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RETORNO AO BRASIL E A EDUCAÇÃO MUSICAL E SEU PRINCIPAL

Com a carreira consolidada e reconhecimento internacional, Villa-Lobos retorna ao Brasil, encontrando o País em agitado momento revolucionário. Era tempo de buscar a identidade em uma educação musical brasileira na elaboração de método durante a Era Vargas (1930-1945), recolhendo material do folclore nacional e reconhecendo a realidade de nossas escolas, adaptando-o pragmaticamente para canto ou canto coral (considerando que adquirir uma quantidade imensa de instrumentos seria financeiramente pouco viável).

Evidencia-se o grande entusiasmo e idealismo em suas palavras: “o canto orfeônico é uma das mais altas cristalizações e o verdadeiro apanágio da música, porque, com seu enorme poder de coesão, criando um poderoso organismo coletivo, ele integra o indivíduo no patrimônio social da Pátria” (VILLA-LOBOS apud RIBEIRO, 1987, p. 90).

O primeiro registro histórico relativo à educação musical no Brasil remonta à chegada das primeiras missões de padres jesuítas à América portuguesa, liderados pelo padre Manoel de Nóbrega, com o objetivo de ensinar a leitura e a escrita, bem como catequizar os indígenas. Para tanto, serviram-se com sucesso do canto e de instrumentos musicais para a catequese e observaram a naturalidade e facilidade de nossos índios, sobretudo com relação à melodia e o ritmo. Nóbrega, presenciando tanto trabalho a ser feito em nossas terras, ao ser nomeado provincial de São Vicente, São Paulo, convidou o padre José de Anchieta para vir para o Brasil. Conhecido como apóstolo do Brasil, ao chegar já se encantou com nossa terra e os indígenas. Além de ser um literato e catequista, continuou com extrema dedicação o trabalho na educação de nossos índios, utilizando-se da poesia, música e teatro e, assim, obtendo toda a simpatia de nossos índios. Villa-Lobos declara:

de Anchieta, precursor da educaç musical. Ele foi o nosso primeiro instrumento de cultura, lidando com geraç

desses processos da verdadeira do homem” (PRESENÇA DE VILLA-LOBOS, 1970, p. 114).

Não há muitos documentos sobre a educação e produção musical naquela época, mas sabe-se, sem dúvida, que o início do trabalho foi árduo e instável, de limitadas dimensões da educação musical nestas terras. Após este início, D. João VI fundou a Academia Imperial de Belas Artes, na segunda metade do século XIX, mas voltada para o desenho, arquitetura,

pintura e construção com pouca ênfase à música. As instabilidades, dificuldades, a ausência de metas e objetivos com focos artísticos e epistemológicos perpetuaram-se por décadas até a proclamação de nossa República. No início do século XX, houve uma tentativa em São Paulo de organizar um trabalho semelhante ao Canto Orfeonico, sem sucesso.

Villa-Lobos, neste momento idealista, extremamente atento às vozes de sua terra e à valorização de nosso folclore, preocupou-se com a educação musical um pouco antes da Era Vargas. Intentava um legado de composições extraídas de nosso folclore para uma educação musical e cívica para as crianças e juventude brasileiras, sem visar, necessariamente, a formação de músicos profissionais. Faz-se aqui um pequeno eco à República de Platão, à educação em música, principalmente através de canções e poesias, que era fundamental para o filósofo, época em que essa disciplina era tão valorizada quanto as demais.

Ao elaborar um projeto de ensino da música, na Era Vargas, cujo governo já estava preocupado com a situação crítica da educação no país, realizando uma grande reforma no ensino, Villa-Lobos conjuga pedagogicamente a cognição básica da música, os elementos do folclore brasileiro e a experiência da prática no cantar do canto orfeônico e, sobretudo, desperta o gosto pela música brasileira. Este ideal e esta convicção de nosso compositor, que convergia com a preocupação e o projeto de 1928 de Mário de Andrade do canto comum, estão claros em outro comentário:

e culturais,

na força poderosa da música, senti que era chegado o momento de realizar uma alta e nobre missão educadora dentro de minha pátria. Senti que era preciso dirigir o pensamento às crianças e ao povo. E resolvi iniciar uma campanha pelo ensino popular da música no Brasil, crente de que o canto orfeônico é uma fonte de energia cívica vitalizadora e um poderoso fator educacional. (VILLA-LOBOS apud RIBEIRO, 1987, p. 88-87).

