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CAPÍTULO III: REPRESENTAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DOCENTES NAS

3.2 POSICIONAMENTOS DAS PROFESSORAS SOBRE O INDIVÍDUO SURDO

Uma das principais questões colocadas pelas professoras é a relação da surdez com a deficiência intelectual. Algumas das professoras fazem a distinção entre aluno que possui somente a surdez daquele que possui a surdez associada a uma deficiência cognitiva. O que implica uma comparação entre surdos e deficientes intelectuais ou entre surdos e pessoas com múltiplas deficiências. Os discursos dizem aproximadamente o seguinte: se for só surdo não tem problemas de aprendizagem, se não aprender é porque apresenta outra deficiência associada, como a cognitiva.

A professora Ruth (na transcrição, RU) refere-se à deficiência múltipla – no caso aqui, associação da surdez com a deficiência cognitiva – estabelecendo uma comparação entre as categorias de deficientes com maior possibilidade de aprendizagem e a com maior dificuldade:

PE: Você acha que a surdez é um impedimento? Pra, pro desenvolvimento profissional, intelectual da pessoa? (t. 87)

RU: Olha pra mim eu, eu num acho/ por quê? [...] o aluno surdo ele ele já tá trabalhando em empresas, eles já tão fazendo faculdade, né? Então isso a surdez com certeza não vai impedi-los dele progredir na vida, né? E ser um, um cidadão critico/ agora eu penso dessa forma também: o aluno somente com a surdez, com outros comprometimentos, né? Mental, eu eu tenho ainda as minhas duvidas, né? Ainda não é:: ainda não vi assim um, um, um doente mental, com paralisia sei lá é:: em universidade, trabalhando, né? E eu acho que se torna mais difícil, mas esse é:: o aluno que tem a deficiência auditiva, com certeza ele tem, tem potencial e ele tem condições sim de ter um bom aprendizado (RUTH, t. 88).

O argumento subjacente é o de que a surdez poderia ser pensada em uma escala de aprendizagem: em um ponto alto desta escala estaria o indivíduo normal que não teria nenhum problema de aprendizado, e gradativamente, nas sequências intervalares inferiores estariam os surdos com relativa possibilidade de aprender; em intervalos ainda mais inferiores estariam os deficientes intelectuais com menos possibilidades, até chegar ao último nível estariam os surdos com associação de uma deficiência intelectual, com a representação de que “seria mais difícil educar”. O discurso pode recair no múltiplo deficiente, como no caso do relato da professora Ruth, mas pode recair no deficiente intelectual ou no cego ou em outra deficiência, atribuindo a esta a pior das deficiências.

O problema no estabelecimento desta escala de aprendizagem está na comparação entre pessoas normais e pessoas deficientes e entre pessoas com diversas deficiências para escolher a melhor e colocar em uma subcategorização a pior. Esta escala colocaria como a pior deficiência a que ocorre na mente e na audição. Esse tipo de discurso, que faz a

comparação entre corpos para estabelecer o melhor e o pior é normalizadora. É um discurso que exclui, que segrega um elemento – caracterizando-o como inferior, para viver à margem da sociedade.

Para a comunidade surda organizada, o critério de ter uma outra deficiência associada à surdez, não entra na caracterização identitária surda. Para Perlin (1998), o critério seria o de fazer uso da experiência visual, ou seja, utilizar a Língua de Sinais. A identidade surda propriamente dita está no surdo militante, que "recria a cultura visual, reclamando à história a alteridade surda", que é diferente da identidade híbrida, dos que "nasceram ouvintes e com o tempo se tornaram surdas" (PERLIN, 1998, p. 63). Os surdos, na identidade híbrida, segundo a autora, utilizam os sinais em uma estrutura da Língua Portuguesa. Em outra identidade, a em transição, o surdo esta 'de passagem' para a primeira identidade, a Identidade propriamente dita. Outro tipo citado pela autora é o da identidade incompleta, caracterizada pelos surdos que vivem sob uma ideologia ouvintista, uma vez que existiriam surdos que negam os fundamentos de uma comunidade organizada, quais sejam a de defesa da cultura surda visual. E finalmente, a identidade flutuante, que se caracteriza também pelo fato do surdo "desprezar a cultura surda" (PERLIN, 1998, p. 65).

Perlin (2001, p. 1) assim caracteriza a identidade surda:

1. Possuem a experiência visual que determina formas de comportamento, cultura, língua, etc.

2. Carregam consigo a Língua de Sinais. Usam sinais sempre, pois é sua forma de expressão. Eles têm um costume bastante presente que os diferencia dos ouvintes e que caracteriza a diferença surda: a captação da mensagem é visual e não auditiva o envio de mensagens não usa o aparelho fonador, usa as mãos.

