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A presença das damas 117 no fandango

“MEU BUM JISUIS” TUDO ISSO É FANDANGO?

2.7 O Fandango “do tempo de dantes” em Guaraqueçaba

2.7.3 A presença das damas 117 no fandango

Na primeira visita que fizemos [Aurélio Gasparini Jr. e eu] a Antônio Alves Pires, em 2005, em sua casa, ao abrir-nos a porta para conversar sobre Fandango, logo questionou: “falta dama pro baile, né?”, em seguida cantando:

“se eu tivesse visto / aqui eu não vinha / que não tinha dama / que dama não tinha / antes da dama chega / meus senhores dancem / não querem dançar”.

É constante, sempre que falamos sobre Fandango Caiçara aos “de fora118” o estranhamento pelo fato das mulheres não tocarem instrumentos, também não batem os tamancos, portanto, classificam como pertencente a uma cultura machista, onde a mulher ocupa uma função inferior ao homem,

114 Contemporaneamente os grupos de Fandango Caiçara estão integrando crianças nas rodas batidas, todas usando tamancos, como demonstração do resgate que praticam.

115 Seu Janguinho, da comunidade do Batuva, em referência às alunas da comunidade que participavam no Projeto “Traços Culturais das comunidades do litoral do Paraná e resistência frente o avanço da modernização expropriatória impulsionada pelo capital”, salienta acerca da educação oferecida na escola em desacordo com os saberes da comunidade: “elas, acabam sendo daqui mesmo essas meninas, mas elas não sabem como se encaba uma enxada e não conhecem as madeiras, mas antigamente no meu tempo eles conheciam, porque estavam em casa vendo, conversando e tudo e trabalhando junto por que a profissão era essa, então eles sabiam e hoje o estudo deles é diferente, então eles acabam não sabendo, tá mais fácil eles aprenderem as coisas de vocês do que a nossa” (SILVA, 2010, [25:26 – 20:01]).

116 Contemporaneamente há quem diga que “os mais velhos não querem ensinar os mais novos”, porém estes costumes “de respeito” encontrado nos Fandango antigamente, pouco se observa hoje nos grupos e ou rodas de Fandango, onde em muitos casos prevalece ‘certo exibicionismo juvenil’, desagradando a geração mais velha e desobedecendo certa “poética do respeito”, repassada na oralidade e constante observação.

117 O movimento folclorista denominou de “folgador/folgadeira”, aquele que dança Fandango, porém sua primeira menção aparece no Jornal A República (ed. de 08.03.1909), designando o dançador de Fandango; já Azevedo (1975, p. 34) cita-o como usual e Roderjan (1981, p. 29) remetendo ao termo, justifica que dançam em dia de folga, ou seja, de sábado para domingo.

118 Referência a visitantes, estrangeiros, ou seja, aquele que não faz parte de nosso círculo de amigos, familiares.

devido, exatamente ao equívoco em considerar o Fandango apenas como dança, onde cabe aos homens o tocar a viola e bater os tamancos.

A presença da dama no fandango, ao menos nas danças foi descrita por alguns folcloristas por possuir “atitude apática e indiferente, com fisionomias absolutamente inexpressivas, onde seu entusiasmo pela dança não se manifesta absolutamente pelo exterior” (AZEVEDO, 1975) ou ainda “andando molemente, com as mãos metidas nos bolsos dos casacos, sem trejeitos nem requebros” (AZEVEDO, 1978, p. 04) e “as mulheres talvez por serem o centro da coreografia, mais se arrastam do que dançam, e sua apatia não exterioriza o amor pela dança” (PINTO, 2005, p. 125), fazendo surgir contemporaneamente, nos grupos de Fandango evoluções coreográficas119, atendendo a técnica artística de sua transformação em espetáculo.

Ao fato de tradicionalmente não tocarem nenhum instrumento, por exemplo, Corrêa (2013, p. 114) analisa que, apesar de participarem de muitas atividades masculinas, as mulheres “parecem não desenvolver interesse em saber tocar instrumentos” e, acerca do porquê, observa que “minha pergunta foi em geral recebida com desdém e estranhamento [...]. Contudo, tal é o desinteresse demonstrado pelas mulheres que sequer é possível falar em restrição”; nesse sentido, afirma ainda que esta falta de interesse das mulheres pela prática dos instrumentos

além de estar associado a valores tradicionais e papéis de complementaridade socialmente desempenhados, também possa estar relacionado a um processo de construção metafórica entorno dos instrumentos principais do fandango. As mulheres são o eixo de estabilidade da estrutura familiar que, de alguma forma, as distancia da lógica de relação de permuta presente no sistema de circulação e representação dos instrumentos. O instrumento musical remete à circularidade e à permutabilidade presente no fandango. É a substância do elo musical de afeto e amizade entre homens. O instrumento não é um companheiro, pois o homem já tem seus camaradas. Contudo, figura como um objeto de mediação da relação masculino-masculino. É constantemente passado de mão em mão.