Em 1931, Anísio Teixeira (Secretário do Departamento de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro), um educador idealista, que vislumbrava o acesso gratuito para todos à educação e cultura, ex-aluno do filósofo e pedagogo americano John Dewey (1859-1952), e também introdutor de sua filosofia no Brasil, convidou Villa-Lobos para colocar em prática seu projeto do canto orfeônico nas escolas brasileiras. Cria-se a SEMA (Superintendência de Educação Musical e Artística), da qual Villa-Lobos foi fundador e presidente, objetivando a criação, organizaçao e implantação do ensino de música nas escolas e também nos conservatórios (GRIECO, 2009).

Assim, em 18 de abril de 1931, a Presidência da República editou o Decreto nº 19.890, que determinou a obrigatoriedade do ensino de canto orfeônico nas escolas

brasileiras. É importante mencionar que nosso compositor não foi o criador do Orfeão22. Todavia, Villa-Lobos foi o primeiro a recriá-lo e implantá-lo no Brasil, com todas as suas peculiaridades e adaptados a nosso contexto e dos ideais nacionalistas e da Escola Nova.

Extraímos do prefácio do volume I do Canto Orfeônico:

Após longos anos de estudos na experimentação da sensibilidade rítmica da mocidade brasileira, quer individual ou coletiva, onde se observa uma relativa facilidade de assimilação intuitiva, embora enfraquecida e duvidosa, quando implantada sob o regime de uma marcação rigorosamente metronômica para definir os tempos regulares de qualquer compasso, cheguei à conclusão da absoluta necessidade de serem ministrados à juventude, marchas, cantos, cânticos ou cantigas marciais.

Acresce, ainda, que as letras sobre melodias ritmadas não só auxiliam a memória – indispensável para gravar, com presteza por audição, os fatores musicais – como despertam maior interesse cívico pelos assuntos patrióticos que encerram este presente livro. (VILLA-LOBOS, Heitor. CANTO ORFEÔNICO, 2011, prefácio).

O compositor reforça, no final desse prefácio, que acredita que a juventude brasileira talvez se sinta constrangida ou receosa por não ter recebido a educação do “ritmo da vontade”.

Ao nos aproximarmos - na reflexão filosófica, neste momento, na questão da música folclórica, aqui teríamos um exemplar da música atuando como linguagem na concepção do linguista e estruturalista francês F. Saussure (1857-1913). Ainda que se possa considerar restrita sua dialogia: “signifiant et signifié”, a melodia e letra de origem folclórica, constituindo um signo, perpassada oralmente por gerações, sobreviveu a séculos. Assim, confere-se a elas importante significação cultural e social, pois eram cantigas na língua portuguesa transmitidas com caráter de socialização e ludicidade. Ambas não podem ser separadas, pois a diacronia encontrou sua forma na sincronia, constituindo um todo e consequentemente uma identidade de nossa cultura. Para Villa-Lobos, o interesse é a memória, a educação cívica, a disciplina e a socialização, prescindindo um fulcro essencialmente estético com seu Canto Orfeônico. Os cantos folclóricos criaram vida e circulavam por nossa cultura e tornaram-se mais uma entre as tantas expressões das obras de Villa-Lobos. Veremos no capítulo dois e três, à luz de Charles Peirce e comentadores contemporâneos, que o dinamismo, multiplicidade de estilos e gêneros e originalidade

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Denominação advinda da mitologia grega: deus Orphéon, (filho de Apolo), deus da música. O músico francês Guillaume Louis Wilhelm (1781-1842) já havia criado os “Orpheonistes” como metodologia de ensino de música difundido em muitos países europeus.

pertinente às demais obras de Villa-Lobos, cujo substrato é o folclórico, não cabem na dicotomia de Saussure.

