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“MEU BUM JISUIS” TUDO ISSO É FANDANGO?

2.7 O Fandango “do tempo de dantes” em Guaraqueçaba

2.7.4 Os instrumentos 123 do Fandango Caiçara

2.7.4.3 Viola fandanguera 138

A origem da viola no Brasil, de acordo com Corrêa (2002) remete a colonização, século XVI, tanto como herança cultural dos colonos quanto à catequização imposta pelos Padres Jesuítas aos Guaranis139, recebendo por aqui, nomes como: viola paulista, fandangueira, de arame, caipira, sertaneja, nordestina, brasileira, pinho, de feira e cabocla, guardando semelhanças, de acordo com Marchi (2006, p. 61) com as violas portuguesas Amarantina, Braguesa, Toeira, Beiroa, Campaniça e da Terra.

IMAGEM 22 – Detalhe da Viola Beiroa (portuguesa) e a Meia-corda (em detalhe) e a posição Intaivado (João Pires - Barra de Ararapira) na viola fandangueira (Brasil)

Fonte: (Viola Fandangueira) Zé Muniz (2014) / (Viola Beiroa) meramente ilustrativa.

Tinhorão (1990. apud Vilella, 2011, p. 122) cita a mais antiga referência a utilização do instrumento no Brasil, em Pernambuco, numa encenação por

138 No litoral paulista as viola artesanais próprias para o Fandango Caiçara, recebem o nome de “Viola Branca”, conforme analisado por Ferrero (2007) que estuda o uso da Viola Branca em Cananéia e Iguape/SP; Vilella (2011) em capítulo intitulado “pausa para viola” aborda as origens históricas do instrumento; também o Fandango, ou baile, é chamado de Baile de Viola.

139 Os M’byás, da etnia Guarani, utilizam em seus ritos xamanísticos de canto e dança (Jeroky, Purahéy) na Casa de Reza (Opy), a viola/ão (M’baraká), a Rabeca (Ravé), ambos confeccionados a partir da Caxeta (Tabebuia cassinóides), além dos instrumentos M’tambó (espécie de bumbo, tambor), o M’baraká mirĩ (espécie de chocalho com purungo/cabaça), o Popiguá (duas varetas de percussão) e o Takuapú (instrumento feminino, uma espécie de bastão/claves, feitas de bambu, batidas ao chão).

ocasião da festa do Santíssimo Sacramento, em 1580, aparecendo também em inventários a partir do início do século XVII.

Difundida aos rincões, principalmente pela evangelização jesuítica, integra-se a diversas linguagens/manifestações culturais como a Folia de Reis, Romaria do Divino Espírito Santo, Repentes, Cururus, Cateretês, Moda-de-Viola, dentre outros e adaptando-se de acordo com cada região, no caso a Caiçara, sua fabricação artesanal, a partir de algumas madeiras da Mata Atlântica, com forte predomínio da Caxeta.

IMAGEM 23 - Viola de Aro, em Caxeta – primeira confeccionada por Anísio Pereira (pertenceu a Marcelo José Mendonça)

Fonte: Zé Muniz (Guaraqueçaba, 2002).

Vale lembrar que, no Fandango Caiçara, há uma história (ver a Nota de Rodapé nº 127, na página 88) acerca da origem da viola fandangueira, tendo sido nos deixada pelo saci – exímio violeiro e amante de Fandango.

Araújo (1967), considerando a viola Paulista, a Cuiabana, a Angrense, a Goiana e a Nordestina, destina um estudo (p. 433-451) descrevendo e fazendo comparações entre a viola Paulista – encontrada no interior daquele Estado e a viola Angrense140 – (do Litoral) – encontrada no litoral e cidades do Vale do Ribeira de Iguape:

sua origem é remota. No baixo Latim encontramos: vidula, vitula, viella ou fiola, mas nenhum destes vocábulos serviu para designar a

140 Chamada assim por ter encontrado um dos últimos “fabriqueiro” em Angra dos Reis, porém, em características muito semelhantes também se fabrica no litoral paulista.

nossa viola, tratava-se de um violino pequeno, um tetracórdio. Era a viola-de-arco, uma espécie de rabeca. A nossa viola também é bastante idosa, veio de Portugal e ao aclimatar-se em terras brasileiras sofreu algumas modificações, não só na sua anatomia, bem como no número de cordas. É a lei da evolução. (ARAÚJO, 1967, p. 434).

