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5. CARACTERIZAÇÃO DA ROTINA EM UMA CLASSE DA ESCOLA SONHO E FANTASIA

5.2 A PRESENÇA DA OCIOSIDADE

Enfocando ainda a distribuição dos tempos na Educação Infantil, Barbosa (2006) nos adverte de que o tempo não pode ser rígido, mecânico ou absoluto, nem acelerado demais ao ponto de incentivar as crianças pequenas a iniciar determinadas atividades cada vez mais cedo ou cada vez mais rápidas para adquirir maior número de habilidades a fim de preparar-se para o mercado. Segundo a autora, as escolas de Educação Infantil não podem se submeter a uma agenda de atividades adultas - como horário para informática, inglês, atividades esportivas, - no intuito de qualificação e competição para o trabalho.

Na programação da sala do Jardim II também foram observados alguns momentos em que as crianças ficavam ociosas. Os diferentes instantes que se sucediam durante a manhã seguiam uma mesma ordem todos os dias: acolhida, tempo ocioso, escrita da agenda, tempo ocioso, lanche, recreio, descanso, atividade dirigida pela professora, tempo ocioso. As crianças sempre esperavam um pouco menos no começo da manhã quando a professora normalmente só chegava uns dez a quinze minutos depois que elas já estavam na sala à sua espera e quando ela ia buscar sua água. Antes do lanche e da saída para suas casas, as crianças esperavam em torno de 30 minutos sentadas no chão. Parecia não haver uma preocupação em planejar os diferentes momentos, de modo a não haver ocasiões de longa espera.

Geralmente, os momentos durante os quais as crianças ficavam ociosas eram depois da acolhida, pois a professora quase sempre chegava de dez a quinze minutos atrasada, no intervalo do lanche para o recreio, e depois do parque, quando terminavam a tarefa e ficavam sem fazer nada. Então, elas já pegavam suas mochilas e sentavam-se no chão perto da porta para esperar a hora de ir para casa. Essa conduta já fazia parte da rotina: antes do lanche, quem terminava a tarefa logo se sentava para esperar a hora de ir para o refeitório; depois do lanche, quando chegavam à sala, se já tivessem terminado a tarefa também deveriam sentar-se

perto da porta para esperar pelo recreio. Quando voltavam do recreio, quem terminava a tarefa ia sentar-se perto da porta para esperar o momento de ir para casa:

A primeira criança que terminou de escrever às 8h32min guarda a agenda na mochila e vai sentar perto da porta para esperar a hora do lanche e quem vai terminando senta atrás de quem já está esperando a hora do lanche. Todos saem para o lanche às 8h58min. (Diário de campo 06.01.2010).

Depois da merenda, as crianças que já tinham terminado sua tarefa e não tinham trazido lanche de casa, foram sentar perto da porta para esperarem a sineta tocar para o recreio. (Diário de campo 22.02.2010).

As 10h38min as crianças começaram a terminar suas tarefas e mostrar para a professora e ela diz: “agora guardem as coisas e sentem para esperar ir para casa”. (Diário de campo 01.03.2010).

Resumindo, cada período de espera consumia em torno de 15 a 30 minutos. Vale ressaltar que, nas últimas observações, percebi que a professora tentava preencher esse tempo ocioso, oferecendo às crianças massa de modelar ou pequenos blocos.

Espera e ociosidades não foram encontradas somente neste trabalho. A pesquisa de Andrade (2002) revelou que a rotina do cenário pesquisado era marcada por momentos de espera e ociosidade. Segundo a autora, as atividades indicadas na rotina da creche não ocupavam o tempo de permanência das crianças na mesma, pois das dez horas de funcionamento da instituição em mais de 40% desse tempo não havia nenhuma atividade prescrita no roteiro da rotina. Assim o tempo era preenchido por esperas e esperas ociosas e disciplinadas. A autora ainda relata que nestes momentos o objetivo das professoras parecia ser o de impedir que as crianças fizessem outra coisa que não fosse esperar. Quem não sabia esperar tinha que aprender. Considero muito grave a denúncia feita nesta referida pesquisa, a qual afirma que, para ensinar as crianças a esperar, as professoras utilizavam os castigos morais e físicos e as repreensões. Constatou-se a não consideração dos desejos da criança, a indiferença ao choro, o desrespeito às suas necessidades, gritos e ameaças das professoras.

Vale ressaltar que Andrade (2002) chama atenção para as características do atendimento nessa creche comunitária. Ela relata que as crianças assim como os adultos que fazem parte dessa instituição são vítimas do descaso pelo Poder Público que mantém a creche funcionando mesmo dessa forma. Os sentimentos, cansaço, necessidades, direitos, tanto das crianças quanto das professoras não tem sido alvo de preocupação desses poderes. Assim,

tanto as professoras como as crianças têm que se adaptar à rotina da creche nesse modelo disciplinador, dominante e modelados que torna os indivíduos obedientes e submissos. A mesma autora sugere ser urgente que os órgãos competentes ensejem às pessoas que lá trabalham, momentos sistemáticos de reflexão sobre o que e como realizam o seu trabalho.