3. Aceitam-se como surdos, sabem que são surdos e assumem um comportamento de pessoas surdas. Entram facilmente na política com identidade surda, onde impera a diferença: necessidade de intérpretes, de educação diferenciada, de Língua de Sinais, etc..

4. Passam aos outros surdos sua cultura, sua forma de ser diferente; 5. Assumem uma posição de resistência.

6. Assumem uma posição que avança em busca de delineação da identidade cultural 7. Assimilam pouco, ou não conseguem assimilar a ordem da língua falada, tem dificuldade de entendê-la;

8. A escrita obedece à estrutura da Língua de Sinais, pode igualar-se a língua escrita, com reservas.

9. Tem suas comunidades, associações, e/ou órgãos representativos e compartilham entre si suas dificuldades, aspirações, utopias.

10. Usam tecnologia diferenciada: legenda e sinais na TV, telefone especial, campainha luminosa.

11. Tem uma diferente forma de relacionar-se com as pessoas e mesmo com animais.

Como se vê há a tentativa de especificar características distintivas em função de uma separação de nível entre os usuários plenos da cultura surda e os não usuários plenos da Língua de Sinais. Os primeiros, supostamente, seriam os mais politizados, os segundos, estariam em processo de hibridismo, em transição, flutuando entre o uso da Libras ou o uso da Língua Portuguesa oral. Enfim, entre aqueles que são mais e aqueles que são menos “autenticamente surdos", o que poderia reduzir os participantes da “comunidade surda” ao surdo profundo, nascido surdo, ou filho de pais surdos, ou ainda, que não oralize.

Thoma (2004, p. 66) coloca este problema nos termos da discussão da questão multicultural no mundo contemporâneo, em face ao hibridismo. Segundo essa autora:

Vivemos hoje a impossibilidade de narrar as alteridades de forma fixa e imutável, de pensar os sujeitos como membros plenos de uma cultura, de nos situarmos em uma única identidade, pois, embora possamos compartilhar alguns traços, diferimos substancialmente em outros. Assim, o que significa, entre outras condições, ser surdo/a?

Esta descrição é tocada superficialmente pelas professoras. Por exemplo, a professora Ivana desloca do problema da deficiência do indivíduo para centrá-lo na interação. Tal tese pode ser aproximada dos estudos sociais da deficiência, segundo os quais a dificuldade ou problema não estaria no indivíduo, mas na "dificuldade de comunicação", na dificuldade de ser entendido, pelo ouvinte:

PE: Você acha que a surdez ela é um impedimento para o desenvolvimento cognitivo do surdo ou até pro para obter um trabalho? Você acha que a surdez é um problema? (t. 49)

IV: Não a surdez. Mais a dificuldade de comunicação sim. A surdez/ quando você ver aqui mesmo a gente tem casos de pessoas muito bem sucedidas surdas. Isso não/ move/ como um monte de gente tem um monte de defeito que tenta camuflar o máximo possível. Só que quando essa surdez implica dificuldade de comunicação, dificuldade de ser compreendido pelo outro, ai ocasiona um problema, né? Porque ai as pessoas/ eles sofrem preconceito/ não é preconceito, mas eles não vão ter acesso aquilo. Mas eu acho que a partir do momento que eles consigam se comunicar e que consigam interagir, não vejo, não vejo problema. (IVANA, t. 50).

Assim, problema estaria na dificuldade de ser entendido, não no indivíduo em si. O problema não seria do deficiente, mas do ouvinte que não o entende, que não faz nada ou não quer se comunicar com o surdo, agindo com preconceito.

A professora Ray informa que para a interação entre surdo e ouvinte é necessária a presença de um intérprete.

PE: é:: na, na tua questão do/ do normal, né? O que/ que tu entenderia sobre essa questão do ouvir como normalidade? (t. 71)

RA: é:: é complicado, né? É complicado porque é:: ele/ eles/ ele/ ele depende de uma pessoa pra fazer um intercâmbio pra eles e:: a partir do momento lógico que ele não ouve, como ele vai ter a compreensão e pra ele se torna muito difícil, pro surdo se torna muito difícil, a compreensão sempre, sem que não tenha alguém pra fazer essa/ essa transmissão pra ele, então é:: é:: muito difícil essa na visão assim/ eu vejo que o surdo/ que o surdo ele precisa sempre do/ do ouvinte sempre do ouvinte ou seja ele o, o ou seja o ouvinte que entenda a língua dele, ou seja, o ouvinte que não entenda que comunique com ele de uma outra forma, mas ele sempre precisa dessa de uma pessoa ouvinte pra/ pra/ pra dá um apoio pra ele (RAY, t. 72).

