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portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de

4.2 CONCEPÇÕES CENTRAIS

4.2.2 Práticas sociais, poder hegemônico e ideologia

O Discurso é considerado na ADC como um elemento de caráter mais abstrato, como o momento semiótico das práticas sociais64. Essa afirmação é de fundamental importância para a aplicação e compreensão da ADC, uma vez que reflete a centralidade que é atribuída às práticas sociais no modelo transformacional da realidade, do qual a ADC se vale. Nessa perspectiva, as práticas sociais representam um elemento intermediário e de conexão entre a estrutura e a ação sociais.

Fairclough (2003) esclarece que os agentes sociais não são totalmente livres em suas ações, mas que são socialmente constrangidos, ainda que as ações destes também não sejam completamente determinadas pela sociedade. Da mesma forma, as estruturas sociais por mais rígidas e abstratas que sejam não determinam univocamente a ação dos agentes. O que se tem é uma relação complexa e dialética na qual a ação social e a estrutura social interagem.

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Conforme diferenciação apresentada na Introdução dessa tese sobre as duas abordagens do discurso consideradas no escopo da ADC.

Essa relação se estabelece em sentido ora diacrônico, ora sincrônico, já que a estrutura antecede a ação. Entretanto, estrutura e ação se constituem e são constituídas umas pelas outras, uma vez que a ação, além de reproduzir a estrutura, pode também transformá-la (ação → prática) e, a estrutura, por sua vez, atua no sentido de recurso/constrangimento para a ação social (prática → ação) (RESENDE, 2008). Interpostas entre essas instâncias estão as práticas sociais que:

Podem ser vistas como articulações de diferentes tipos de elementos sociais que estão associados a áreas particulares da vida social [...]. O ponto importante sobre as práticas sociais [...] é que elas articulam o discurso (daí a linguagem) juntamente com outros elementos sociais não- discursivos. (CHOULIARAKI, FAIRCLOUGH, 1999, p. 25)65.

As práticas sociais envolvem a configuração de diversos momentos que, tal como descrito para os diferentes estratos que compõem a vida natural e social, estão vinculados aos outros, uma vez que possuem relações dialéticas entre si, e nas quais cada momento internaliza traços dos outros, mas sem se reduzirem entre si.

Figura 6 – Momentos das práticas sociais

Fonte: Baseada em RESENDE, 2008; RAMALHO; RESENDE, 2011.

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Social practices can be seen as articulations of diferent types of social elements wich are associated with particular areas of social life […]. The important point about social practices […] is that they articulate discourse (hence language) together with other non-discoursal social elements. (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 25)

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Os momentos das práticas sociais estão vinculados a diferentes aspectos da vida social, como à atividade material (ao mundo material), ao fenômeno mental (às suas crenças, opiniões, atitudes e histórias), às relações sociais (ação e interação) e ao Discurso (considerado na ótica mais abstrata do momento linguístico/semiótico das práticas sociais), conforme ilustra a Figura 6.

Menciona-se como exemplo de prática social, comum na OC, o processo de construção de vocabulários controlados – por exemplo, o de um tesauro, relacionado a diferentes elementos, como as pessoas envolvidas na construção da ferramenta (e suas crenças, atitudes e histórias), a instituição e os processos que demandaram a construção da ferramenta (as relações sociais), o tipo de garantia (validação) utilizada para inserção/atualização dos termos e a construção das relações entre estes (por exemplo, consulta à literatura e a especialistas, validação pelos usuários, entre outras) e as tecnologias empregadas. A Figura 7 sintetiza aspectos desse exemplo:

Figura 7 – Construção de um tesauro como prática social

Fonte: Elaborado pela autora, 2017.

Entretanto, deve-se esclarecer que esse modelo aplicado genericamente não traz à tona os apontamentos necessários para a compreensão dos fenômenos sociais:

Em outras palavras, um relato geral da relação entre os elementos da vida e seus mecanismos não é suficiente: precisamos de relatos específicos da forma que suas relações dialéticas assumem em práticas particulares, uma forma que é constantemente aberta à mudança. (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 21, tradução livre)66.

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“In other words, a general account of the relationship between elements of life and their mechanisms is not enough: we need specific accounts of the form which their dialectical relationship takes in particular practices, a form which is constantly open to change”.

Termos e relações utilizadas no tesauro (representação discursiva)

Instituição e processos (relações sociais)

Garantia e tecnologias empregadas

(atividade material) Profissionais responsáveis pela elaboração (fenômeno mental)

Construção de um tesauro (prática social)

Para a elaboração desses relatos específicos e o entendimento das relações dialéticas é de fundamental importância reconhecer as ações de articulação e internalização. O conceito de articulação abordado por Chouliaraki e Fairclough (1999) é baseado na teoria do discurso de Laclau e Mouffe (200167) e, contribui para a compreensão dos momentos em que se realizam as práticas sociais e do processo de internalização existente entre estes, já que a perspectiva dos autores é de que a articulação não determina de maneira rígida os sentidos, mas que os fixa parcialmente:

A prática da articulação, portanto, consiste na construção de pontos nodais que fixam parcialmente o sentido; e o caráter parcial desta fixação procede da abertura do social, resultado, por sua vez, do constante transbordamento de todo discurso pela infinitude do campo da discursividade68. (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 113).

