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Por que o capitalismo de mercado favorece a democracia

No documento DAHL,Robert,Sobre a Democracia.pdf (páginas 94-98)

D em ocracia e capitalism o de m ercado são com o duas pessoas ligadas por um casam ento tem pestuoso, assolado p or conflitos - m as que resiste, porque nenhum dos parceiros deseja separar-se do outro. Passando o exem plo para o m undo botânico, os dois existem num a espécie de sim biose antagônica.

Em bora seja um relacionam ento com plicadíssim o, acredito que possam os extrair cinco im portantes conclusões a partir da p ro ­ fusa e sem pre crescente série de experiências. A presentarei duas neste capítulo e as três restantes no próxim o.

1. A democracia poliárquica resistiu apenas nos países com uma economia predominantemente de mercado; jamais resistiu em algum país com a predominância de uma economia que não seja de mercado.

Limitei esta conclusão à dem ocracia poliárquica, mas ela tam ­ bém se aplica m uito bem aos governos populares que surgiram nas cidades-estado da G récia, de Roma e da Itália m edieval, e na evo­ lução das instituições representativas e no desenvolvim ento da par­ ticipação do cidadão 110 norte da Europa. Passarei por cima dessa história, parte da qual já encontram os no C apítulo 2, para nos co n­ centrarm os exclusivam ente nas instituições da m oderna dem ocra­ cia representativa — 011 seja, a democracia poliárquica.

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Aqui o registro não é nada am bíguo. A dem ocracia poliárquica existia apenas em países com a predom inante econom ia capitalista de m ercado e jamais (ou, no m áxim o, brevem ente) em países onde predom inavam econom ias planificadas. Por que isto acontece? 2. Esta relação estrita existe porque certos aspectos básicos cio capitalismo de mercado o tornam favorável para as instituições democráticas. Inversamente. alguns aspectos de uma economia predominantemente planificada a tornam prejudicial às perspecti­

vas democráticas.

Num a econom ia capitalista de m ercado, as entidades econô­ m icas ou são indivíduos ou em presas (firm as, fazendas e sabe-se lá m ais o quê), que são propriedade privada de indivíduos ou grupos e. na m aior parte, não pertencem ao Estado. O principal objetivo dessas entidades é o ganho econôm ico na form a de salários, lucros, juros e aluguéis ou arrendam entos. Os dirigentes das em presas não têm nenhum a necessidade de lutar por m etas m ais am plas, grandio­ sas e am bíguas, com o o bem -estar geral ou o bem público - eles podem ser guiados unicam ente por incentivos egoístas. C om o os m ercados abastecem proprietários, dirigentes, trabalhadores e ou­ tros com boa parte da inform ação decisiva necessária, eles podem tom ar suas decisões sem uma orientação central. (Isto não significa que possam fazê-lo sem as leis e as regulam entações — assunto a que retornarei no próxim o capítulo.)

Ao contrário do que a intuição nos diria, os m ercados servem para coordenar e controlar as decisões das entidades econôm icas. A experiência histórica dem onstra, de m odo bastante conclusivo, que um sistem a em que são tom adas incontáveis decisões econô­ m icas por inum eráveis atores independentes em com petição, cada um atuando a partir de interesses egoístas m uito restritos e orienta­ dos pela inform ação fornecida pelo m ercado, produz bens e servi­ ços de maneira bem mais eficiente do que qualquer outra alternativa conhecida. Mais do que eficiente: com uma regularidade e uma ordem verdadeiram ente espantosas.

C onseqüentem ente, a longo prazo, o capitalism o de m ercado levou ao desenvolvim ento econôm ico - e o desenvolvim ento eco ­ nôm ico é favorável à dem ocracia. Para com eçar, ao reduzir a po-

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í reza intensa e m elhorar os padrões de vida, o desenvolvim ento econôm ico ajuda a reduzir os conflitos sociais e políticos. Além disso, quando surgem grandes conflitos econôm icos, o desenvol- im ento proporciona m ais recursos, que estarão disponíveis para :m povoam ento m utuam ente satisfatório, em que todos ganham i.gum a coisa. (Para usar a linguagem da teoria do jogo, na ausên­ cia do desenvolvim ento os conflitos econôm icos tornam -se “som a- zero : o que eu ganho, você perde - o que você ganha, eu perco. Assim, a cooperação é inútil.) O desenvolvim ento tam bém pro po r­ ciona aos indivíduos, aos grupos e ao governo o excedente neces­ sário para dar apoio à educação e, desse m odo, prom over uma cidadania instruída e educada.

O capitalism o de m ercado tam bém é favorável à dem ocracia por suas conseqüências sociais e políticas. Ele cria um grande es­ trato interm ediário de proprietários que norm alm ente buscam a educação, a autonom ia, a liberdade pessoal, direitos de proprieda­ de, a regra da lei e a participação no governo. As classes m édias. : "»mo A ristóteles indicou, são os aliados naturais das idéias e das instituições democráticas. Por fim. talvez o mais importante: descen­ tralizando muitas decisões econômicas a indivíduos e a firmas relati­ vamente independentes, uma economia capitalista de m ercado evita a necessidade de um governo central forte ou mesmo autoritário.

