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PRIMEIRA E SEGUNDA VIAGENS À EUROPA: A ALTERIDADE

Arthur Rubinstein, juntamente com mais alguns brasileiros, convenceram as famílias Guinle e Penteado, com alguma subvenção do governo brasileiro, a patrocinar todos os custos da primeira viagem de Heitor Villa-Lobos a Paris, em 30 de junho de 1923, haja vista a notória crítica situação financeira em que se encontrava nosso compositor.

“Não vim aprender, vim mostrar o que fiz. Se gostarem ficarei; se não, voltarei para minha terra” (HORTA, 1987, p. 44; GUÉRIOS, 2009, p.152). É com este objetivo que Villa- Lobos chega à cidade-luz. Ademais, a “Ville Lumière” era um polo artístico e intelectual e não socioeconômico desde a Belle Époque20. Um símbolo de um espaço internacional de criação, principalmente na década de 1920, quando a França ansiava por apreciar e conhecer

outras estéticas que não a francesa (FLÉCHET, 2004, p. 27). De fato, antes de Villa-Lobos, precursores do nacionalismo brasileiro, como o compositor Alberto Nepomuceno e Alexandre Levy, por exemplo, fizeram passagem por Paris. Sem atingir a notoriedade de Villa-Lobos, e ainda que tenham vivido pouco, Nepomuceno, 56 anos e Levy, 27, contribuiram nos difíceis primeiros passos do nacionalismo brasileiro (MARIZ, 1994). Legendárias pianistas brasileiras, como Magda Tagliaferro e Guiomar Novaes, também já haviam residido naquela cidade, atingindo grande notoriedade, além de outros artistas brasileiros.

L’altérité, como se refere várias vezes Anais Fléchet, foi Villa-Lobos: o índio

branco, o exótico, o primitivo em contraponto à dominante civilizada e histórica cultura europeia. Saliento que Fléchet, em sua narrativa sobre alteridade, ecoa o historiador francês François Hartog e o antropólogo Francis Affergan, no qual “o outro está essencialmente longe e desejado, e desejado porque longe”. Sob este ponto de vista, nosso compositor não estaria quebrando algum paradígma de “cosmopolitismo”, pois estaria na esteira dos russos, eslavos e espanhóis, incluindo-se no “surgimento dos nacionalismos musicais” (FLÉCHT, 2004).

Como Villa-Lobos formara importantes amizades no Brasil, principalmente junto ao pianista A. Rubinstein e ao compositor francês Darius Milhaud, que residia em Paris, sua chegada foi bem-vinda, ainda que como profissional ele não fosse nem um pouco conhecido. Em Paris, uniu-se a músicos e foi apresentado ao compositor e pianista brasileiro Souza Lima,

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A Belle Époque (expressão francesa que significa bela época) foi um período de cultura cosmopolita na história da Europa que começou no fim do século XIX (1871) e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914.

que muito o apoiou. Conheceu artistas europeus, como Edgar Varèse, Pablo Picasso, Florent Schmitt, Jean Cocteau, bem como os brasileiros que lá residiam, Vera Janacópulus, Anita Malfatti e Victor Brecheret.

Nosso compositor revisava suas obras antigas e compunha novas, apresentava-se pouco a pouco em algumas salas de concerto de Paris; todavia, destacamos o concerto de importância maior ocorrido na Salle des Agriculteurs, em 30 de maio de 1924. Nesta ocasião, um marco para o brasileiro, a primeira audição de sua obra para orquestra de câmara Noneto

(RJ-Paris, 1923), com a indicação: “Impressão Rápida de Todo o Brasil” e datação ainda, sob dúvida, obteve satisfatória aceitação pública e de crítica. A reconhecida crítica francesa Suzanne Demarques, por ocasião da premiere, declarou a notável habilidade técnica do jovem compositor, criativa utilização da percussão, bem como outros belos efeitos de instrumentação (HORTA, 1987, p. 109; FLÉCHET, 2004). Boris de Schooezer, em crítica à imprensa, também observa a instrumentação e a preocupação com a sonoridade proeminentes em sua obra, salientando as fórmulas rítmicas e valorizando a métrica do compositor, bem como chamando a atenção para a influência “stranvinskiana” (FLÉCHT, 2004). Eero Tarasti compara o Noneto com L'Homme et Son Desir (1917-1918) de Darius Milhaud, acrecentando que "the climax of Nonetto is one of the most impressive of the whole production of Villa- Lobos" (TARASTI, 1995a).

Sobre esta influência “stravinskiana”, Paulo de T. Salles, assim como veremos em

Uirapuru, atenta-nos identificando, no início do Noneto, um trecho do solo do saxofone,

semelhante ao conhecido solo do fagote em Le Sacre du printemps (SALLES, 2009, p.106):

O sucesso do Noneto, acredita M. Newger (2009), deve-se ao fato da utilização sem receios e abundantemente da riqueza rítmica brasileira e de instrumentos nativos, não se importando em quebrar quaisquer paradigmas. De fato, a riqueza rítmica aplicada à obra com diferentes acentuações e várias alterações de compasso (ainda que a maioria dos autores atribuam a influência de Le Sacre, que de fato existe), tornaram-se bem originais no contexto completo da obra.

