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Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça

3.8 Análise das decisões sobre a função social da propriedade urbana

3.8.2 Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou pouco o tema função social da propriedade urbana, proferindo apenas algumas decisões. Em 2005, a Egrégia Corte entendeu que o abandono do bem faz com que pereça o direito de propriedade, uma vez que o direito de propriedade não é absoluto, devendo adequar-se à nova realidade social e urbanística:

CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ. I. O direito de propriedade assegurado no Art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística,

consubstanciando a hipótese prevista nos Arts. 589 c/c 77 e 78, da mesma lei substantiva.

II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ.

III. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp 75659 / SP, Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ 29/08/2005 p. 344)

Em 2010, entendeu a Egrégia Corte que as restrições urbanísticas são obrigações

propter rem, e essas restrições devem estar em harmonia com a Constituição Federal, quando

decidiu no caso do Loteamento City Lapa que realizou restrições privadas que violaram a legislação municipal, a Constituição Municipal e a Federal, entendendo o Tribunal que prevalece a lei sobre o negócio jurídico, decidindo que as restrições, naquele caso, eram abuso de direito, ofendendo o interesse social e violando a função social da propriedade urbana:

PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO, AMBIENTAL E URBANÍSTICO. LOTEAMENTO CITY LAPA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. RESTRIÇÕES URBANÍSTICO-AMBIENTAIS CONVENCIONAIS ESTABELECIDAS PELO LOTEADOR. ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL EM FAVOR DE TERCEIRO, DE NATUREZA PROPTER REM. DESCUMPRIMENTO. PRÉDIO DE NOVE ANDARES, EM ÁREA ONDE SÓ SE ADMITEM RESIDÊNCIAS UNI FAMILIARES. PEDIDO DE DEMOLIÇÃO. VÍCIO DE LEGALIDADE E DE LEGITIMIDADE DO ALVARÁ. IUS VARIANDI ATRIBUÍDO AO MUNICÍPIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA NÃO- REGRESSÃO (OU DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO) URBANÍSTICO- AMBIENTAL. VIOLAÇÃO AO ART. 26, VII, DA LEI 6.766/79 (LEI LEHMANN), AO ART. 572 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 (ART. 1.299 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002) E À LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. ART. 334, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. VOTO-MÉRITO.

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3. O interesse público nas restrições urbanístico-ambientais em loteamentos decorre do conteúdo dos ônus enumerados, mas igualmente do licenciamento do empreendimento pela própria Administração e da extensão de seus efeitos, que iluminam simultaneamente os vizinhos internos (= coletividade menor) e os externos (= coletividade maior), de hoje como do amanhã.

4. As restrições urbanístico-ambientais, ao denotarem, a um só tempo, interesse público e interesse privado, atrelados simbioticamente, incorporam uma natureza

propter rem no que se refere à sua relação com o imóvel e aos seus efeitos sobre os

não-contratantes, uma verdadeira estipulação em favor de terceiros (individual e coletivamente falando), sem que os proprietários-sucessores e o próprio empreendedor imobiliário original percam o poder e a legitimidade de fazer respeitá- las. Nelas, a sábia e prudente voz contratual do passado é preservada, em genuíno consenso intergeracional que antecipa os valores urbanístico-ambientais do presente e veicula as expectativas imaginadas das gerações vindouras.

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6. Em decorrência do princípio da prevalência da lei sobre o negócio jurídico privado, as restrições urbanístico-ambientais convencionais devem estar em harmonia e ser compatíveis com os valores e exigências da Constituição Federal, da Constituição Estadual e das normas infraconstitucionais que regem o uso e a ocupação do solo urbano.

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12. Além do abuso de direito, de ofensa ao interesse público ou inconciliabilidade com a função social da propriedade, outros motivos determinantes, sindicáveis judicialmente, para o afastamento, pela via legislativa, das restrições urbanístico- ambientais podem ser enumerados: a) a transformação do próprio caráter do direito de propriedade em questão (quando o legislador, p. ex., por razões de ordem pública, proíbe certos tipos

de restrições), b) a modificação irrefutável, profunda e irreversível do aspecto ou destinação do bairro ou região; c) o obsoletismo valorativo ou técnico (surgimento

de novos valores sociais ou de capacidade tecnológica que desconstitui a necessidade e a legitimidade do ônus), e d) a perda do benefício prático ou substantivo da restrição.

