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Possibilidade de manifestação, nos recursos selecionados, daqueles

CAPÍTULO 1 – ANÁLISE POR AMOSTRAGEM DA REPERCUSSÃO GERAL

1.2 O PROCEDIMENTO DA ANÁLISE “POR AMOSTRAGEM” DA

1.2.6 Possibilidade de manifestação, nos recursos selecionados, daqueles

É ínsito à vida em sociedade que aqueles que detêm o poder tomem soluções coletivas para resolver problemas coletivos. A legitimação dessas decisões, em sendo democrática a forma de governo77, advém da participação popular, direta ou indireta, na formação dessa vontade que rege o coletivo. Certamente vantajosas do ponto de vista social, as decisões “coletivizadas” têm o inconveniente de desconsiderar as realidades individuais que, muitas vezes, não se acoplam bem à solução-padrão.

Essa desvantagem, porém, é inafastável em qualquer democracia, mas justifica-se pelo atingimento do bem comum em detrimento de algumas realidades individuais, desde que respeitadas ao menos duas premissas: (i) a legitimação daquelas decisões a partir da participação da vontade popular em sua formação78; (ii) a necessidade de que a sociedade, por meio do Estado, compense os eventuais danos causados a alguns indivíduos em prol do bem de todos. É que, se é certo que no atual modelo constitucional de Estado, hoje prevalente nas democracias ocidentais, o conceito de igualdade é o de “igualdade material”, então não se pode admitir a perturbação dessa equalização dos indivíduos, fato este que certamente ocorrerá se alguns tiverem de ser imolados em benefício de todos sem qualquer contrapartida. Não é outro o fundamento da regra segundo a qual o Estado responde objetivamente pelos danos causados aos particulares pelos seus agentes79. É natural que os flagelos impostos a determinados particulares pela atuação do Estado sejam compensados pela própria sociedade, atribuindo-se ao

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“A democracia, segundo Aristóteles, é forma de governo”. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 250.

78 “O princípio democrático outra cousa não é, do ponto de vista político, senão a ingerência dos governados na obra do governo ou a organização de um sufrágio que faça essa ingerência mediante canais representativos”. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 263.

79 Constituição Federal, art. 37, § 6º.

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

erário público, o pagamento de indenizações que visem à recomposição do equilíbrio perdido80.

O tema é sedutor e sua transposição para a atividade jurisdicional é talvez o canto de sereia que motivou esse trabalho.

O atual “modelo constitucional de processo” é, sem dúvida, democrático. E a democracia aí exercida é “democracia direta”. A decisão estatal parte aqui do juiz e as partes participam diretamente da formação dessa vontade por meio da prática dos mais diversos atos processuais. O princípio do contraditório, visto aqui como “participação das partes e do juiz no processo”81, é o forte guardião desse “ser” tão sensível a intempéries, chamado “democracia”82.

O regime jurídico do processo atual (o nominado devido processo legal83) garante bem o contraditório e, consequentemente, o princípio democrático, na jurisdição tradicional84. Todavia, objetivados os feitos para que recebam solução idêntica a partir de decisões-paradigma, constrói-se um “muro de Berlim” que precisa

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“No caso de comportamentos lícitos, assim como na hipótese de danos ligados a situação criada pelo poder público – mesmo que não seja o Estado o próprio autor do ato danoso -, entendemos que o fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseguinte, seu fundamento é o princípio da igualdade, noção básica do Estado de Direito [grifos nossos]”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 849.

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“A garantia do contraditório, imposta pela Constituição com relação a todo e qualquer processo - jurisdicional ou não (art. 5º, inc. LV) – significa em primeiro lugar que a lei deve instituir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve franquear-lhes esses meios. Significa também que o próprio juiz deve participar da preparação do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório. A garantia deste resolve-se, portanto, em um direito das partes e uma série de deveres do juiz. É do passado a afirmação do contraditório exclusivamente como abertura para as partes, desconsiderada a participação do juiz.” DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civi. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. I. p. 220.

