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4 NARRATIVAS DOS CAMINHOS PERCORRIDOS PELAS PROFESSORAS EVA E CLARISSA

5.3 PRÁTICAS DE CUIDADO COM AS CRIANÇAS

Conforme já apresentado anteriormente – no Capítulo 3, ao tratarmos da expansão da RME de BH – entre as atribuições da/o Professor para a EI cabe às estas/es profissionais ga- rantirem o cuidado e a educação das crianças de 0 a 5 anos, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educacional (DCNEI, 2009; BELO HORIZONTE, 2015).

Igualmente importante ressaltar que, as DCNEI (BRASIL, 2009), em seu Artigo 4º, definem a criança como “sujeito histórico e de direitos, que interage, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2009). Criança que, em suas múltiplas ações e interações com os outros e o mundo físico, constrói e se apropria de conhecimentos. Já a Educação Infantil, de acordo com a LDBEN (BRASIL, 1996), em seu Art. 29, tem por finalidade “o desenvolvimento integral da criança até 5 anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013).

Oliveira-Formosinho (2002) considera que as características das crianças nesta faixa etária exigem um professor que as leve em conta como um todo em seus aspectos afetivo,

cognitivo e social; pontua a amplitude e diversidade do papel do professor diante da responsabilidade pelo cuidado e educação da criança de forma integral: o cuidar e educar e as relações com os familiares. Destaca a necessidade da formação de redes de interações a serem feitas não só com as crianças e seus familiares, mas também com psicólogos, assistentes sociais, profissionais da saúde, entre outros, e por último a centralidade que deve haver na integração entre saberes e afetos.

Em nossas buscas pelas interações entre professoras e crianças, observamos as práticas de cuidado com as crianças e também abordamos o tema em entrevista com as 5 professoras participantes deste estudo. Todas as entrevistadas diferenciaram o cuidado das crianças na creche com aquele desenvolvido na pré-escola. Estas diferenças se relacionam desde ao tempo destinado às atividades de alimentação, higienização e deslocamento na EMEI, já que “quanto menores as crianças, maiores as chances de se machucarem ao cair” (Entrevista, Sila, 2017).

Nas duas turmas acompanhadas, tanto a professora Eva, quanto Clarissa, especialmente, durante a roda de conversa ou de histórias com a turma, buscavam uma escuta mais atenta em relação às falas das crianças. Também o afago nos momentos de repouso, o toque ou a observação quanto à lavar às mãos ou arrumar o cabelo, o controle de voz em determinados momentos, ou quando insistiam com a turma para que escutassem algum colega, buscando garantir o acesso à palavra.

Mesmo realizando ações como um toque no cabelo com carinho ou o escutar com interesse a criança, para a professora Eva o cuidado estaria mais presente no trabalho com os bebês, diferentemente das crianças na pré-escola pelo fato destas “se vestirem sozinhas, calçarem e amarrarem cadarços, tirarem materiais da mochila e levarem e trazerem recados da família” (Entrevista, Eva, 2017). Esta independência, construída com a criança pela professora desde o berçário, teria a função de “preparar essa criança para a escola, o futuro dela” (Entrevista, Eva, 2017). Para Eva, na pré-escola o cuidado continuaria para quem necessitasse de auxílio quanto à retirada das fraldas ou higienização bucal, por exemplo. Neste caso, embora ela realizasse também um cuidado que ia além daqueles relacionados à higiene, segurança e alimentação das crianças, ela desconsiderou este como cuidado.

Em período de observação participante na turma da professora Eva, percebemos que, especialmente durante o momento de repouso das crianças – horário de 11h30min às 13h – ela buscava alternativas para que as crianças descansassem para o turno da tarde, justificando que

muitas saiam cedo de suas casas para chegarem às 7 horas na EMEI. A pequena sala destinada a este momento do sono ficava no corredor em frente a sala da turma e esta era cuidadosamente preparada, a pedido de Eva, por uma das 3 Auxiliares de Apoio ao Educando: organização dos colchões com lençóis limpos, fechamento das cortinas e preparação do som com histórias ou músicas relaxantes.

Neste horário, sentada junto dos colchões, Eva conversava com aqueles que insistiam em não dormir, mudava seu tom de voz ou realizava toques leves nos cabelos das crianças, como ela mesma dizia, “[…] a gente vai descobrindo onde o menino gosta mais, se é no cabelo, se é nas costas, se é na nuca” (Entrevista, Eva, 2017). Na pequena sala – de 3 x 4 metros – outro cuidado realizado era em relação à mudança de posição dos colchões e das crianças para que não ficassem muito próximas umas das outras, quando alguma delas, por ventura, apresentassem algum odor desagradável nos pés.

Aí na hora do sono, ele tira o tênis que você fica com dó das crianças que estão do lado dele, porque a meia dele tem uma ou duas semanas que ela está no pé sem lavar. Você vê a meia, você sente o odor e aí você fica pensando: você tira a meia e lava? Você compra uma meia e deixa aqui para ele usar na escola?' Até isso a gente pensa! Já aconteceu de colega que trabalhou comigo comprar cueca para o menino, porque quando a gente começou a desfraldar os meninos, a mãe mandava o menino, mas sem a cueca, não mandava a fralda, porque ela não precisava mais, porque estava desfraldando, mas não tinha a cueca também. No caso dos meninos, porque das meninas acaba tendo de ter, mas dos meninos muitos não têm, só depois que a colega comprou a cueca que a mãe viu que era importante (Entrevista, Eva, 2017).