U m a econom ia planificada pode existir onde os recursos são escassos e as decisões econôm icas poucas e óbvias. Em um a socie­ dade mais complexa, é necessário um substituto para a coordenação e co ntro le pro p o rcio n ad o s pelos m ercados. O único su b stitu to viável é o governo. Seja qual for a propriedade legal form al de em presas em uma econom ia planificada, suas decisões são efeti­ vam ente tom adas e controladas pelo governo. Sem a coordenação do m ercado, torna-se naturalm ente tarefa do governo a distribuição de todos os recursos escassos - capital, trabalho, m aquinário, ter­ ras. construções, bens de consum o, residências e os dem ais. Para lazer isso, o governo precisa ter um plano central detalhado de grande alcance e. portanto, funcionários do governo encarregados de fazer, executar e verificar o cum prim ento desse plano. São tare­ fas prodigiosas que exigem trem endas quantidades de inform ação confiável. Para conquistar a subm issão a suas diretivas, os funcioná­ rios do governo devem descobrir e aplicar incentivos adequados - que podem ir de recom pensas legais (com o salários e prêm ios) ou ile­

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gais (por exem plo, o suborno), a coerção e a punição (com o a con­ denação por “crim es econôm icos”). A não ser sob condições raras e passageiras, que abordarei em seguida, nenhum governo m ostrou-se à altura dessa tarefa.

E ntretanto, as ineficiências de um a econom ia de planejam ento central não são o mais prejudicial para as perspectivas dem ocráti­ cas - o pior são as conseqüências sociais e políticas da econom ia. Uma econom ia centralm ente planejada deixa os recursos de toda a econom ia à disposição de líderes do governo. Para im aginar as prováveis conseqüências desse fantástico legado político, devem os lembrar o aforismo: “O poder corrompe e o poder absoluto corrompe de m aneira absoluta” . Uma econom ia centralm ente planejada lança um convite direto aos líderes do governo, escrito em negrito: V ocê

é livre para usar todos esses recursos econôm icos para con soli­ dar e m anter o poder que tem em suas mãos!

Os líderes políticos teriam de ser dotados de poderes sobre­ hum anos para resistir a essa tentação. M as o triste registro da histó­ ria é claro: todos os governantes que tiveram acesso aos im ensos recursos proporcionados por um a econom ia de planejam ento cen­ tral confirm aram a sabedoria do aforism o. Na verdade, os líderes podem usar seu despotism o para bons ou m aus fins. A história re­ gistra um pouco de cada um desses tipos de fins - em bora, penso eu. de m odo geral os déspotas tenham feito bastante m ais mal do que bem . De qualquer m aneira, econom ias de planejam ento central sem pre estiveram estreitam ente associadas a regim es autoritários.

A lgum as ressalvas

A inda que essas duas conclusões sejam válidas, elas precisam de uma série de ressalvas. O desenvolvim ento econôm ico não é exclusivo de países dem ocráticos, nem a estagnação econôm ica é exclusiva das nações não-dem ocráticas. Na verdade, parece não haver nenhum a correlação entre desenvolvim ento econôm ico e o tipo de governo ou regim e de um p a ís.1

1 Para obter in d ício s im p ression an tes sobre este ponto, veja Bruce R ussett, “A Neo-Kantian Perspective: D em ocracv. Interdependence. and Inlernational Organizations in Building Security Commimities". em Emanuel Adler e Michael Barnett. eds.. Security Commwiities in Compara tive and Histórica/ Perspective. Cambridge, Cambridge University Press. 1998: e Adam Przeworski e Fernando

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A lém disso, em bora a dem ocracia só tenha existido em países com um a eco n o m ia ca p italista de m ercado , o ca p ita lism o de m ercado existiu em países n ão -dem o crático s. Em m u ito s deles (especialm ente Taiw an e a Coréia do Sul), os fatores anteriorm ente mencionados, que tendem a acom panhar o desenvolvim ento econô­ mico e, por sua vez. uma econom ia de mercado, ajudaram a produzir a dem ocratização. Nesses dois países em especial, os líderes auto­ ritários, cujas políticas ajudaram a estim ular o desenvolvim ento de uma boa economia de mercado, indústrias de exportação, desenvol­ vim ento econôm ico e um a grande classe m édia educada, inadverti­ dam ente plantaram as sem entes de sua própria destruição. A ssim , em bora o capitalism o de m ercado e o desenvolvim ento econôm ico sejam favoráveis à dem ocracia, a longo prazo eles poderão ser bem m enos favoráveis e até inteiram ente desfavoráveis para os regim es não-dem ocráticos. C on seq ü en tem en te, o d esfech o de um im ­ pressionante dram a histórico a se desenrolar no século XXI revela­ rá se o regim e não-dem ocrático da China poderá suportar as forças dem ocratizantes geradas pelo capitalism o de m ercado.