Ao mesmo tempo, é também um objeto com o qual homens se confidenciam e dialogam indicando haver nele uma condição de feminilidade. O instrumento é fio condutor da expressão do amor romântico que está presente na poética das modas. Por meio dos instrumentos, os homens expressam também seus sentimentos de

119 Durante o passe do “8”, por exemplo, fomos levados no Grupo Teatral Pirão do Mesmo, a fazê-lo em postura ereta, com os braços esticados e sobre as costas da dama, rodeá-la, mantendo contanto direto com o olhar, como a cortejá-las.

amor, sem, contudo criarem apego a esse ente feminino já que não estabilizam seu afeto no objeto. (CORRÊA, 2013, p. 118).

Dorçulina Eiglmeier (2004) nunca aprendeu a bater tamanco, porque

“esse era o serviço [trabalho] do homem”, como acreditava, mas se acaso quisesse aprender “acho que as mulher podia, né, batê, mas naquele tempo não usava, era a tradição, né. Se ela quisesse, num era bonito as mulher baterem né”; conforme Isolina Mendonça (apud BRITO, 2003, p. 25), as mulheres não batiam o tamanco por razão de ordem física: “é preciso ter muita força na perna pra bater tamanco. Sempre vi os homens dançando e acho bonito, mas nunca tive vontade de aprender e, se eu quisesse, podia aprender, pois não é proibido mulher bater tamanco”.

Dorçulina Eiglmeier, Dina Alves e Conceição Constantino eram donas de grande repertório de Fandango, configurando o que afirma Corrêa (2013, p.

116), “as mulheres não são inteiramente alheias à música e a poesia do fandango, mas sim à prática instrumental”.

Anísio Pereira (2000) explica que o homem “fica pra bater. O trabalho da mulher é rodar os “8”. Escuta o violeiro que dá o topo pro tamanqueado.

Quando dá o topo aí a mulher para. Fica lá”; já Leonildo Pereira (2009) afirma ter conhecido em Taquari/SP, duas mulheres que tocavam viola.

As damas, casadas, sempre acompanhando seus maridos, também iam nos mutirões, para roçar, carpir, socar arroz ou fazer outro serviço que o dono da casa precisasse, além de ter a responsabilidade de preparar as comidas, tendo sempre ao seu lado os filhos, que, desde cedo também ajudavam nos trabalhos da roça, seja por exemplo, carregando os cestos com rama.

Junto com a coreografia, ressalta Novak (2005, p. 37) que foi “preciso modernizar, ter um visual agradável, compatível com o momento em que se vive para que desperte interesse no público atual e o consiga sobreviver por mais uma geração”, porém, Correia (2002, p. 43), criticando os “trajes típicos120” sugeridos para representar o Fandango, dizia que “dançar Fandango

120 Em Paranaguá, segundo Novak (2005, p. 65) o diretor do Grupo Folclórico Mestre Romão admitiu alterações nos trajes e balanceios das mulheres “para enriquecer e tornar o trabalho apresentável ao público, não é possível resgatar estas coisas do jeito que elas eram antigamente”, sendo, no ano de 2001, idealizado pela Secretária de Turismo de Paranaguá, composta por: Para as mulheres “blusa decote canoa, manga fofa na cor laranja e saia rodada no comprimento do tornozelo, florida. Para os homens camisa laranja e calça marrom”, justificando as cores como a representar a terra batida (NOVAK, 2005, p. 64); Martins (2006, p.

com seda é um erro e foge completamente a tradição”, porque o “caboclo, sendo pobre, não poderia adquirir tecidos caros”, daí “folgadores” usarem

“trajes simples e baratos feitos de chita, algodão e brim”.

IMAGEM 12 – Família Pereira dançando valseado durante apresentação

Fonte: I Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, 2006.

