D em ocracia e capitalism o de m ercado são com o duas pessoas ligadas por um casam ento tem pestuoso, assolado p or conflitos - m as que resiste, porque nenhum dos parceiros deseja separar-se do outro. Passando o exem plo para o m undo botânico, os dois existem num a espécie de sim biose antagônica.
Em bora seja um relacionam ento com plicadíssim o, acredito que possam os extrair cinco im portantes conclusões a partir da p ro fusa e sem pre crescente série de experiências. A presentarei duas neste capítulo e as três restantes no próxim o.
1. A democracia poliárquica resistiu apenas nos países com uma economia predominantemente de mercado; jamais resistiu em algum país com a predominância de uma economia que não seja de mercado.
Limitei esta conclusão à dem ocracia poliárquica, mas ela tam bém se aplica m uito bem aos governos populares que surgiram nas cidades-estado da G récia, de Roma e da Itália m edieval, e na evo lução das instituições representativas e no desenvolvim ento da par ticipação do cidadão 110 norte da Europa. Passarei por cima dessa história, parte da qual já encontram os no C apítulo 2, para nos co n centrarm os exclusivam ente nas instituições da m oderna dem ocra cia representativa — 011 seja, a democracia poliárquica.
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Aqui o registro não é nada am bíguo. A dem ocracia poliárquica existia apenas em países com a predom inante econom ia capitalista de m ercado e jamais (ou, no m áxim o, brevem ente) em países onde predom inavam econom ias planificadas. Por que isto acontece? 2. Esta relação estrita existe porque certos aspectos básicos cio capitalismo de mercado o tornam favorável para as instituições democráticas. Inversamente. alguns aspectos de uma economia predominantemente planificada a tornam prejudicial às perspecti
vas democráticas.
Num a econom ia capitalista de m ercado, as entidades econô m icas ou são indivíduos ou em presas (firm as, fazendas e sabe-se lá m ais o quê), que são propriedade privada de indivíduos ou grupos e. na m aior parte, não pertencem ao Estado. O principal objetivo dessas entidades é o ganho econôm ico na form a de salários, lucros, juros e aluguéis ou arrendam entos. Os dirigentes das em presas não têm nenhum a necessidade de lutar por m etas m ais am plas, grandio sas e am bíguas, com o o bem -estar geral ou o bem público - eles podem ser guiados unicam ente por incentivos egoístas. C om o os m ercados abastecem proprietários, dirigentes, trabalhadores e ou tros com boa parte da inform ação decisiva necessária, eles podem tom ar suas decisões sem uma orientação central. (Isto não significa que possam fazê-lo sem as leis e as regulam entações — assunto a que retornarei no próxim o capítulo.)
Ao contrário do que a intuição nos diria, os m ercados servem para coordenar e controlar as decisões das entidades econôm icas. A experiência histórica dem onstra, de m odo bastante conclusivo, que um sistem a em que são tom adas incontáveis decisões econô m icas por inum eráveis atores independentes em com petição, cada um atuando a partir de interesses egoístas m uito restritos e orienta dos pela inform ação fornecida pelo m ercado, produz bens e servi ços de maneira bem mais eficiente do que qualquer outra alternativa conhecida. Mais do que eficiente: com uma regularidade e uma ordem verdadeiram ente espantosas.
C onseqüentem ente, a longo prazo, o capitalism o de m ercado levou ao desenvolvim ento econôm ico - e o desenvolvim ento eco nôm ico é favorável à dem ocracia. Para com eçar, ao reduzir a po-
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í reza intensa e m elhorar os padrões de vida, o desenvolvim ento econôm ico ajuda a reduzir os conflitos sociais e políticos. Além disso, quando surgem grandes conflitos econôm icos, o desenvol- im ento proporciona m ais recursos, que estarão disponíveis para :m povoam ento m utuam ente satisfatório, em que todos ganham i.gum a coisa. (Para usar a linguagem da teoria do jogo, na ausên cia do desenvolvim ento os conflitos econôm icos tornam -se “som a- zero : o que eu ganho, você perde - o que você ganha, eu perco. Assim, a cooperação é inútil.) O desenvolvim ento tam bém pro po r ciona aos indivíduos, aos grupos e ao governo o excedente neces sário para dar apoio à educação e, desse m odo, prom over uma cidadania instruída e educada.
O capitalism o de m ercado tam bém é favorável à dem ocracia por suas conseqüências sociais e políticas. Ele cria um grande es trato interm ediário de proprietários que norm alm ente buscam a educação, a autonom ia, a liberdade pessoal, direitos de proprieda de, a regra da lei e a participação no governo. As classes m édias. : "»mo A ristóteles indicou, são os aliados naturais das idéias e das instituições democráticas. Por fim. talvez o mais importante: descen tralizando muitas decisões econômicas a indivíduos e a firmas relati vamente independentes, uma economia capitalista de m ercado evita a necessidade de um governo central forte ou mesmo autoritário.