“a Viola é uma das coisas que se deve querer bem porque a viola dá amores a quem não tem”.

(“pé de moda” recolhido com José Hipólito Muniz).

“Quase nasci em cima de uma viola”, dizia Leonildo Pereira (2009), demonstrando os fortes vínculos do violeiro de Fandango Caiçara com seu instrumento, desde a mais tenra infância quando apenas observava os familiares mais velhos, mais tarde também como violeiro, afamado, portanto, figura esperada a cada Fandango; Antônio Alves Pires (2004) enfatizava que

“eu era muito doido por uma viola”; já Pedro Lopes, de acordo com relato141 da viúva Narcinda Lopes (2005)

ele [o falecido marido Pedro Lopes] começô a tocá de idade de 8 anos. [anos mais tarde] Quando a filha compro pra ele, era todo dia.

Aí ele falô até que amava mais a viola do que o próprio filho. Antes de falecê ele pediu que colocasse a viola no caixão com ele. Mas naquela hora a gente não lembro né, esquecero. Pois não é que ele veio no sonho do filho, falá da viola. Então o filho sonhô co pai que vinha pedi a viola.

Há um grande respeito do violeiro pela sua viola, pois é ela que reaviva suas lembranças dos ‘tempos de dantes’; papai, como já descrito, não toca em grupo de Fandango, mas em momentos específicos está com sua viola, sempre ‘meio’ retirado, tocando e cantando, relembrando momentos de sua vida quando ainda em Barra de Ararapira; são momentos apenas dele, sua viola e suas lembranças, por isso, muitos violeiros, guardam-na em locais

141 Logo após o falecimento do dono, o instrumento perde a função de uso e algumas famílias passam a guardar o instrumento como recordação do ente querido (encontrei em Barra de Ararapira violas e rabecas nesse sentido); em Rio Verde costumava-se queimar a viola logo após o falecimento de seu dono.

específicos, longe do alcance dos curiosos142, entre estes, os próprios filhos, conforme Vicente França (2002) conta, pois aprendera a tocar com a viola do pai, mas a pegava escondido, apenas quando este saia para a roça.

Já papai (2007), ganhara uma viola de vovô [Leandro Muniz], quando este percebera que se interessava e aos poucos aprendia:

[referindo-se aos tempos de infância] quando lembro tenho saudade e toco minha viola pra consolar, pois aprendi a tocar viola com meu pai, eu já tinha 13 anos quando meu pai comprou uma viola de caxeta, lá no Marujá, do senhor Antônio Pontes, eu fui buscar e voltei muito contente com a viola, pois sabendo tocar eu tinha mais vez no fandango, pois eu dançava e fazia os outros dançar.

2.7.4.4 “o violeiro morre de velho”

“a minha viola é gente come comigo na mesa a alegria dela alegra minha tristeza”

(“pé de moda” recolhido com José Hipólito Muniz, em 2017).

Conforme Araújo (1967) “é inegável o poder que ela [viola] possui”, pois ela tem “função medicinal” de “cura as doenças, mata a saudade, elimina a tristeza, realiza a psicoterapia profunda melo-medicinal” (p. 449), porém, o antropomorfismo (características humanas) dado ao instrumento – cabeça, braço, costas, boca, orelha, pestana - faz com que “a viola padece de muitas doenças que atormentam o ser humano”, assim, ela “resfria, ‘constipa’, apanha

‘quebranto’, fica rouca ou fanhosa, se ‘destempera’ e chega até a ficar reumática”.

Para evitar esse mal, cada violeiro traz consigo rezas e simpatias143 com intuito de resguardar seu instrumento contra o mau olhado, podendo oferecê-lo

142 O violeiro tem incondicional amor por sua viola, pois não deixam outra pessoa tocar nela, muito menos hoje em dia, quando pesquisadores e visitantes pegam-na e tentam fazer notas musicais ou executar outros ritmos; a esse fato note-se, no entanto, as violas feitas por motivação comercial, perdendo valores intrínsecos.