Uma econom ia capitalista de m ercado não precisa existir ape­ nas em sua conhecida form a urbano-industrial ou pós-industrial do século XX. Tam bém pode ser - pelo menos, já foi - agrícola. V im os no C apítulo 2 que. durante o século XIX. as instituições d em ocráti­ cas básicas (com a exceção do sufrágio fem inino) apareceram em diversos países predom inantem ente agrícolas: Estados U nidos, C a­ nadá, Nova Zelândia e A ustrália. Em 1790. prim eiro ano da repú­ blica norte-am ericana sob sua nova (ainda em vigor) C onstituição, de uma população total de pouco m enos de quatro m ilhões de p es­ soas, apenas 5% viviam em lugares com m ais de 2.500 habitantes - os 95% restantes viviam em áreas rurais, principalm ente em sítios e fazendas. Por volta de 1820, quando as instituições políticas da dem ocracia poliárquica (de homens brancos) já estavam co nso li­ dadas. num a população de m enos de dez m ilhões de pessoas, m ais de nove em cada dez ainda viviam em áreas rurais. Em 1860, nas vésperas da G uerra Civil, quando o país tinha m ais de trinta m i­ lhões de habitantes, oito em dez norte-am ericanos viviam em áreas

Lim ongi, “Political R egim es and Econom ic Growth”, Journal o f Economic Perspectives 7. 3 (verão de 1993), p. 51-70.

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rurais. A A m érica descrita por A lexis de T ocqueville, em A demo­ cracia na América, era agrícola, não industrial. E claro, as em presas econôm icas daquela sociedade agrícola eram principalm ente fa­ zendas e sítios, que pertenciam e eram adm inistrados por agriculto­ res e suas fam ílias. Boa parte do que produziam era usada para seu próprio consum o.

Contudo, essa econom ia era altam ente descentralizada (bem m ais do que se tornaria com a industrialização), dando aos líderes políticos m uito pouco acesso a seus recursos - e criou uma grande classe m édia de agricultores livres. Por isso, era altam ente favorável ao desenvolvim ento democrático. Na visão que Tliom as Jefferson tinha da república, a base necessária para a dem ocracia era uma sociedade agrícola consistindo de agricultores independentes.

Será que as origens pré-industriais de m uitas das m ais antigas dem ocracias nada têm a ver com os países na era pós-industrial? Não. Esse conjunto de experiências reforça um ponto decisivo: seja qual for a atividade dom inante, um a econom ia descentralizada que ajuda a criar uma nação de cidadãos independentes é altam ente fa­ vorável ao desenvolvim ento e à sustentação das instituições dem o­ cráticas.

Há pouco m encionei as “condições raras e passageiras” sob as quais os governos adm inistraram com eficácia o planejam ento central. Além disso, os governos eram dem ocráticos - eram os go ­ vernos da Inglaterra e dos Estados U nidos do período da Prim eira G uerra M undial e, m ais enfaticam ente, durante a Segunda G uerra M undial. N esses casos, o planejam ento e a distribuição de recursos tinham um objetivo claram ente definido, que deveria assegurar a satisfação das necessidades dos m ilitares e do suprim ento de bens e serviços básicos para a população civil. As m etas de guerra foram am plam ente apoiadas. Em bora tenham aparecido alguns m ercados negros, não eram extensos o bastante para reduzir a eficácia do sistem a centralizado para distribuir os recursos e controlar os pre­ ços. Finalm ente, o sistem a foi desm antelado com a chegada da paz. Em conseqüência, os líderes políticos foram privados das oportu­ nidades que teriam com a exploração de seu papel econôm ico do ­ m inante para propósitos políticos.

Se colocam os esses sistem as do tem po da guerra de um lado, econom ias centralm ente dirigidas existiram som ente nos países em

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que os líderes eram fundamentalmente antidemocráticos. Assim, não podemos desemaranhar facilmente as conseqüências não-de m oeráticas da ordem econôm ica das conseqüências não-dem ocráticas das co n ­ vicções dos líderes. Lenin e Stalin eram tão hostis à dem ocracia que, com ou sem um a econom ia centralm ente dirigida, eles teriam im pedido o desenvolvim ento das instituições dem ocráticas. A eco ­ nom ia centralm ente dirigida sim plesm ente tornava m ais fácil sua tarefa, proporcionando-lhes m aiores recursos para im por sua vo n­ tade aos outros.

A rigor, jam ais houve uma experiência histórica que juntasse as instituições dem ocráticas com uma econom ia centralm ente diri­ gida em tem po de paz. De m inha parte, espero que jam ais aconte­ ça. A credito que as prováveis conseqüências sejam totalm ente previsíveis - e são um mau presságio para a dem ocracia.

Não obstante, ainda que o capitalism o de m ercado seja bem m ais favorável às instituições dem ocráticas do que qualquer eco­ nom ia planificada que lenha existido até agora, ele tam bém possui algum as conseqüências profundam ente desfavoráveis. Nós as ex a­ m inarem os 110 próxim o capítulo.

Capítulo 14

Por que o capitalismo de mercado

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