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19. Recurso Especial não provido. (STJ, REsp 302906 / SP, Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 01/12/2010)

Nesse caso, o STJ entendeu que existe um ônus (obrigação propter rem) nas restrições urbanístico-ambientais que decorrem do interesse público, como também que as restrições convencionais não podem ir de encontro com a Constituição Federal, Constituição Estadual e as Leis Ordinárias.

Posicionou-se também o STJ pela possibilidade da revogação de cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade imposta pelo testamento quando o bem não atende à função social da propriedade:

DIREITO DAS SUCESSÕES. REVOGAÇÃO DE CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE IMPOSTAS POR TESTAMENTO. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DE NECESSIDADE FINANCEIRA. FLEXIBILIZAÇÃO DA VEDAÇÃO CONTIDA NO ART. 1.676 DO CC/16. POSSIBILIDADE.

1. Se a alienação do imóvel gravado permite uma melhor adequação do patrimônio à sua função social e possibilita ao herdeiro sua sobrevivência e bem-estar, a comercialização do bem vai ao encontro do propósito do testador, que era, em princípio, o de amparar adequadamente o beneficiário das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.

2. A vedação contida no Art. 1.676 do CC/16 poderá ser amenizada sempre que for verificada a presença de situação excepcional de necessidade financeira, apta a recomendar a liberação das restrições instituídas pelo testador.

3. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ, REsp 1158679 / MG, Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 15/04/2011)

Assim, entendeu a Corte que é possível alienar um imóvel gravado para que ele se adeque à função social, possibilitando a sobrevivência do herdeiro, situação excepcional de necessidade financeira, que possibilitam a liberação do bem.

Em outra decisão, o STJ firmou entendimento que é possível a extinção do usufruto quando configurado o descumprimento da função social, ou seja, pelo não uso ou pela não fruição do bem sobre o qual ele recai, uma vez que a usufrutuária não adotou uma postura ativa:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXTINÇÃO DE USUFRUTO. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. NÃO USO OU NÃO FRUIÇÃO DO BEM GRAVADO COM USUFRUTO. PRAZO EXTINTIVO. INEXISTÊNCIA. INTERPRETAÇÃO POR ANALOGIA. IMPOSSIBILIDADE. EXIGÊNCIA DE CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

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4- O usufruto encerra relação jurídica em que o usufrutuário - titular exclusivo dos poderes de uso e fruição - está obrigado a exercer seu direito em consonância com a finalidade social a que se destina a propriedade. Inteligência dos Arts. 1.228, § 1º, do CC e 5º, XXIII, da Constituição.

5- No intuito de assegurar o cumprimento da função social da propriedade gravada, o Código Civil, sem prever prazo determinado, autoriza a extinção do usufruto pelo não uso ou pela não fruição do bem sobre o qual ele recai.

6- A aplicação de prazos de natureza prescricional não é cabível quando a demanda não tem por objetivo compelir a parte adversa ao cumprimento de uma prestação. 7- Tratando-se de usufruto, tampouco é admissível a incidência, por analogia, do prazo extintivo das servidões, pois a circunstância que é comum a ambos os institutos - extinção pelo não uso - não decorre, em cada hipótese, dos mesmos fundamentos.

8- A extinção do usufruto pelo não uso pode ser levada a efeito sempre que, diante das circunstâncias da hipótese concreta, se constatar o não atendimento da finalidade social do bem gravado.

9- No particular, as premissas fáticas assentadas pelo acórdão recorrido revelam, de forma cristalina, que a finalidade social do imóvel gravado pelo usufruto não estava sendo atendida pela usufrutuária, que tinha o dever de adotar uma postura ativa de exercício de seu direito.

10- Recurso especial não provido. (STJ, REsp 1179259 / MG, Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 24/05/2013)

Assim, é possível extinguir o usufruto quando de comprovar o não atendimento à finalidade social do bem gravado, ou seja, quando não adota uma postura ativa de exercício do seu direito sobre a propriedade.

Pelo exposto, pode-se concluir que apesar do número pequeno de decisões, o Superior Tribunal de Justiça aplicou a função social da propriedade urbana em diferentes situações, entendendo que a propriedade não é absoluta e que as restrições sobre ela são obrigações propter rem e que é possível a modificação de um cláusula de um negócio jurídico para se atender à função social.