John Dewey, que pontualmente mencionamos, em muitos aspectos alinhado com a filosofia de Charles Peirce, com seu largo pensamento filosófico, abrangendo áreas de discussão tão profícuas, como política, educação e sociedade, refletiu também sobre a natureza humana, principalmente no que tange à conduta, com seus hábitos, impulsos, inteligência, sugerindo que “hábito é arte”. Adicionalmente, ele reflete sobre a educação em um substrato incondicional: a liberdade e a democracia, evitando qualquer tônica antropocêntrica na educação. Na concepção de Dewey, a criança em formação necessita estar exposta ao seu meio e à arte, interagindo junto a grupos em hábitos que consubstanciam menos a repetição e mais a progressão:

A primeira função do órgão social a que chamamos escola é proporcionar um ambiente simplificado. Ela seleciona as características mais fundamentais passíveis de resposta por parte dos jovens. Então, estabelece uma ordem progressista, usando fatores primeiramente adquiridos com meios mais simplificados para compreender o que é mais complicado (DEWEY, 1959, p. 21).

Defendia Dewey que a metodologia educacional, além de visar um fim social, deveria ter um fundamento etnológico, não único fundamento, porém, necessário, tal qual Villa-Lobos utilizou em seu método de Canto Orfeônico. A ação, a experiência do cantar junto a pequenos grupos em sala de aula, bem como junto a milhares de jovens, com um fim social, enlevando nossa memória cultural, foi sem dúvida um mérito de nosso compositor:

O canto coletivo, com seu poder de socialização, predispõe o indivíduo a perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na comunidade, valorizando no seu espírito a ideia da necessidade de renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das grandes nacionalidades (VILLA-LOBOS apud RIBEIRO, 1987, p. 87).

A maioria das canções no Canto Orfeônico não é de autoria de Villa-Lobos e sim ambientações de melodias de nosso folclore e canções compostas com poetas e escritores brasileiros. Ordenam-se por dificuldade e nosso compositor utilizou-se de sintéticas observações e quadros sinóticos acerca da aplicação em sala de aula das obras de cada volume do canto orfeônico. Exemplificamos com a canção: “As Creanças” a quatro vozes (um pouco mais avançada em relação ao volume I), canção harmonizada tradicionalmente, com uma polifonia simples, praticamente em terças, de forma a facilitar o aprendizado com a letra do poeta Lauro Salles, do II volume do Canto Orfeônico:

Figura 2 – As Creanças, Canto Orfeônico II. Heitor V Lobos (2011)

Ainda apoiado pelo governo brasileiro, cabe mencionarmos que Villa-Lobos, neste projeto educativo, escreveu dois volumes de Solfejos, bem como compilou a maioria das

canções infantis do Canto Orfeônico como parte das 137 obras folclóricas em outro projeto: o

Guia Prático, em seis volumes, para coro, voz e piano ou instrumentos, ou piano solo. Com

muito boa aceitação, posteriormente foram ampliados para doze volumes (MARIZ, 1994, p.159).

Ademais de apresentar a preocupação e realização do grande empreendimento com o

Canto Orfeônico, anteriormente havia composto dois álbuns para piano solo: Cirandinhas

(1925), um pouco menos difíceis tecnicamente que o posterior: Cirandas (1926), baseadas em cantigas de roda, folclore, temas infantis, utilizadas com frequência na aprendizagem do piano.

Nenhum outro compositor brasileiro se preocupou e se dedicou a esse importante aspecto da educação, aliada à recuperação e memória do folclore e cantigas infantis brasileiras. Arrisca-se, pelo que conseguimos pesquisar, que possivelmente Villa-Lobos seja o segundo compositor no mundo, após seu contemporâneo húngaro Zoltán Kodály, a empreender tamanha dedicação e volume de obras entrelaçando a identidade de seu país ao ensino de música nas escolas, bem como com suas composições para instrumento(s).

A partir desde breve histórico, passo às últimas deliberações relativas à legislação sobre a educação musical: Lei de Diretrizes e Bases de 1961 - Lei 4024/6, a qual dispôs a substituição da disciplina do Canto Orfeônico para a disciplina de Educação Musical; a Lei 5.692/1971, determinando a substituição da disciplina de Educação Musical pela disciplina de Educação Artística. Entretanto, a música retorna à educação, em 18 de agosto de 2008, quando a Presidência da República sancionou a Lei nº 11.769, prevendo a obrigatoriedade do ensino da música como componente curricular na educação básica.

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