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4 NARRATIVAS DOS CAMINHOS PERCORRIDOS PELAS PROFESSORAS EVA E CLARISSA

4.3 TORNAR-SE PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Como vimos até aqui, neste Capítulo 4, as duas professoras apresentam uma diferença significativa em termos de idades e tempo de serviço na educação: Eva (65 anos) e Clarissa (34 anos). Eva ingressou na Educação Infantil em 2007 e Clarissa no ano de 2012, após avaliar que neste cargo seria melhor remunerada do que na função de Psicóloga recém formada. Entre outras diferenças, Eva trabalhava em 1 único turno e Clarissa em 2, na mesma UMEI. Eva é casada há 38 anos e Clarissa, solteira.

Ao contrário de Eva, a Clarissa teve uma infância junto de uma mãe que valorizava e permitia as brincadeiras. As duas apresentam em comum o fato de trabalharem na pré-escola na mesma instituição e também por não serem mães. Outro fato em comum entre as duas trata-se da postura do pai, definido por elas como homem rígido ou muito bravo. Eva apresen- ta o pai como severo e de postura inflexível com a esposa e filhas/os, justificando tal postura pelos sofrimentos que possivelmente ele encontrou pela vida. Às vezes essa postura do pai aparece como um elogio, “um homem que se importava com a família” (Entrevista, Eva, 2017). Essa severidade encontra-se presente no pai de Clarissa, fosse pelos castigos físicos – beliscões e tapas – ou fosse nos momentos em que mesmo vendo as filhas escondidas debaixo da cama, fingia procurá-las para castigar.

A professora Eva cursou Pedagogia na década de 1970 quando a EI ainda não era reconhecida como primeira etapa da Educação Básica em acordo com a LDBEN (BRASIL, 1996) e DCNEI (BRASIL, 2009). Ela nos declara que na sua inserção na EI considerou o maior número de vagas para o cargo de professora em vista da expansão da EI naquele período, trabalho que lhe garantiria uma segunda aposentadoria, para a qual faltavam 10 anos para se completar. Nesta nova função, supomos que ela mobiliza e ressignifica as suas referências da docência no EF para o contexto da EI. Consideramos ainda que o contexto institucional, especificamente as condições de trabalho em que se encontrava, também trouxe implicações para a realização do trabalho e modos de ser professora de crianças de 0 a 5 anos.

Assim, as características da docência com os pequenos foram sendo refletidas após a sua entrada na EMEI entre 2007 e 2017. Em suas narrativas, ela destaca elementos facilitadores ou complicadores no trabalho com as crianças de 0 a 5 anos, tais como: a sua idade de 55 anos quando iniciou carreira na EI em 2007; as suas considerações sobre a

escolha de uma turma a cada ano e as diferentes necessidades das crianças de acordo com a faixa etária de cada turma; o aprendizado com as colegas mais experientes no desenvolvimento diário do trabalho com os bebês e crianças; a progressiva afeição por esse trabalho; a compreensão que tem sobre o cuidado; assim como a referência que faz à função materna diante da falta de formação ou experiência quando assumiu a docência na EI.

Clarissa – graduada em Psicologia – cursou Pedagogia à distância entre 2005 e 2007 e nos declara que a sua inserção na EI foi em busca de estabilidade profissional e melhor salário já que na função de Psicóloga era pouco remunerada. Após concurso público em seu primeiro cargo na EI, continuou também trabalhando na clínica para completar a sua renda. Em sua nova função, ela mobiliza suas referências do atendimento às crianças no consultório de Psicologia, considerando especialmente características do desenvolvimento infantil no qual diz se apoiar. Clarissa não faz referência à função materna no desempenho do trabalho com as crianças e se apoia na ideia de não instrumentalizar as brincadeiras, considerando ser estas indispensáveis para o desenvolvimento infantil.

Retomamos neste ponto do texto – tema já tratado no Capítulo 3, expansão da RME de BH – que, entre as atribuições da/o Professor para a EI cabe às estas/es profissionais garantirem o cuidado e a educação das crianças de 0 a 5 anos, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educacional (BRASIL, 2009; BELO HORIZONTE, 2015). Contudo, nas narrativas das duas professoras nota-se uma cisão como se o cuidado acontecesse com as crianças menores e a educação na pré-escola. Por que as Proposições Curriculares para a Educação Infantil (BELO HORIZONTE, 2014; 2015), nas quais estão explicitadas as intenções educativas do município em consonância com as DCNEI (BRASIL, 2009), não eram mobilizadas como principais referências para o trabalho com as crianças?

Nesse sentido, apesar das professoras articularem a lógica do reconhecimento do papel (integração) e a da introdução de novos elementos presentes nas normativas, estes, nem sem- pre eram mobilizados por elas. Seria possível relacionar os valores que elas construíram em suas famílias com as formas como cuidam e educam as crianças? Assim como Nóvoa (1988), compreendemos que, no exercício da docência, as trajetórias pessoais se encontram presentes junto da formação inicial e das condições institucionais. Para Nóvoa (1988) este três fatores – trajetórias pessoais, formação inicial e condições institucionais – trazem implicações diretas para o desenvolvimento trabalho de cada docente, ou seja, a sua forma de ser professora, as

experiências que mobilizam. Para nós, a história pessoal das professoras Eva e Clarissa, assim como os conhecimentos adquiridos por elas durante a formação inicial e continuada são mobi- lizados no cuidado e educação das crianças e em suas interações diárias com elas na EMEI.