143 Sobre pactos de violeiros com o “tinhoso”, Marchi;Saenger;Corrêa (2002) apresentam alguns depoimentos de fandangueiros onde o tema é constante; ver também Vilela (2004;

2011), afirmando que a “habilidade de tocar muitas vezes está associada a algum pacto”; Já Pereira (2008) descreve e analisa narrativas sobre pactos, seus significados sociais e

à São Gonçalo, quando amarram uma fita branca nos braços da viola ao tocar a moda dedicada a este santo, ou mesmo trazendo neste, fitas brancas e vermelhas, retiradas da Bandeira do Divino Espírito Santo.

IMAGEM 24 - ‘cabeça’ da minha viola com fitas de ex-votos e imagem do Divino Espírito Santo

Fonte: Zé Muniz (Guaraqueçaba, 2010).

Ainda contra a inveja de outros supostos violeiros, que podem arruinar seu instrumento apenas jogando um cabelo dentro d’ele ou também colocando um dente de cobra dentro de sua própria viola, colocam-na um pedaço de algodão, acreditando este limpá-lo; nesse mesmo intuito, serve a cabeça de besouro144 (Coleópteros), conforme viola de Alziro Pedro, que em certa feita, apostou com três violeiros que vieram de Cananéia/SP a um Fandango em Utinga, para ver qual instrumento tocava mais; ao amanhecer do dia, os três amarraram suas violas a reboque no carro, levando-as de volta, cumprindo o combinado acaso suas violas perdessem.

Para que, com sua companheira viola, possam tocar e cantar melhor, alguns violeiros colocam dentro do seu instrumento o ovo145 do inseto Mamangava (Xilocopa Spp), ou uma Cigarra (Cicadidae), seca, podendo passar sobre os próprios peitos, assim, ficar como “a cigarra, que cantando vai ao dia”, ou mesmo o guizo da cobra Cascavel (Crotalus durissus).

simbólicos, com violeiros mineiros; ver também o vídeo [20:09Min] “O violeiro Paulo Freire Pacto com o demônio”, disponível no site <https://www.youtube.com/watch?v=_7pnQNoySio>.

144 O besouro macho deve ser morto na Lua Minguante, deixando sua cabeça cair, devendo embolá-la com algodão e então colocada dentro da viola.

145 Consiste em furar o ovo com agulha e colocar dentro, porém não pode dizer o nome da Mamangava na hora de pegar o ovo e não pode contar para ninguém.

Era frequente a realização de porfias146 (prufia ou aprofiá), ou seja, disputas realizadas entre os violeiros, em “violada e verso”, como lembra Dorçolina Amorim (2002), quando testavam tanto a qualidade sonora do instrumento, quanto a capacidade do violeiro em tocar e criar versos; Anísio Pereira (2002) lembra que “o melhor violeiro era quem gostava de tocar mais.

Entrava um e outro violeiro, tocavam e saiam e ele continuava tocando e era o melhor”, contando de certa vez em que saíra sangue de seus dedos de tanto tempo que levou tocando viola durante um Fandango.

José Hipólito Muniz (2008) relembra uma porfia contada pelo seu pai:

eram dois violeiros bons. O meu avô Antônio Matias Pires com um tal de Manoel, foi mais ou menos há um 100 anos atrás. Os nome do violeiro, Manoel, Manoel. O meu avô respondeu de lá:

“Da Palmeira nasce a Palma baseada no ‘ouvir’, desconhecendo, portanto, métodos148 musicais, pois

146 Reconhecido fandangueiro e vencedor de porfias era Bento Cego, de Antonina, que teve

sua biografia registrada por Castro (1902), Rocha Pombo (1900), Leão (1926), Carneiro (1979) e Pinto (2005; 2006), reportado ainda no Jornal Diário do Paraná (Ed. de 03 de abril de 1973), além do vídeo-documentário “Bento Cego” dirigido por Pioli (2001).

147 De acordo com Roderjan (1981, p. 30) a característica mais importante do Fandango está na melodia, pois são construídas em “escala diferentes dos modos maior e menor ocidentais, apresentando a 4ª aumentada e a 7ª menor dos modos Lídio e Mixolídio medievais. Soam aos nossos ouvidos estranhamente, daí muitos dizerem que os caboclos desafinam”. Corrêa (2002) apresenta instrumentos encontrados pelos Brasil, suas características e afinações, como a viola, rabeca, por exemplo.