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Capítulo 2 – Expressão da perfetividade e da imperfetividade em Português Europeu e em

2.2. Pretérito imperfeito do Português Europeu

O pretérito imperfeito, tal como l´imparfait em francês, perspetiva situações no seu decurso sem veicular qualquer informação nem sobre o seu início nem sobre o término, como afirma Grevisse (1995: 190), “en général, l´imparfait montre une action en train de se dérouler dans une portion du passé, mais sans faire voir le début ni la fin de cette action; elle la montre en partie accomplie, mais non achevé.”

O pretérito imperfeito parece ser o presente do passado, ou seja, representa o presente no passado. Portanto, podemos dizer que os dois tempos verbais partilham em comum a natureza do aspeto imperfetivo: a interpretação da leitura habitual, a descrição de acontecimentos e a utilização em frases genéricas10.

Primeiramente, em relação à leitura habitual, o pretérito imperfeito, que funciona como o presente do indicativo, pode apresentar o aspeto habitual e denotar situações habituais e repetidas no passado quando se combina com predicados eventivos, como se ilustra nos seguintes exemplos:

9 Correia, H., (1982): O Número dos Vivos, Lisboa, Relógio d´Água Editores: 33.

10 Trata-se de frases que explicam uma propriedade típica de uma entidade ou de um conjunto, como, por

exemplo, “A Maria bebe café”, “Os carros podem funcionar com biodiesel”, “Os carros têm quatro rodas” e “Os portugueses gostam de bacalhau”.

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(5) a. O que é que a Alexandra fazia quando andava no colégio? b. Eu levantava-me todos os dias às 6h00 da manhã.

c. Na escola, tínhamos sempre aulas das 8h00 até às 13h00. d. Depois da escola nunca faziam os trabalhos de casa.

Nesse caso, podem usar-se expressões adverbiais de periodicidade, que veiculam informações sobre a frequência no passado como “todos os dias” em (5b) e “sempre” em (5c). As formas adverbiais deste género mais comuns são sempre, frequentemente, nunca,

todos os dias, aos sábados, etc. Aliás, a estrutura costumar + inf. também contribui para

a interpretação da leitura habitual, que assinala uma repetição regular e habitual duma situação localizada no passado e afastada do presente quando o verbo “costumar” também está no imperfeito. Vejam-se os exemplos a seguir, em que a dada estrutura favorece a leitura habitual:

(6) a. À sexta-feira à noite costumava ficar em casa, mas agora saio sempre. b. Quando morava na cidade, costumava andar de carro; agora moro no campo

e ando a pé.

Tal como o presente, o pretérito imperfeito também se caracteriza pelo aspeto habitual em frases complexas como numa oração adverbial temporal marcada por quando ou numa construção condicional introduzida por se, em que se destaca uma repetição habitual duma situação (Oliveira, 2013: 521):

(7) a. Quando a Maria chegava, o Rui levantava-se.

b. Quando ela estava com sono, ia buscar a almofada e deitava-se no chão. c. Se o Manel chegava tarde a casa, o pai ralhava-lhe.

Em segundo lugar, além da leitura habitual, o pretérito imperfeito é usado para descrever acontecimentos que tiveram lugar no passado como contínuos ou permanentes. Assim, permite-nos a considerar os eventos do passado como se fossem situações

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localizadas no presente, mas efetivamente opõem-se à realidade no presente. A fim de exprimir a continuidade e duração dum acontecimento, combinamos o pretérito imperfeito geralmente com as formas adverbias de tempo como dantes, antigamente,

noutros tempos, que nos indicam passado longínquo. Nesse sentido, vale a pena sublinhar

que podemos empregar este tempo verbal a indicar a idade e as horas no passado. Vejam- se os seguintes exemplos:

(8) a. Antigamente moravam numa vivenda.

b. Naquele tempo havia pouco movimento na aldeia.

c. As índias adaptavam-se mais facilmente à civilização, pois se consideravam elevadas pela união com os brancos, que não as desdenhavam.

d. A minha mãe tinha 18 anos e o meu pai tinha 20 anos quando se conheceram. Eram muito jovens.

e. Ainda não eram 8h00 quando saímos de casa.

Além disso, como o pretérito imperfeito indica uma situação numa porção temporal do passado sem se referir nem ao começo nem ao fim (Grevisse, 1995: 190), os predicados no pretérito imperfeito que denotam estados temporários (de fase ou de estádio) ou eventos oferecem o contexto temporal e aspetual para outra situação no pretérito perfeito simples (ou no pretérito imperfeito quando existe), estabelecendo uma relação de inclusão da situação no pretérito perfeito na que se apresenta no imperfeito, como é o caso de (9a,b,c) e de sobreposição em (9d) com os dois predicados no imperfeito:

(9) a. Ontem à noite eu não tinha fome. Por isso, não comi nada. b. Quando nós encontramos a Marta, ela trazia um vestido preto. c. Eles viram um acidente na autoestrada quando vinham para Lisboa. d. Enquanto a Ana tomava duche, a irmã fazia as camas.