Assim como Eva, Clarissa concorda que o cuidado esteja mais presente no trabalho com as crianças na creche. Do mesmo modo que a professora Eva, parece não o perceber presente em suas ações com as crianças da pré-escola quando abraçava e cheirava alguma criança em tom de brincadeira ou nos diversos momentos em que arrumava ou tocava os seus cabelos ou nos momentos de alimentação em que havia presente um cuidado sempre mediado pela linguagem verbal: “coma tudo, escove os dentes com cuidado, deixe eu ver” (Diário de Campo, 2017). No entanto, o cuidado era visto com certo estranhamento quando se tratava dos momentos de banho de uma das meninas da turma, realizado pela Auxiliar de Apoio.

Então, por exemplo, ela chega fedendo na escola, o cabelo sujo cheio de piolho. E a mãe às vezes questiona umas coisas. A Flávia [Auxiliar de Apoio ao Educando] falou que esses dias ela perguntou para a professora da manhã porque que a Marina estava indo e voltando de uniforme. Porque ela não estava usando as roupas que ela põe na mochila, que ela manda pra gente trocar. Mas as roupas que ela manda na mochila? Misericórdia! Umas roupas mal limpas, fedorento, horroroso. Mas nem era

por isso que a gente não estava colocando, mas é porque como foi acordado na direção que ela ia tomar banho todo dia a Rogéria [Coordenadora Pedagógica] arrumou vários uniformes e ficam lá na sala. Por exemplo, Marina chegou, dá um banho nela e veste um dos uniformes que a Coordenadora arrumou. Porque no outro dia o uniforme vai voltar. Porque se fosse outro tipo de roupa não ia voltar. O uniforme volta porque a mãe vai sempre achar que é o dela. Quando volta, a Auxiliar vai pegando aquele uniforme sujo e no fim de semana entrega na lavanderia. Na segunda a Auxiliar pega aquelas roupas limpas. Então, mesmo que ele suje na escola, ela sempre vai ter uma roupa limpinha pra ela usar (Entrevista, Clarissa, 2017).

Cheirando-a em tom de brincadeira ou elogiando o cabelo bem penteado da criança, Clarissa se certificava de que ela estava bem. Apesar de todo o cuidado dispensado, em momentos de entrevista relata sobre este cuidado em um tom de reclamação, revelando certa incompreensão em relação às suas expectativas que não haviam sido atendidas pelos familiares de uma criança de 4 anos de idade. Em contrapartida, percebendo que o fato da menina urinar na roupa causaria estranhamento entre os seus colegas, busca salientar suas potencialidades, encorajando-a e incentivando as crianças a se ajudarem.

Marina urina na roupa até hoje, mas pra mim é um problema emocional. Outras coisas ela faz muito bem, ela desenha bonitinho, colore bonitinho. […]. Ela sabe amarrar cadarço e a maioria da sala não sabe. E ela sabe! E os meninos pedem pra ela. A Gisele que é esperta pra umas coisas não sabe amarrar cadarço. Ela chega com o pezinho na frente da Marina e pede pra amarrar. Os meninos já sabem que ela sabe, chegam pra ela e põe o pé na frente dela. Ela fica amarrando cadarço toda hora (Entrevista, Clarissa, 2017).

Esta postura de incentivo às crianças e de abertura para o diálogo demonstrado por Clarissa permitia às crianças uma maior liberdade para que estas argumentassem em relação aos acontecimentos cotidianos. Na Educação Infantil – e na Educação em geral – o cuidado das crianças, muitas vezes associado a algo menor, tem sido marcado por ambiguidades e tensões. As ações de cuidado, por vezes, chegam a ser delegadas pelas professoras a outros profissionais com menor escolaridade, neste caso as Auxiliares de Apoio ao Educando. Especialmente na sociedade brasileira, que foi marcada por um longo período de escravidão, o cuidado é visto como uma atitude do âmbito doméstico realizada por quem não aprendeu a fazer outra coisa (DUMONT-PENA, 2015).

Em estudo realizado por Bitencourt, Lomba e Silva (2018), foi evidenciado que as professoras em seu trabalho com as crianças, utilizam as teorias estudadas (curso de Pedagogia, Normal Superior ou Licenciatura), porém é em suas experiências como mães ou

tias que se apoiam, principalmente aquelas que trabalham no segmento creche (crianças de 0 a 3 anos, segundo a LDBEN/1996). Nenhuma das professoras participantes deste estudo, mencionaram situações de reflexão coletiva institucionalizada sobre as manifestações das crianças e suas próprias atitudes e ações, o que nos faz pensar que as questões da formação inicial e continuada das professoras merecem um olhar mais atento.

Em nosso estudo destacamos que, além da formação acadêmica mínima exigida por lei para o exercício da docência na EI encontram-se as histórias de vida das professoras: lem- branças de infância, experiências como mães, leituras, observação e convivência com outros profissionais, reflexões na e sobre a prática das professoras, experiências que constroem e de- senvolvem suas habilidades no cuidado e educação das crianças e bebês. Daí a importância de se discutir o cuidado e educação a partir das concepções das professoras, tanto nas propostas de formação inicial como nas formações continuada em serviço.

Nas duas turmas acompanhadas, observamos as práticas de cuidado que as professoras demonstravam com as crianças, o que revela compromisso e cuidado para com elas. Contudo, durante a resolução de conflitos, as professoras procuravam manter a organização do grupo por meio do castigo denominado por “perder a vez”, o qual consistia em deixar a criança fora de determinada atividade por algum tempo. Assim, algumas das crianças, geralmente as mesmas, aquelas vistas pelos adultos como “perturbadoras” ou mesmo “difíceis” por transgredirem as regras do grupo, eram advertidas. Estas advertências iam desde um lembrete às regras, quanto a perda de uma brincadeira ao ar livre, geralmente o momento do parquinho. O “perder a vez” na atividade funcionava como punição diante de um comportamento indesejado pela professora, como veremos a seguir.