U m a econom ia planificada pode existir onde os recursos são escassos e as decisões econôm icas poucas e óbvias. Em um a socie dade mais complexa, é necessário um substituto para a coordenação e co ntro le pro p o rcio n ad o s pelos m ercados. O único su b stitu to viável é o governo. Seja qual for a propriedade legal form al de em presas em uma econom ia planificada, suas decisões são efeti vam ente tom adas e controladas pelo governo. Sem a coordenação do m ercado, torna-se naturalm ente tarefa do governo a distribuição de todos os recursos escassos - capital, trabalho, m aquinário, ter ras. construções, bens de consum o, residências e os dem ais. Para lazer isso, o governo precisa ter um plano central detalhado de grande alcance e. portanto, funcionários do governo encarregados de fazer, executar e verificar o cum prim ento desse plano. São tare fas prodigiosas que exigem trem endas quantidades de inform ação confiável. Para conquistar a subm issão a suas diretivas, os funcioná rios do governo devem descobrir e aplicar incentivos adequados - que podem ir de recom pensas legais (com o salários e prêm ios) ou ile
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gais (por exem plo, o suborno), a coerção e a punição (com o a con denação por “crim es econôm icos”). A não ser sob condições raras e passageiras, que abordarei em seguida, nenhum governo m ostrou-se à altura dessa tarefa.
E ntretanto, as ineficiências de um a econom ia de planejam ento central não são o mais prejudicial para as perspectivas dem ocráti cas - o pior são as conseqüências sociais e políticas da econom ia. Uma econom ia centralm ente planejada deixa os recursos de toda a econom ia à disposição de líderes do governo. Para im aginar as prováveis conseqüências desse fantástico legado político, devem os lembrar o aforismo: “O poder corrompe e o poder absoluto corrompe de m aneira absoluta” . Uma econom ia centralm ente planejada lança um convite direto aos líderes do governo, escrito em negrito: V ocê
é livre para usar todos esses recursos econôm icos para con soli dar e m anter o poder que tem em suas mãos!
Os líderes políticos teriam de ser dotados de poderes sobre hum anos para resistir a essa tentação. M as o triste registro da histó ria é claro: todos os governantes que tiveram acesso aos im ensos recursos proporcionados por um a econom ia de planejam ento cen tral confirm aram a sabedoria do aforism o. Na verdade, os líderes podem usar seu despotism o para bons ou m aus fins. A história re gistra um pouco de cada um desses tipos de fins - em bora, penso eu. de m odo geral os déspotas tenham feito bastante m ais mal do que bem . De qualquer m aneira, econom ias de planejam ento central sem pre estiveram estreitam ente associadas a regim es autoritários.
A lgum as ressalvas
A inda que essas duas conclusões sejam válidas, elas precisam de uma série de ressalvas. O desenvolvim ento econôm ico não é exclusivo de países dem ocráticos, nem a estagnação econôm ica é exclusiva das nações não-dem ocráticas. Na verdade, parece não haver nenhum a correlação entre desenvolvim ento econôm ico e o tipo de governo ou regim e de um p a ís.1
1 Para obter in d ício s im p ression an tes sobre este ponto, veja Bruce R ussett, “A Neo-Kantian Perspective: D em ocracv. Interdependence. and Inlernational Organizations in Building Security Commimities". em Emanuel Adler e Michael Barnett. eds.. Security Commwiities in Compara tive and Histórica/ Perspective. Cambridge, Cambridge University Press. 1998: e Adam Przeworski e Fernando
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A lém disso, em bora a dem ocracia só tenha existido em países com um a eco n o m ia ca p italista de m ercado , o ca p ita lism o de m ercado existiu em países n ão -dem o crático s. Em m u ito s deles (especialm ente Taiw an e a Coréia do Sul), os fatores anteriorm ente mencionados, que tendem a acom panhar o desenvolvim ento econô mico e, por sua vez. uma econom ia de mercado, ajudaram a produzir a dem ocratização. Nesses dois países em especial, os líderes auto ritários, cujas políticas ajudaram a estim ular o desenvolvim ento de uma boa economia de mercado, indústrias de exportação, desenvol vim ento econôm ico e um a grande classe m édia educada, inadverti dam ente plantaram as sem entes de sua própria destruição. A ssim , em bora o capitalism o de m ercado e o desenvolvim ento econôm ico sejam favoráveis à dem ocracia, a longo prazo eles poderão ser bem m enos favoráveis e até inteiram ente desfavoráveis para os regim es não-dem ocráticos. C on seq ü en tem en te, o d esfech o de um im pressionante dram a histórico a se desenrolar no século XXI revela rá se o regim e não-dem ocrático da China poderá suportar as forças dem ocratizantes geradas pelo capitalism o de m ercado.
