude crítica. É certo que nossos órgãos sensitivos nos informam sobre o mundo à nossa volta, sendo indispensáveis para este propósito, assim como para qualquer organismo vivo. Porém, a partir dessas informações não podemos concluir que nosso conhecimento começa com a percepção sensorial. Ao contrário: nossos sentidos, do ponto de vista da teoria da evolução, são ferramentas que se formaram para solucionarem certos tipos de problemas biológicos.