Pesquisas desenvolvidas por Gatti (2010, 2012, 2013, 2015) ao abordarem as finalida- des da educação e da escola básica na sociedade contemporânea, indicam que, mesmo após a promulgação da LDBEN/1996, importantes referenciais formativos encontram-se ausentes ou fragilmente presentes na maior parte dos cursos de pedagogia, responsáveis também pela for- mação das professoras na EI. Para a autora, poderíamos dizer que se trata de uma formação que tem por base “currículos fragmentados, com conteúdos excessivamente genéricos e com grande dissociação entre teoria e prática, estágios fictícios e avaliação precária, interna e ex- terna” (GATTI, 2013, p. 58). A autora argumenta que:

O profissional docente da educação básica merece uma atenção maior de conselhei- ros de educação, gestores, coordenadores de curso, professores do ensino superior, no que se refere à sua iniciação formativa – estrutura, currículo e dinâmica das licen- ciaturas. Esse problema vem assumindo contornos éticos, de respeito e valor. Dos que detêm responsabilidades sobre essa questão se requer conhecimento e compro- misso com a educação básica e com a própria licenciatura e seus estudantes (GATTI, 2013, p. 56).

Gatti (2013) argumenta sobre “a importância de formar bem os professores da Educa- ção Básica, com base em uma filosofia social da educação, com as perspectivas expostas, de se repensar as estruturas e dinâmicas formativas desses docentes, de se ressituar o papel dos formadores de professores” (GATTI, 2013, p. 56). Para ela, ainda não temos uma resposta para a seguinte pergunta: por que não acontecem mudanças mais radicais nos cursos de gradu- ação, “uma vez que há muito, e por muitos estudos, tem-se falado em crise das licenciaturas pelas suas fragilidades formativas?” (GATTI, 2013, p. 64).

Diante disso, ressaltamos a importância de uma formação continuada que privilegie momentos de reflexão coletiva entre as professoras diante dos desafios enfrentados no cotidia- no deste trabalho (FARIA, 1999). Uma formação que articule as funções de cuidado e educa- ção visando o desenvolvimento integral das crianças. Consideramos imprescindível inserir re- flexões sobre as histórias de vida das professoras e as práticas diárias de cuidar e educar crian- ças em contexto coletivo, o que poderá proporcionar às docentes a oportunidade de maior compreensão a respeito da implicação pessoal como componente da prática profissional.

Ao longo deste Capítulo 4 – histórias das docentes Eva e Clarissa – podemos perceber a articulação de lógicas distintas na construção de suas experiências profissionais. Percebe-se ações as quais ora prevalecem a acomodação, submissão e manutenção do sistema de ensino ora posturas estratégicas para alcançar determinado interesse, ora resistências a este mesmo sistema ora inovações críticas em suas metodologias de trabalho. Ou seja, havia alternâncias entre acomodação, jogo de interesses e criticidade enquanto formas e lógicas de ações (DU- BET, 1994) diversas destas professoras – também diversas!

Compreendemos que diante da complexidade que envolve o trabalho de cuidar e edu- car crianças de 0 a 5 anos em contexto coletivo há uma complexa rede de fatores que concor- rem para a manutenção de uma formação docente insuficiente. Para Nóvoa (1988, p. 128- 129), a formação dos adultos é feita na “produção” e não no “consumo”, do saber e que esta deve seguir alguns princípios, entre eles:

a) reconhecer que o adulto em formação possui uma história de vida, daí a importância de refletir sobre o modo como ele se forma, em vez de tentar formá-lo;

b) a formação é sempre um fenômeno de cunho individual, na tríplice dimensão do sa- ber (conhecimento), saber-fazer (capacidades) e do saber-ser (atitudes);

c) não se trata do ensino de conteúdos, mas do trabalho coletivo em torno da resolução de problemas.

Na formação das professoras – Eva e Clarissa – percebemos que as suas aprendizagens de habilidades, disposições corporais e afetivas foram adquiridas em diferentes contextos da vida, incluindo o tempo de formação docente para os Anos Iniciais do EF ou nos consultórios de Psicologia, como no caso de Clarissa. Durante o período da observação participante e mo- mentos de entrevistas, registramos percepções e práticas – das professoras Eva e Clarissa – que, por vezes se aproximavam, outras se afastavam de uma Pedagogia da Infância (ROCHA, 1998, 1999, 2001, 2003, 2010; BARBOSA, 2010; BUSS-SIMÃO, 2012), como veremos no próximo Capítulo, no qual – em acordo com os objetivos propostos – abordaremos como as professoras organizavam o trabalho diário e interagiam com as crianças.