Uma econom ia capitalista de m ercado não precisa existir ape nas em sua conhecida form a urbano-industrial ou pós-industrial do século XX. Tam bém pode ser - pelo menos, já foi - agrícola. V im os no C apítulo 2 que. durante o século XIX. as instituições d em ocráti cas básicas (com a exceção do sufrágio fem inino) apareceram em diversos países predom inantem ente agrícolas: Estados U nidos, C a nadá, Nova Zelândia e A ustrália. Em 1790. prim eiro ano da repú blica norte-am ericana sob sua nova (ainda em vigor) C onstituição, de uma população total de pouco m enos de quatro m ilhões de p es soas, apenas 5% viviam em lugares com m ais de 2.500 habitantes - os 95% restantes viviam em áreas rurais, principalm ente em sítios e fazendas. Por volta de 1820, quando as instituições políticas da dem ocracia poliárquica (de homens brancos) já estavam co nso li dadas. num a população de m enos de dez m ilhões de pessoas, m ais de nove em cada dez ainda viviam em áreas rurais. Em 1860, nas vésperas da G uerra Civil, quando o país tinha m ais de trinta m i lhões de habitantes, oito em dez norte-am ericanos viviam em áreas
Lim ongi, “Political R egim es and Econom ic Growth”, Journal o f Economic Perspectives 7. 3 (verão de 1993), p. 51-70.
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rurais. A A m érica descrita por A lexis de T ocqueville, em A demo cracia na América, era agrícola, não industrial. E claro, as em presas econôm icas daquela sociedade agrícola eram principalm ente fa zendas e sítios, que pertenciam e eram adm inistrados por agriculto res e suas fam ílias. Boa parte do que produziam era usada para seu próprio consum o.
Contudo, essa econom ia era altam ente descentralizada (bem m ais do que se tornaria com a industrialização), dando aos líderes políticos m uito pouco acesso a seus recursos - e criou uma grande classe m édia de agricultores livres. Por isso, era altam ente favorável ao desenvolvim ento democrático. Na visão que Tliom as Jefferson tinha da república, a base necessária para a dem ocracia era uma sociedade agrícola consistindo de agricultores independentes.
Será que as origens pré-industriais de m uitas das m ais antigas dem ocracias nada têm a ver com os países na era pós-industrial? Não. Esse conjunto de experiências reforça um ponto decisivo: seja qual for a atividade dom inante, um a econom ia descentralizada que ajuda a criar uma nação de cidadãos independentes é altam ente fa vorável ao desenvolvim ento e à sustentação das instituições dem o cráticas.
Há pouco m encionei as “condições raras e passageiras” sob as quais os governos adm inistraram com eficácia o planejam ento central. Além disso, os governos eram dem ocráticos - eram os go vernos da Inglaterra e dos Estados U nidos do período da Prim eira G uerra M undial e, m ais enfaticam ente, durante a Segunda G uerra M undial. N esses casos, o planejam ento e a distribuição de recursos tinham um objetivo claram ente definido, que deveria assegurar a satisfação das necessidades dos m ilitares e do suprim ento de bens e serviços básicos para a população civil. As m etas de guerra foram am plam ente apoiadas. Em bora tenham aparecido alguns m ercados negros, não eram extensos o bastante para reduzir a eficácia do sistem a centralizado para distribuir os recursos e controlar os pre ços. Finalm ente, o sistem a foi desm antelado com a chegada da paz. Em conseqüência, os líderes políticos foram privados das oportu nidades que teriam com a exploração de seu papel econôm ico do m inante para propósitos políticos.
Se colocam os esses sistem as do tem po da guerra de um lado, econom ias centralm ente dirigidas existiram som ente nos países em
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que os líderes eram fundamentalmente antidemocráticos. Assim, não podemos desemaranhar facilmente as conseqüências não-de m oeráticas da ordem econôm ica das conseqüências não-dem ocráticas das co n vicções dos líderes. Lenin e Stalin eram tão hostis à dem ocracia que, com ou sem um a econom ia centralm ente dirigida, eles teriam im pedido o desenvolvim ento das instituições dem ocráticas. A eco nom ia centralm ente dirigida sim plesm ente tornava m ais fácil sua tarefa, proporcionando-lhes m aiores recursos para im por sua vo n tade aos outros.
A rigor, jam ais houve uma experiência histórica que juntasse as instituições dem ocráticas com uma econom ia centralm ente diri gida em tem po de paz. De m inha parte, espero que jam ais aconte ça. A credito que as prováveis conseqüências sejam totalm ente previsíveis - e são um mau presságio para a dem ocracia.
Não obstante, ainda que o capitalism o de m ercado seja bem m ais favorável às instituições dem ocráticas do que qualquer eco nom ia planificada que lenha existido até agora, ele tam bém possui algum as conseqüências profundam ente desfavoráveis. Nós as ex a m inarem os 110 próxim o capítulo.