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“O contraditório é a expressão processual do princípio político da participação democrática, que hoje rege a relação entre o Estado e os cidadãos na Democracia contemporânea.” GRECCO, Leonardo. Instituições de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. I. p. 539.

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“Devido processo legal”, expressão insculpida no art. 5º LIV da Constituição Federal, é princípio de difícil conceituação. Aqui a ele nos referimos como síntese de todos os valores e demais princípios que o regime jurídico processual atual deve respeitar, dando aí especial relevo ao princípio democrático. Na linha do que afirma Cândido Rangel Dinamarco: “A expressa garantia do due processo of Law, contida no inc. LIV do art. 5º da Constituição Federal, tem o significado sistemático de fechar o círculo das garantias e exigências constitucionais relativas ao processo mediante uma fórmula sintética destinada a afirmar a indispensabilidade de todas e reafirmar a autoridade de cada uma. Esse enunciado explícito vale ainda como uma norma de encerramento portadora de outras exigências não tipificadas em fórmulas mas igualmente associadas à idéia democrática que deve

prevalecer na ordem processual [grifos nossos]. (Instituições de direito processual civil., p. 250.)

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“Contraditório, vimos, é diálogo, é cooperação; é participação também no plano do processo. Contraditório é realização concreta, também em juízo¸ das opções políticas do legislador brasileiro sobre o modelo de Estado adotado pela Constituição Brasileira. Contraditório é a forma pela qual se efetivam os princípios democráticos da República Brasileira, que viabiliza ampla participação no exercício das funções estatais [grifos nossos]”. BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 78.

ser derrubado para que o “déficit” democrático gerado por tal objetivação não conspurque esse novo modelo que tem lá suas vantagens.

O legislador parece que esteve atento ao problema. Com efeito, dispõe o art. 543-A, § 6º, que o “relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. A natureza dessa manifestação e quais os seus limites são as perguntas a serem respondidas para se saber se o dispositivo tem vigor suficiente para vazar aquele nefasto “muro”.

A “objetivação do processo” é fenômeno que padece de dificuldades parecidas com aquelas enfrentadas pela “jurisdição constitucional”. O déficit democrático ali é também bastante evidente e vem sendo bradado pela doutrina em diversas partes do mundo.

A terapêutica escolhida para aliviar os danos causados por tal déficit tem sido a da “abertura do procedimento”, permitindo-se a manifestação de quem tenha “representatividade adequada”. É a figura do amicus curiae. É assim no regime jurídico pátrio engendrado para nossa “jurisdição constitucional”85.

Não temos dúvida de que essa foi a inspiração para a elaboração do referido § 6º do art. 543-A do CPC e de outros dispositivos envolvidos em diversos casos de “objetivação do processo”, que serão vistos ao longo deste trabalho.

Tanto na jurisdição constitucional, quanto nos diversos casos de objetivação do processo, inclusive na sistemática dos artigos 543-A e 543-B do CPC, os participantes de relações jurídicas que dela sofrerão influxo ou mesmo de processos sobrestados que esperam a definição da questão jurídica pela Corte Suprema, aguardam, como ansiosos espectadores, a decisão que lhes modificará o destino. Pudessem litigar individualmente e sua ansiedade estaria diluída pela possibilidade de constante participação no processo, em contraditório. Agora, para que não fiquem amortalhados, é preciso que se façam representar ou que se

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Lei nº 9.868/1999: “Art. 7º. Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. [...] § 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidade.”

O próprio Supremo Tribunal Federal de há muito já qualificou a modalidade como sendo um caso de amicus curiae. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4067 AgR. Relator Min. Joaquim Barbosa, Brasília-DF, Julgamento em 10.03.2010. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 24 fev. 2011; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4071 AgR / DF, Brasília-DF. Relator Min. Menezes Direito. Julgamento em 22.04.2009. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 24 fev. 2011; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510 / DF. Relator Min. Ayres Britto. Brasília, DF. Julgamento em 29.05.2008. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 24 fev. 2011.

manifestem diretamente perante o órgão prolator da decisão que virará precedente. É aí que entra o amicus curie.