Como vemos, o tempo de referência é introduzido por uma frase independente no exemplo (9a). Em (9a), o tempo denotado pela frase “não comi nada” está incluído no

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intervalo do tempo apresentado pela frase “ontem à noite eu não tinha fome”, ou seja, a situação durativa descrita pela frase “ontem à noite eu não tinha fome” constitui um contexto em que acontece outra situação, que é “não comi nada”. Em relação ao adjunto adverbial, pode ser uma oração subordinada ou não. Quando o adjunto adverbial é uma oração subordinada introduzida por enquanto, quando (como em (9b, c, d)), a situação descrita pelo verbo no pretérito perfeito simples normalmente está incluída no tempo passado denotado pelo pretérito imperfeito. Por exemplo, em (9b), o encontro com a Marta está incluído no tempo de trazer um vestido preto, que se pode prolongar para além do encontro. Em (9c), a frase reflete que eles testemunharam o acidente durante a sua viagem para Lisboa. No entanto, em (9d), o tempo denotado pela oração principal e pela oração subordinada sobrepõe-se. Quando o adjunto adverbial não é uma oração subordinada como a frase “ontem o João estava contente”, o intervalo de tempo indicado pelo advérbio ontem está incluído ou sobrepõe-se no intervalo de tempo da situação de estar doente. Por isso, considera-se que não é adequado usarmos o pretérito imperfeito sem um tempo de referência. Por exemplo, a frase “o João estava doente” não é aceitável por causa da falta do tempo de referência “ontem”, mas o pretérito perfeito é completamente adequado neste caso como “o João esteve doente”. Por isso se pode dizer que, na maior parte dos casos, o imperfeito é um tempo anafórico (cf. Oliveira, 2004). Assim, podemos dizer que criamos relações de sobreposição ou de inclusão entre o tempo do pretérito imperfeito e o tempo de referência denotado pelo advérbio ou pela oração temporal (Oliveira, 2013: 519).

No que diz respeito à expressão de relações temporais de inclusão e de sobreposição, é mais comum usarmos a construção progressiva estar a + inf. com o verbo auxiliar “estar” no pretérito imperfeito do que apenas o verbo pleno simples no pretérito imperfeito, caso o predicado da frase seja eventivo. Quando se combina com um evento, o operador aspetual “estar a” comporta-se, de certa forma, como um estado por causa da sua natureza aspetual progressiva, que dá ênfase ao decurso duma situação e a torna durativa, continuada e incompleta sem considerar nem o seu início nem o fim. Por isso, a utilização do imperfeito é mais natural com o progressivo, especialmente quando não existe um adjunto com valor temporal na frase, como em (10c) e em (10d) (Oliveira, 2013: 522).

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Vejam-se os seguintes exemplos:

(10) a. A Inês estava a ler quando o telefone tocou.

b. Os alunos estavam a trabalhar quando o professor entrou. c. O João estava em casa. A Maria estava a trabalhar no escritório.

d. Hoje de manhã vi a Anabela. Estava a tomar o pequeno-almoço no café.

Por fim, tal com o presente, o pretérito imperfeito também pode ser usado em frases genéricas, que descrevem características típicas ou essenciais das espécies, ou de outros tipos de entidades, como se ilustra em (11):

(11) a. O homem de Neandertal não tinha linguagem articulada. b. Os dinossauros eram herbívoros.

c. Os cães eram animais selvagens. d. O meu amigo era natural de Tibete.

No entanto, é mais natural, em frases (11a), (11b) e (11d), considerarmos que o referente de sujeito (“o homem de Neandertal”, “os dinossauros” e “o meu amigo” nestes casos) deixa de existir enquanto que o referente em (11c) ainda existe, só que o predicado já não se lhe aplica (ou seja, ainda há cães neste mundo, mas são agora animais domésticos). De acordo com Oliveira (2004, 2013: 518), os predicados estáveis podem ser classificados em duas categorias diferentes em relação à sua utilização com o pretérito imperfeito: os que denotam propriedades permanentes (como (11d)) e os que não denotam propriedades permanentes.

Independentemente de predicados estáveis diferentes, o estado descrito numa frase pelo verbo no pretérito imperfeito exprime a ideia de que a situação não existe no momento da enunciação, mas as razões não são iguais. Por um lado, os predicados estáveis, cujas propriedades acompanham o referente do sujeito ao longo da sua vida toda, permitem-nos inferir que o indivíduo já não existe. Por exemplo, a frase (11d) normalmente é interpretada como o meu amigo faleceu, visto que o lugar de nascimento

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de alguma pessoa é um fator inalterável. Por outro lado, os predicados estáveis não permanentes, que denotam propriedades alteráveis dum indivíduo, podem ter duas leituras diferentes quando se combinam com o pretérito imperfeito: (1) o referente do sujeito já não existe no mundo; (2) o estado que o predicado descreve já mudou, apesar de o referente do sujeito ainda existir. Por exemplo, a frase “aquele senhor era o meu professor” pode significar que o senhor mudou de profissão, que já não é meu professor ou que o senhor faleceu. No entanto, pragmaticamente, como sabemos que os cães ainda existem mas o homem de Neandertal e os dinossauros não, é preferível escolhermos somente a primeira leitura relativamente aos exemplos (11a, b) e a segunda leitura quanto ao exemplo (11c).

2.3. Distinção entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito em Português