Em minha pesquisa, o tempo ocioso de espera também foi encontrado. E, mesmo implicitamente, a professora demonstrou ter consciência de que esse tempo poderia ser otimizado, uma vez que ela própria distribuía massas de modelar ou blocos para as crianças passarem o tempo. Esses episódios de oferecer algo à criança nos tempos ociosos começaram a ser observados após a primeira semana de observação. Essa atitude demonstra que a professora percebe que as crianças poderiam fazer alguma coisa nesse momento ou reconhece sua omissão em não planejar atividades mais elaboradas nas quais as crianças possam brincar, desenvolver sua imaginação, desenvolver sua curiosidade ou expressar-se.

Apesar de a rotina da sala não permitir as crianças atividades diversificadas em que elas pudessem escolher o que fazer, nos tempos de ociosidade elas criavam, cantavam, brincavam com as mãos, com os pés, com o corpo de várias maneiras (colocavam a perna para cima, balançavam a cabeça etc.). Em alguns momentos, a professora deixava-as livres, sem reclamar do barulho, mas em outros ela reclamava. Assim a referida professora apresentava uma atitude ambígua em relação às regras, isto é, não eram claras. Quando a professora reclamava do barulho, as crianças se continham, mas não deixavam de conversar com seu colega do lado.

Vale ressaltar que exigir o cumprimento das regras, como “fazer silêncio” em alguns momentos e em outros não, necessita de uma explicação por parte da professora para que as crianças tenham um sentimento de propriedade da regra e uma disposição para aplicá-las corretamente. Segundo De Vries e Zan (1998) “quando se sentem donas das regras, as crianças recorrem a elas quando elas são necessárias ou quando outros não as obedecem”. (P.150).

O estabelecimento de regras representa uma clara oportunidade para que as crianças exercitem sua autonomia, pois como essas autoras explicam; ao envolvê-las na elaboração das regras, o professor pode estar contribuindo para o desenvolvimento da autonomia uma vez que, o ambiente passa a ser permeado pelo o respeito mútuo e desta forma, adultos e crianças praticam a auto-regulagem e a cooperação.

Quando a professora reclamava do barulho, as crianças continuavam a conversar com seu colega num tom de voz mais baixo, na tentativa de obedecer à solicitação da professora.

Esse era um dos momentos em que as crianças não cumpriam exatamente o que havia sido proposto e se expressavam espontaneamente:

Enquanto estão na fila esperando, as crianças mais uma vez conversavam, sorriam, pegavam algo do cesto do lixo (uma capa de caderno) que ficava próximo a elas e começavam a brincar. Mas a professora nesse momento as repreendia para elas ficarem caladas e quietas. Elas continuavam a conversar: “você disse que era meu amigo”, a outra diz: “todo mundo é amigo, oi amigão” e assim conversam vários assuntos: desenhos animados, cantavam músicas natalinas. (Diário de campo 01.03.2010).

Enquanto esperam as crianças criam brincadeiras; algumas começam a correr na sala e a professora pede para elas sentarem. Marcos continuava a correr e a professora mais uma vez chamava sua atenção, então ele sentou. Enquanto as crianças brincavam umas com as outras, Leo ficou isolado num canto da sala só observando, depois ele se aproximou dos meninos que estavam tentado tirar a etiqueta que estava na sandália de Caio. Suzeana estava brincando sozinha com um pequeno carrinho de plástico, Natali e Raissa brincavam com uns bonecos. (Diário de campo 22.02.2010).

O fato demonstra que a infância tem sua cultura própria e mesmo ficando ociosas, as crianças são capazes de romper com uma rotina que não leva em conta a imprevisibilidade e o inesperado. Nesses momentos, as crianças atuavam como protagonistas, ao ponto de modificar o cenário que era organizado para vivências únicas.

Para Gouveia (2008), “a criança tem uma produção simbólica diferenciada. Mesmo sendo um sujeito ativo no processo de socialização, a criança tem uma peculiaridade, advinda de seu lugar no mundo social”. (P.111). Ao interagir com o adulto, a criança recebe, significa, introjeta e reproduz valores e normas tidos como expressões da verdade. Assim, essa autora considera que a criança tem um papel ativo em seu processo de socialização e que, pelas interações sociais, significa e interpreta o mundo em suas ações. Isso significa dizer que “existe, para além da estereotipia, uma singularidade nas produções simbólicas e artefatos infantis, que configuram o que a sociologia da infância define como cultura infantil”. (P. 111)

Para Sarmento (2004), a questão central na definição da cultura infantil é a interpretação da autonomia de tal produção. Na sala observada, as crianças criavam suas brincadeiras, mesmo que a professora não sugerisse ou ensinasse algo para elas realizarem nesses momentos de espera. As crianças simplesmente brincavam de formas diferentes. Assim, em interações com as crianças e com os adultos, meninos e meninas revelam a cultura em que se inserem, fazendo-o de modo distinto da cultura adulta, que “veicula formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo” (2004,

p. 111). As ações de brincar das crianças, enquanto esperavam, expressavam, além de sua própria cultura, a necessidade de mais momentos em que pudessem socializar suas criações e suas diversas expressões.