Não se pretende traçar aqui um profundo estudo a respeito dos amici

curiae86. O que se quer é apontar para o fato de que sua intervenção é uma das possibilidades de “abertura do procedimento” para nele insuflar o fluido democrático que lhe falta em determinadas ocasiões, como nas ora analisadas. Quer-se também afirmar que o instituto previsto no § 6º do art. 543-A é hipótese de amicus curiae87. Por fim, aferindo os limites dessa atuação, concluiremos se o problema de exiguidade democrática ficará ou não definitivamente resolvido.

Nas ações diretas, a manifestação do amicus curiae será admitida a partir da análise da “representatividade do postulante” (Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, art. 7º, § 2º). A exigência de “representatividade adequada”88 deflui da necessidade de se viabilizar a abertura do procedimento apenas para aqueles que congreguem as diversas vozes dispersas na sociedade a respeito do tema que será objeto de análise na ação direta. Permitir participações individuais seria fazer explodir no processo um emaranhado de dissonantes manifestações que ensurdeceriam os ministros do STF, impossibilitando o andamento do feito. Assim como nos versos de Ferreira Gullar, a manifestação do amicus curie deve ser um alarido, um feixe túrgido daquelas vozes que, antes, ecoavam dispersas pela sociedade89.

Já a decisão proferida na forma dos arts. 543-A e 543-B do CPC, malgrado produza fortes efeitos sobre processos que contenham a mesma questão de direito, não tem a mesma força vinculante nem a mesma abrangência das decisões proferidas em sede de ação direta. Basta dizer que, na jurisdição constitucional, a declaração de inconstitucionalidade de determinada norma opera,

86 Para uma análise mais aprofundada do tema, ver obra de fôlego escrita por Cassio Scarpinella Bueno, já citada neste trabalho. (Amicus Curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático). 87 Nesse sentido, TALAMINI, Eduardo. Repercussão geral em recurso extraordinário. Nota sobre sua regulamentação, p. 60; RODRIGUES NETO, Nelson. A alteração do regimento interno do Supremo Tribunal Federal para a aplicação da repercussão geral da questão constitucional no recurso extraordinário. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo, Dialética, n. 52, jul. 2007. p. 114. 88“Para nós, terá representatividade adequada toda aquela pessoa, grupo de pessoas ou entidade, de direito público ou de direito privado, que conseguir demonstrar que tem um específico interesse institucional na causa e, justamente em função disso, tem condições de contribuir para o debate da matéria, fornecendo elementos e informações úteis e necessárias para o proferimento da melhor decisão jurisdicional [grifos nossos]”. BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 146-147.

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“Meu poema/é um tumulto: a fala/que nele fala/outras vozes/arrasta em alarido. [...] Meu poema/é um tumulto, um alarido: basta apurar o ouvido”. GULLAR, Ferreira. Muitas vozes. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 1998. (Cadernos de literatura brasileira n. 6), p. 75.

comumente, efeitos ex tunc, abrangendo a todos e vinculando os demais órgãos do poder judiciário em todas as instâncias. Noutra banda, a decisão acerca da existência de repercussão geral condiciona somente a admissibilidade de recursos extraordinários sobre o tema e, no caso do art. 543-B, a decisão nos recursos selecionados influenciará no julgamento de mérito dos recursos extraordinários sobrestados.

Essa constatação é suficiente para se concluir que: (i) a intervenção do

amicus curiae não pode ficar adstrita à aferição da repercussão geral da matéria

pelo STF, como parece sugerir a letra fria da lei, vez que a referência a tal entidade está presente apenas no art. 543-A. É preciso, portanto, que se estenda tal possibilidade à própria análise do mérito dos recursos sobrestados porque, como já se viu, é aqui que reside a “radicalização da objetivação do processo”, uma vez que tal decisão condicionará o destino dos recursos sobrestados; (ii) a legitimidade para tal intervenção, na hipótese “estendida” ao art. 543-B, não pode ficar adstrita à “representatividade adequada”, devendo-se permitir a manifestação direta dos participantes dos feitos sobrestados, visto que compõem um grupo restrito e determinado, que espera angustiadamente a solução de mérito de questão com repercussão geral, que, logo após, servirá de paradigma para o resultado final de sua demanda90.