Assim, Villa-Lobos retorna ao Brasil, no segundo semestre de 1924, com uma crítica em nosso País proeminentemente favorável, facilitando o agendamento de muitos concertos, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Inclusive, em 1926, viajou para Buenos Aires, apresentando-se com três festivais sinfônicos para a Asociación Wagneriana daquela capital (MARIZ, 2005).

Todavia, sem estabilidade financeira e percebendo criticamente que ainda prepondera a não apreciação de nossa cultura em nosso próprio País (já tendo visto que em outros países o nacionalismo se consolidara), enseja viajar novamente para a Europa. Com convicção, antes de sua viagem, em entrevista ao jornal A Noite, revela:

É na formação das artes de um país que existe a cega necessidade imprescindível de colher os principais motivos na sua própria natureza, como fizeram todas as grandes nações que mais se distinguiram pela sua maneira própria de ser, algumas delas chegando a dominar o espírito artístico universal, implantando sugestivamente um Belo que nada tem em comum com o belo de outros povos de temperamento completamente opostos. É verdade que nestes casos resulta sempre num curioso fenômeno de condições e paradoxos. Por exemplo, (sem ironia) no Brasil [...] veneram com eloquência todos os feitos da Grécia/Roma antiga e ridicularizam as façanhas de nossos primitivos selvagens. É isso que se chama talvez, modernamente, esnobismo (VILLA-LOBOS, 1926 apud GUÉRIOS, 2009, p.173).

Retornou a Paris com sua esposa, onde permaneceu de 1927 a 1930, no apartamento da família Guinle. A. Fléchet assevera, após extensa pesquisa e recolher aproximadamente 140 artigos, críticas, programas de concertos que, certamente, a segunda viagem, concedeu o momento de maior sucesso e repercussão da obra de Villa-Lobos na Europa. A escritora e historiadora francesa comenta que, neste período, o compositor e respeitado escritor Florent Schmitt (1870-1958) escreveu sete longas crônicas favoráveis a Villa-Lobos, com acuidade técnica, contextualizando e detalhando suas obras. Foi também agraciado com as críticas de Paul Le Flem e o compositor e crítico Albert Febvre-Longeray reconheceu em Villa-Lobos "a virtude da etnologia extra-musical" para Le Courrier musical. Suzanne Demarquez, para La Revue Musicale, apresenta o compositor como "um erudito do folclore nacional e indígena [...] que se introduzia nos ambientes das raças" (FLÉCHET, 2004, p.75). Villa-Lobos é,

muitas vezes, considerado "selvagem”, "aventureiro" e "primitivo”21 pela imprensa e amigos artistas franceses, mas parece não se importar com esses comentários. Em março de 1927, estabeleceu importante contato com a internacionalmente reconhecida Max Eschig (Éditions

Max Eschig) para publicar suas obras. Como era pouco conhecido e não conseguira uma boa

negociação, comprometeu-se a pagar a metade dos custos das primeiras publicações, entre outras várias cláusulas do contrato (GUÉRIOS, 2009). Posteriormente, com contratos bem mais favoráveis ao compositor, Max Eschig publicou a grande maioria de suas obras.

Envolvido plenamente na atmosfera parisiense, iniciaram-se os concertos e recitais, com a participação de alguns amigos de Villa-Lobos, como Arthur Rubinstein, Vera Janacopoulos, Aline Van Barentzen e Tomáz Terán. O poema sinfônico Amazonas tem sua

premiere na Salle Gaveau. Após a estréia, Adolphe Piriou escreveu a crítica favorável para o Le Monde Musical (p. 23). As primeiras audições dos Choros nº 8 e nº 10 também foram

grande sucesso em Paris. O Choros nº 10, precisamente, foi uma enorme surpresa, com toda a exuberância, grandiosidade e ousadia desta obra, conforme comentamos no capítulo sobre

Choros. Foi excelente a repercução crítica e de público. Consolida-se perenemente o sucesso

e a imagem construída por Villa-Lobos, que em Paris reporta-se fortemente à floresta tropical, elementos indígenas e populares em sua linguagem audaciosa e ímpar.

Refletindo sobre este período, Manuel Negwer conclui:

A mudança de paradigma ocorreu não através da maturidade do compositor, mas do confronto com a atitude de expectativa de um novo grupo de objetivos em um ambiente estranho. E também as próprias expectativas de Villa-Lobos foram confundidas, pois o público parisiense não queria ouvir dele nenhuma música baseada em Debussy (NEGWER, 2009, p. 163-164).

Villa-Lobos realmente recorreu a explorações tímbricas e rítmicas bem ousadas, entre outros aspectos, não demonstradas em suas obras anteriores. Em sua maturidade de compositor, formou-se, como ele mesmo dizia, “sem freios e sem mordaça”; entretanto, sua situação econômica continuava instável.

21

Não confundir com o Movimento Primitivista, iniciado no início do século XX, que influenciou artistas como Picasso, e conterrâneos de Fléchet, como Paul Gauguin.

1.5 RETORNO AO BRASIL E A EDUCAÇÃO MUSICAL E SEU PRINCIPAL LEGADO:

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