84) ressalta que, após a instituição dos Grupo Pés de Ouro, por exemplo, em seu Estatuto ficou estabelecido a incorporação de trajes pretos, justificando-os “como nos grupos gaúchos”;

de acordo com Corrêa (2013, p.165) “o processo de formação de grupos de fandango introduziu a adoção de uma indumentária específica somente nos contextos de apresentação”

identificando três tendências predominantes: (i) Grupos integrados por jovens dançadores do Paraná, como o Grupo Folclórico Mestre Romão e Grupo de Fandango Professora Helmosa, as damas usam roupas de tecidos exuberantes que se assemelham aos das prendas gaúchas, com saias rodadas, cores vibrantes e estampados com flores. Grandes arranjos florais nos cabelos e forte maquiagem também aparecem como regra geral. (ii) Grupos compostos por dançadoras adultas ou idosas que enfatizam o aspecto tradicional do fandango, como Pés de Ouro e Família Pereira, reinterpretam a exuberância das prendas, com cores homogêneas, porém mantendo as saias longas rodadas e mangas bufantes. (iii) Grupos que se identificam com a afirmação da identidade caiçara, como Jovens da Juréia e Mandicuéra, preferem trajes mais simples remontando um vestuário de fandango dos sítios, com floridos mais simples, por vezes variados, além de saias e vestidos mais curtos, um pouco abaixo dos joelhos; ainda nesse sentido Corrêa (2013, p. 165) referencia “as mudanças em suas vestes de apresentação” da Família Pereira, onde as mulheres “vestiam roupas elegantes, blusa branca e saia estampada, porém com modelos e estampas diferentes” e algum tempo depois “o figurino havia ganhado um padrão e as mulheres se mostravam satisfeitas e confiantes com o novo visual chamativo pelo vermelho vibrante e pelas saias rodadas”, porém, presenciei, em começo dos anos 2000, o recebimento deste figurino pelas damas da Família Pereira, presente da 1ª Dama de Guaraqueçaba, também Secretária de Ação Social e o quanto ficaram constrangidas, pois, pela primeira vez, usavam roupas uniformes no Fandango; o Grupo Fandanguará, principalmente a saia das damas, baseia-se no figurino introduzido por figurinista na peça

“Fandango”, também na confeccionada para a peça “Farinha Vs. Cuscuz”, ambas multicoloridas, com forte apelo ao espetáculo artístico. Nesse sentido ver ainda Silveira (2014), bem como na página 42 a Nota de Rodapé nº. 41.

Este processo de espetacularização, de acordo com Carvalho (2007, p.

86) “coloca os artistas populares na condição de objeto: deverão apresentar-se, alterando as bases de seus códigos específicos, para deleite dos espectadores de classe média, em seus momentos de consumo de lazer ou cultura de turismo”, numa estrutura produzida e controlada pela indústria do entretenimento ou pela ordem política que contrata o espetáculo.

Nesse sentido Corrêa (2013, p. 165) cita depoimento de Narcinda Amorim Lopes dizendo que dançavam “assim fantasiado, como eles dançam, com aquelas saias bem rodadas, blusa de uma cor, saia de outra cor e tudo assim uma parte branca, outra parte azul, outra parte verde, mas saia só de carnaval”, salientando que, “tirando o carnaval nós dançava com roupa comum, saia de qualquer jeito, blusa de qualquer jeito. Agora pintura não se usava”.

Conforme depoimento de Dina Alves Costa (1999), uma vez sabendo dos mutirões e Fandango, já preparavam suas melhores roupas e ornamentos para a ocasião: “tinha Fandango, as mulheres comprava tudo, era vestido, era brinco, cinto, tudo que precisava”.

IMAGEM 13 - Nilo Pereira dançando “Sinsará” com D. Escolástica “Corá” (Rio Verde, 2003);

Michel P. da Silva dançando Dondom com D. Corá (Utinga, 2013); Zé Muniz dançando Dondom com D. Corá (Utinga, 2016)

Fonte: Zé Muniz (2003 e 2013), Aparecida Camargo “Cida” (2016).

As damas aprendiam a dançar com os rapazes mais novos que as tiravam, com devidas licenças de seus pais ou com outras damas e cavalheiros

mais velhos ou mesmo em casa com as irmãs, além da constante observação nos fandangos que iam.

Vovó Rosa [Rosalina Dias Fernandes], em depoimento recolhido em 2007, ressalta que:

as damas ficavam sentadas num banco comprido e quando tocavam a viola e rompia a moda, os cavalheiros vinham tirar no banco. Nós dançava os batidos da Querumana, Tonta, Anu, Andorinha, Tiraninha, mais dos bailados eu gostava mais, e os cavalheiros e as damas bailavam descalços, era assim que dançavam os valsados; na última moda, o Recortado, mas enchia a sala da casa. Cada dama entrava então num porto [na frente do cavalheiro] e era a que mais custava de dançar, ficava recortando, uma pra lá, outra pra cá.