Por meio da abertura do social, a articulação possibilita que os momentos das práticas sociais estabeleçam relações de mudança entre si, apesar de possuírem algum nível de fixidez e, também, de internalizarem aspectos uns dos outros. A articulação não se refere apenas à instância externa dos momentos das práticas sociais, mas também à significação de seus momentos internos. Logo, no caso do Discurso também se refere a seus momentos internos (gêneros, discursos e estilos), que serão descritos mais à frente.

A essa compreensão não determinista e dialética das práticas sociais se relacionam outros dois conceitos fundamentais à proposta da ADC: o poder como luta hegemônica e a ideologia. Fairclough (2001) se baseia, em especial nos escritos de Gramsci para definir a hegemonia como:

Uma forma particular (associada a Gramsci) de conceituação do poder e da luta pelo poder em sociedades capitalistas, enfatizando o modo como o poder depende do consentimento e da aquiescência em detrimento apenas da força, assim como a importância da ideologia para este. (FAIRCLOUGH, 2003, p. 218, tradução livre).

Gramsci (1978) desenvolve seu conceito de hegemonia por meio de uma abordagem marxista, todavia o desenvolve com o diferencial de vincular tal

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A edição citada por Chouliarak e Fairclough (1999) e por Fairclough (2003) é a primeira, publicada no ano de 1985. Nesta pesquisa se teve acesso a segunda edição do ano de 2001.

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“The practice of articulation, therefore, consists in the construction of nodal points which partially fix meaning; and the partial character of this fixation proceeds from the openness of the social, a result, in its turn, of the constant overflowing of every discourse by the infinitude of the field of discursivity”.

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abordagem não apenas ao contexto econômico, mas também às esferas éticas e políticas (ALVES, 2010). Nesse sentido, a acepção de hegemonia se distingue de outras comuns nas Ciências Sociais, pois não implica uma visão unilateral e determinada de poder (RAMALHO; RESENDE, 2001), mas um movimento instável e flexível, marcado, como citado acima, mais pelo consentimento e por alianças, do que pela força.

A realização de um aparato hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico. (GRAMSCI, 1978, p. 52).

Assim, a luta hegemônica ocorre em várias esferas, sendo uma delas a discursiva, ou seja, construções semióticas podem ser utilizadas por certos grupos em favor de que suas posições se façam predominantes (recorda-se a citação no início deste capítulo). Fairclough (2003) relaciona como um dos fatores que contribui para a existência desse fenômeno a manutenção de representações particulares como universais, o que traz à tona o conceito de ideologia “sentida a serviço do poder” (THOMPSON, 2011, p. 16).

Dessa forma, por Fairclough (2003) embasar sua compreensão de ideologia em Thompson (2011), a ADC não a compreende como algo neutro, um sistema de pensamento ou simbólico, mas sim sob perspectiva crítica e negativa:

[...] sustento que o conceito de ideologia permanece uma noção útil e importante no vocabulário intelectual da análise social e política. [...] argumento que o conceito não pode ser tão facilmente despojado de seu sentido negativo, crítico – ou, mais precisamente, argumento que, na tentativa de despojá-lo de seu sentido negativo, as pessoas menosprezam um conjunto de problemas em relação aos quais esse conceito, em algumas de suas versões, procurou chamar nossa atenção. É esse conjunto de problemas que tento discutir em minha reformulação de ideologia. Sendo que não tento eliminar seu sentido negativo mas, ao contrário, tomá-lo como um índice dos problemas aos quais o conceito se refere, como um aspecto que deve ser retido e desenvolvido criativamente, essa reformulação pode ser vista como uma concepção crítica de ideologia. Ela mantém a conotação negativa que foi trazida pelo conceito através da maior parte de sua história e liga a análise da ideologia à questão crítica. (THOMPSON, 2011, p. 16, grifos no original).

Sob essa acepção, a ideologia constitui “representações de aspectos do mundo que contribuem para o estabelecimento e a manutenção de relações de poder, de dominação e de exploração” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 218). É importante ressaltar, entretanto, que “fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos significativos

desde que eles sirvam, em circunstâncias sócio-históricas específicas, para estabelecer relações de dominação” (THOMPSON, 2011, p. 76), ou seja, a análise da ideologia importa na ADC quando a ela estiverem vinculadas relações assimétricas de poder.

Fairclough (2003) assevera que a ideologia se torna mais efetiva o quanto mais implícita for, o que significa que a partir do momento que os indivíduos percebem assimetrias de poder que os prejudiquem nos fenômenos simbólicos, a ideologia é desvelada, o que faz com que perca sua força. O questionamento de formas ideológicas presentes em questões cotidianas serve como estímulo para a reformulação das relações de poder, isto é, tanto a hegemonia, quanto a ideologia são caracterizadas pela instabilidade.