A particularidade é de estabelecer a comunicação da pessoa surda com a pessoa ouvinte, nas mais diversas situações, geralmente no mesmo país que residem as duas pessoas. Não se trata de duas nacionalidades distintas, nem de dois estrangeiros, a não ser que se queira dizer que a comunidade surda seja uma nação distinta da brasileira. “Neste sentido, os Surdos criaram seu próprio "nacionalismo" como uma resistência a cultura do audismo”38 (DAVIS, 1995d, p. 78-9).

O pressuposto do nacionalismo surdo não se sustenta, pois não apresenta outras características distintivas, tais como território, religião, alimentação, vestimenta e uma narrativa histórica independente. Os surdos brasileiros, por exemplo, podem ser pensados como tendo diferenças, mas também com características semelhantes no uso de artefatos comuns que constituem a nação brasileira.

A professora Luna considera que a sociedade é excludente, vê o surdo como doente, o equivalente mais próximo para substituir anormal. Na sociedade, está incluída a família que é responsabilizada pela professora por também ver o surdo como incapaz, como pessoa com déficit cognitivo. Volta à questão de associar surdez e deficiência cognitiva, desmerecendo a última e indicando que se o surdo tiver apoio educacional e familiar poderá entrar no mercado de trabalho, ser incluído.

38

“In this sense, the Deaf have created their own 'nationalism' as a resistance to audist culture” (DAVIS, 1995d, p. 78-9).

PE: Então você acha que vai depender do profissional, porque digamos assim, aqui na escola ele é visto/ as dificuldades não são acentuadas, mas lá fora não (t. 63). LU: Olha, lá fora a gente percebe assim que a surdez, ela ainda tem assim uma visão

voltada ainda pras pessoas que:: que não são diferentes. Eles são doentes, pessoas que não conseguem desenvolver, pessoas que não pode/ não conseguem se integrar numa sociedade, né, ele ainda tem essa visão assim mui::to fechada, né, muito clínico ainda. A gente percebe que hoje atuando na educação de surdos, a gente percebe que é completamente diferente, que ele consegue desenvolver, ele consegue desenvolver outras potencialidades, ele consegue participar da sociedade, ele consegue ser integrado no no mercado do trabalho, mas pra isso ele tem que ser bem trabalhado na escola, pela família que é um ponto principal. Eu acho que a família ainda é o/ a maior base que eles têm que ter pra essa sua formação, sua qualificação, porque eu tenho presenciado muitos alunos surdos que conseguiram entrar no mercado de trabalho, eles estão perdendo rápido os seus empregos, por falta às vezes até de compromisso por cumprir seu horário, porque às vezes a família acha que ele não é capaz, ai não ajuda, e age como se esti/ realmente ele fosse pessoas com déficits cognitivos ou coisa muito mais (LUNA, t. 64).

Essa discussão que atribui à sociedade a responsabilidade pela deficiência, porque vê as pessoas deficientes como doentes é próxima do modelo social da deficiência. Para esse modelo é preciso remover barreiras, estabelecer legislação antidiscriminação para que o deficiente possa ter liberdade de ação, de escolha e de direitos. Assim, é a sociedade que incapacita, que cria e impõe a deficiência, que precisa ser modificada para as especifícidades das pessoas, e não o contrário; ela precisaria deixar de lado a normalização do corpo e ser mais inclusiva.

Na perspectiva da abordagem social, suprimi-se dos sujeitos surdos a responsabilidade por seus fracassos escolares. Os executores de metodologias de aquisição da oralidade responsabilizados por não utilizar a Libras no ensino. Os ouvintes passam a ser os opressores dos surdos por não propiciarem um ensino por meio da Libras.

Um resumo esquemático dessa discussão está no quadro a seguir. O mesmo foi elaborado com base na pergunta geradora “Qual a influencia da surdez no desenvolvimento intelectual e profissional da pessoa?”:

QUADRO 4:POSIÇÃO DAS PROFESSORAS SOBRE A IDENTIDADE SURDA

Discursos capacitistas Generalização Ideológica Alvo (pessoa deficiente) [...] um doente mental, com paralisia sei

lá é:: [...] E eu acho que se torna mais difícil, mas esse é:: o aluno que tem a deficiência auditiva, com certeza ele tem, tem potencial e ele tem condições sim de ter um bom aprendizado (RUTH, t. 88).

[...] às vezes a família acha que ele não é capaz, ai não ajuda, e age como se esti/ realmente ele fosse pessoas com deficits cognitivos ou coisa muito mais (LUNA, t. 64).

• Comparar os que apresentam somente a surdez e os que apresentam a surdez associada com a deficiência cognitiva.

• Supor que a pessoa com deficiência auditiva tem também deficiência intelectual.

É feita uma comparação para indicar os sujeitos que aprendem e os que não aprendem.

Fonte: elaboração própria

3.3 REPRESENTAÇÕES DAS MUDANÇAS OCORRIDAS NA EDUCAÇÃO DE