Note-se que estamos defendendo que, para além de os participante dos feitos sobrestados intervirem com argumentação em prol da existência de repercussão geral, é possível que haja manifestação que tenha por objeto o julgamento de mérito desses recursos, isso após ser reconhecida a repercussão geral da matéria.

É bem verdade que, nem tanto pela extensão da intervenção do § 6º do art. 543-A para a hipótese do art. 543-B, mas sim pela possibilidade de essas participações serem franqueadas também aos participantes dos feitos sobrestados,

90 Teresa Arruda Alvim Wambier defende a possibilidade de que aqueles que tiveram seu recurso sobrestado manifestem-se como amici curiae, aduzindo argumentos em prol da existência de repercussão geral. “Entendemos, além disso, que a previsão contida no § 6º do art. 543-A do CPC estende-se também ao recorrente que teve o procedimento do seu recurso sobrestado, em razão da subida de recurso extraordinário „com fundamento em idêntica controvérsia‟ interposto por outra pessoa (cf. art. 543-B, caput, do CPC) e poderá manifestar-se com o intuito de ver reconhecida a repercussão geral”. (Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória, p. 304.) É essa também a opinião de Fernando C. Queiroz Neves. (Primeiras anotações a respeito da aplicação da Lei 11.418/06. Repercussão geral em sede de recurso extraordinário, p. 338). Não negamos tal possibilidade, mas defendemos que, devido à repercussão da decisão de mérito, admitida a repercussão geral, tal participação pode até aí se estender.

não dá para ignorar que neste caso ocorre uma transfiguração de natureza jurídica do interveniente que, de amicus curiae, passa a verdadeiro assistente simples.

Tudo passa pela questão do “interesse” que move tal intervenção. Com efeito, os participantes dos feitos sobrestados têm clássico interesse jurídico91 no resultado da apreciação da repercussão geral e mais ainda no resultado do julgamento do mérito dos recursos selecionados.

Isso pelos mais óbvios motivos. Ausente a repercussão geral, os recorrentes que aguardam no andar de baixo não acessarão o STF e terão de assimilar o acórdão recorrido como sendo o provimento final, que transitará em julgado, restringindo-lhe a esfera de direitos. Admitida a repercussão, o mesmo poderá ocorrer em virtude da apreciação do mérito dos recursos eleitos, que, como já vimos, exerce intensa influência no destino final dos recursos sobrestados.

Assim, para nós, os participantes dos feitos sobrestados poderão intervir como assistente simples, nos feitos encaminhados ao STF para: (i) auxiliar o recorrente na demonstração da existência de repercussão geral, (ii) auxiliar o recorrido com argumentos pela inexistência de repercussão geral, (iii) auxiliar o recorrente ou o recorrido de modo a garantir o provimento ou não do recurso, conforme a razão que mais lhe favoreça.

O que há de comum no nível de interesse que respalda as três hipóteses acima é que são todos feitos “subjetivados”, ou seja, há sempre a preocupação de se obter um resultado que trará consequências positivas na esfera jurídica do interveniente. O tipo de interesse que move a intervenção dos amici curiae é outro, diferenciando-se exatamente pela ausência de “subjetividade”.

A melhor doutrina a respeito vem qualificando o interesse que motiva o ingresso do amicus curiae como sendo “interesse institucional”. Com isso, não se pretende afirmá-lo como interesse “não jurídico”, mas sim propor que haja um interesse jurídico qualificado, por ser público e filtrado por entes organicamente voltados à sua proteção.92

Posto isso, para nós, sempre que, no procedimento do art. 543-B do CPC, intervém ente com representatividade adequada, o faz a título de amicus curiae e,

91 Sobre o tema, confiram-se os exemplos clássicos de interesse jurídico motivador de assistência simples, trazidos por CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 166.

92 Nesse sentido, conferir BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 500-511, principalmente a página 504.

quando tal intervenção for de alguém que ocupa status de parte em um dos feitos sobrestados, o que se tem é um caso de assistência simples.