CAPÍTULO V

ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E INTERAÇÕES ENTRE PROFESSORAS E CRIANÇAS

5 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E INTERAÇÕES ENTRE PROFESSORAS E CRIANÇAS

Dúvidas me assolam, e me levam do sono mal dormido. Haverá sentido nesse fazer? - Cadê o sol? Onde está a peneira? Estou tapando o Sol com a peneira? Ou pondo a peneira para ver melhor o Sol? Haverá sentido nesse fazer? Que Sol é esse que ilumina? E que também me cega? Haverá sentido nesse fazer? E cadê a peneira? Que me escuda do ofuscamento? Haverá sentido nesse fazer? Haverá sentido nesse trabalho de formiga? O que terá sentido? Escondendo-me estou nesse fazer? O termômetro são os olhos das crianças, das professoras? - A participação dos pais? [...] E por mais dúvidas e certezas que eu tenha esta é a pergunta que me mantém viva hoje, que me dá o tamanho do Sol e da peneira que tenho dentro de mim. - Haverá sentido nesse fazer? - Cadê o Sol? - Cadê a peneira? - Estou escondendo o Sol com a peneira? (FREIRE, Madalena, 2008, p. 83).

Seguindo a mesma linha reflexiva do Capítulo anterior, apresentaremos – neste Capítulo 5 – nossas análises derivadas de dois objetivos específicos de nosso estudo: analisar como as professoras organizam o trabalho com as crianças de 4 e 5 anos de idade; e, compreender como ocorrem as interações entre professoras e crianças. No período em campo – no ano de 2017 – procuramos perceber a dinâmica da organização do trabalho das professoras e as interações entre elas e as crianças na pré-escola. Diante destes objetivos, registramos em Diário de Campo e abordamos estes dois temas durante as entrevistas com as 5 participantes: as 4 professoras que exerciam a docência nas turmas de crianças de 4 e 5 anos de idade e a Coordenadora Pedagógica.

Em acordo com Madalena Freire (2008), em meio às muitas aprendizagens já alcançadas no campo da educação, sempre teremos algo para aprender. Na Educação Infantil, em meio às nossas dúvidas, certezas e os muitos desafios, também se encontram construções e referências para o planejamento e desenvolvimento do trabalho com as crianças de 0 a 5 de

idade, conforme apresentado nos Capítulos 1 e 2. Entre estas referências, em acordo com as DCNEI (BRASIL, 2009), em seu Artigo 9º, os eixos estruturantes das práticas pedagógicas são as interações e as brincadeiras, experiências por meio das quais as crianças podem construir e apropriar-se de conhecimentos por meio de suas ações e interações com seus pares e com os adultos, o que possibilita aprendizagens, desenvolvimento e socialização.

Mesmo considerando que as instituições de EI não sejam os únicos lugares de aprendizagem e formação global das crianças, destacamos a importância destas ao proporcionarem e oportunizarem as diversas interações: entre as crianças, crianças e adultos, e entre adultos. Compreendemos ser nestas interações que as crianças vão se constituindo com um modo próprio de agir, sentir e pensar (BRASIL, 2009). Assim, as crianças e bebês constroem percepções e perguntas sobre si, diferenciando-se e, simultaneamente, identificando-se com os demais na medida que vivenciam experiências de cuidado pessoal e práticas sociais recíprocas na família, na instituição ou na coletividade (BRASIL, 2009).

É por meio das diversas interações e brincadeiras que as crianças aprendem a distinguir e a expressar sensações, percepções, emoções e pensamentos. São as interações com o meio e com o outro que lhes possibilitam a se colocarem no ponto de vista do outro, se oporem ou concordarem com seus pares, entendendo os sentimentos, os motivos, as ideias e o cotidiano dos parceiros (BRASIL, 2009). Ainda de acordo com as DCNEI (BRASIL, 2009), ao mesmo tempo em que as crianças e bebês participam de relações sociais e de cuidados pessoais, constroem sua autonomia e senso de autocuidado, de reciprocidade e de interdependência com o meio.

Em período da observação participante – ano de 2017 – quando acompanhamos as professoras Eva e Clarissa com as crianças e em seus horários de planejamento individual – conforme Quadros 5 e 6 – vimos que, nas diversas interações entre professoras e crianças, estas eram permeadas por cuidados, mas também por castigos para aqueles que infringiam as regras da turma. Ressaltamos que, embora as punições das crianças não seja o objeto do presente estudo, ao buscarmos pelas experiências sociais das professoras com as crianças e abordarmos as interações entre elas, este tema ganhou maior ênfase.

Conforme anunciado no início deste Capítulo, primeiramente apresentaremos as nossas análises em relação à organização do trabalho pelas professoras com as crianças de 4 e 5 anos, desenvolvidas nos seguintes tópicos: Mapa da Turma; e Mostra Cultural da EMEI. Quanto ao nosso objetivo de compreender como ocorrem as interações na turma,

apresentaremos: práticas de cuidado com as crianças; o perder a vez: punições das crianças. E por último, reflexões sobre a formação das professoras.