De acordo com Conceição Constantino (2007), na moda “Andorinha” as damas que faziam a roda e “jogava um lenço em direção ao homem e escolhe o par pra ela dançar”.

Em determinados lugares, as damas não podiam recusar121 de dançar com o cavalheiro que lhe convidasse, caso contrário ficaria aquela moda, ou durante todo aquele Fandango, de acordo com o costume de cada região, sem poder dançar, pois diziam que era ‘desfeita’ e como relata vovó Rosa (2007),

“alguns cavalheiros entendiam, outros não, mas não acontecia nada e quando os homens se desentendiam era por causa da bebida mesmo”.

Corrêa (2013, p. 153) diz que “por mais formal que seja a dança, uma intimidade se estabelece no entrosamento rítmico dos pares. A sensualidade do fandango é muito sutil”, porém, “na dança, o respeito entre os elementos do par é notório e confere uma rara sensação de conforto para as damas, que sempre se sentem à vontade para dançar com qualquer cavalheiro”, exceto os que já exageraram na bebida; noutros costumes, por exemplo, de acordo com José Hipólito Muniz (2007) “uma pessoa não podia dançar com uma senhora sem primeiro pedir licença para o marido” e em outros ainda, acaso pretendesse dançar com a dama, o cavalheiro devia antes dançar com sua mãe, inclusive com sua avó, se esta estivesse presente.

Acerca de alguns destes costumes, Dorçulina Eiglmeier (2004) admite não concordar com tamanha ignorância, como ressalta

121 Contemporaneamente as damas, participantes de grupos, se antecipam na escolha do cavalheiro com quem desejam dançar e em muitos casos, quando em apresentação, a opção é por visitantes e ou alheios ao Fandango, como que a inseri-los na tradição.

a pessoa vai dançar com quem gosta, com quem acerta o passo, porque não é com tudo que a gente acerta o passo, né. [...] Um homem vinha me tirar e eu não fosse dançar com ele, se por acaso outro viesse, ele tirava eu do braço do outro e levava pro meu pai. Já vinha uma briga e eu não dançava perante aquela moda com mais ninguém. As vezes tirava a gente pra dançar quem a gente não gostava. A gente torcia pra que logo acabasse né, mas pra dançar comigo não precisava pedir licença se eu fosse solteira. Agora se tivesse namorado, fosse noiva, tem uma educação e pede licença né.

É mais bonito.

Nas modas batidas, às que melhor sabiam dançar assumiam um importante papel, pois definiam o formato da roda e o andamento da marca, permitindo ao cavalheiro retornar ao seu ‘porto’, acaso este bata seu tamanco com mais veemência; ao romper da moda, as damas se retiravam do salão, porém, de acordo com José Hipólito Muniz (2008), tendo dançado “um batido mais simples, já tem aquela dama para dançar o bailado com você”.

Dorçulina Eiglmeier (2004) lembra que “o salão122 da casa do dono do mutirão, era rodeado de banco, onde ficavam os homens. Daí, separado, na cozinha ou no lado mesmo, ficavam todas as mulheres”; nas modas valsadas e mais fáceis, os cavalheiros as procuravam nestes bancos ao redor do salão.

Lembra ainda a forma diferente que se dançava valsado no Poruquara: “lá os homem fazia a roda e as mulher que entrava cada uma num porto, pra dança valsado. Diferente dos valsado tirado, que o cara tirava a dama”.

Da mesma forma que os violeiros realizavam entre si porfias, disputando o reconhecimento como melhor tocador ou cantador, também as damas disputavam para saber qual dançava melhor, como lembra Pedrina França (2002) “uma vez fizero um concurso na vila e eu ganhei dançando uma domingueira inteira”.

Já a Domingueira, de acordo com Antônio Alves Pires (2003) era quando, após o baile de sábado “dava umas nove horas de domingo, quer dizer que tem que ir embora, né. Quem queria ficar tinha a Domingueira. Era só no valsado até as duas horas da tarde”.

122 Não existia em Guaraqueçaba casas exclusivamente feita para Fandango, como é usual fazer relação às pesquisas de Pinto (1992; 2005, p. 125; 2006, p. 105) que descreve estas sem paredes ou divisórias e com buracos cavados abaixo para ressoar o som dos tamancos; as moradias caiçaras, com predomínio de madeira, geralmente com sapatas altas que ampliam a repercussão sonora, e algumas com salões maiores, eram as preferidas e constantemente pedidas para fazer Fandango.