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Como vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual escolhemos nossos legisladores para nos representar, cabe a eles a escolha das nossas limitações. Então, adequamo-nos aos preceitos legais que nos permeiam, abrindo mão da nossa liberdade de decisão para que as normas limitem e nos adequem para vivermos em sociedade.

E nesse vínculo que criamos com a liberação da nossa individualidade em prol da interpretação das leis, insta mencionar a crítica demonstrada por Beccaria (2013, p. 40-41). Dizia ele que se a interpretação das leis fosse um mal, a obscuridade que dela acarreta com a sua interpretação errônea seria um desfortúnio, caso as leis fossem escritas em vernáculo diferente daquele que o povo possui.

Ou seja, na época dele, as leis deveriam ser escritas na língua comum e entendidas por todos que a lêem, porque se assim não o fosse, seria uma grande injustiça, uma vez que nem o próprio povo entende a lei que foi redigida pra ele.

Por isso dizia que quanto maior fosse o número daqueles que tiverem o código de leis nas mãos, menor seriam os crimes, porque na época havia crimes pelo fato de que a

própria nação não tinha consciência daquilo que poderia ser classificado como delito, posto que sequer conheciam a língua que explicava as leis (BECCARIA 2013, p. 41).

Segundo os autores Streck e Morais (2003, p. 86-87):

O Estado de direito surge desde logo como o Estado que, nas suas relações com os indivíduos, se submete a um regime de direito quando, então, a atividade estatal apenas pode desenvolver-se utilizando um instrumental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim como, os indivíduos – cidadãos – têm a seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes uma ação abusiva do Estado (Grifos do autor).

Então, para nos salvaguardamos dos nossos direitos, hodiernamente necessitamos de normas reguladoras para conviver em grupos. E diferente não é no nosso Código Criminal. Cabe a ele nos dizer que tipos de condutas podem ser punidas pelo Estado. Compilação de artigos que por meio dos políticos, eleitos democraticamente pelo povo, são os responsáveis em ditar quais as condutas que são reprováveis e puníveis de acordo com cada momento vivido.

Como recém estudamos antes, não há crime sem lei anterior que o defina e nem pena sem prévia cominação legal. E aqui reside um dos fundamentos da tipicidade, elemento do fato típico conforme demonstrado alhures.

Este direito está estampado na nossa Constituição Federal (BRASIL, CRFB, 2017), no art. 5º, que dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais de seus administrados. Mais precisamente no inciso XXXIX, conforme:

Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

[...] (BRASIL, CRFB, 2017, grifo nosso).

Insta mencionar, também, que alguns autores trazem este princípio com a nomenclatura de “princípio da reserva legal”, também previsto no Código Penal, em seu artigo primeiro, caput “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 2017).

Leciona Rodrigues (2010, p. 5) que este é o princípio base e primordial de todos os princípios penais, garantindo a segurança jurídica e impedindo o mau uso da lei para o cometimento de arbitrariedades e imposições. Deste modo, dando direito ao Estado de punir (jus puniendi) somente quando houver expressa determinação legal, devendo ser anterior e

escrita, conforme o adágio em latim: “nullum crimem, nulla poena sine lege praevia, scripta

et stricta”.

Jesus (2011, p. 103) comenta sobre o aspecto político do princípio analisado. Assim, entende que o cânone do direito penal é uma garantia constitucional [já mostramos] e que demonstra a liberdade civil. Desse modo, a proteção prevista nos dá o direito de fazermos tudo o que queremos, desde que a lei não proíba. Esta que limita e destaca as atividades legítimas, diferenciando das ilícitas.

Capez (2014, p. 56) ensina sobre o aspecto histórico do princípio. Explica que o adágio supramencionado foi criado por Paul Johann Anselm von Feuerbach. Contudo, seu nascimento se deu com a Magna Charta Libertatum de 1215, dos ingleses para o Rei João Sem Terra. Nela, o art. 39 previa que nenhum homem seria preso, se não existisse pena prevista em lei local. Explicou, também, que o princípio ganhou força com o Iluminismo, com a Teoria do Contrato Social, de Rousseau, uma vez que o indivíduo só abriria sair do seu estado de liberdade para conviver em sociedade se tivesse o mínimo garantido contra o arbítrio, uma vez que só seria punido se houvesse teses antecedentes, que servissem pra todos.

Posteriormente, o fundamento ganhou força em diversos outros documentos, como o Bill of Rights, de 1774, firmado na Filadélfia e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nascida na Revolução Francesa de 1789. No Brasil, esse farol norteador foi reproduzido em todas as Constituições, desde 1824 (CAPEZ, 2014, p. 56).

O aspecto jurídico do princípio, de maior relevância, conforme explicam Estefam e Gonçalves (2016, p. 117):

Do ponto de vista jurídico, o princípio reside na exigência de perfeita subsunção entre a conduta realizada e o modelo abstrato contido na lei penal. Deve existir uma perfeita e total correspondência entre ambos. Assim, por mais grave que seja, se a ação ou omissão não estiver prevista em lei anterior como criminosa, ficará a salvo de qualquer sanção penal.

Dessa adequação trazida pelos autores, temos que o princípio da legalidade é também um dos elementos do fato típico, qual seja a obrigação da tipicidade para existir crime, conforme demonstrado no item “2.1.1.4”, deste estudo.

Insta mencionar, também, outra gigante importância desse cânone. Ele é de tamanha importância, que é consagrado como cláusula pétrea na Constituição Federal do Brasil. Há que se considerar que ele inibe a arbitrariedade do jus puniendi (poder de punir) do Estado, sendo a chave para a nossa liberdade.

Portanto, vimos a importância e os fundamentos que permeiam o tão aclamado princípio da legalidade, citado por alguns como reserva legal e outros autores que acabam trazendo diferença entre os dois. De qualquer modo, reside grande parte da discussão que travaremos a frente, por isso tão importante o esclarecimento do fundamento explicado.

2.4.1 Desdobramentos do princípio da legalidade

Filiamo-nos a ideia de Capez (2014, p. 57-58), na qual o princípio da legalidade se desmantela em dois outros, quais sejam ao da reserva legal e o da anterioridade da lei penal. Começaremos, então, com o primeiro.

Segundo o autor, somente a Lei, no seu sentido mais raso é a que pode cominar penalidades, devendo ela emanar do poder estatal, qual seja do poder legislativo. Ainda, esclarece que o princípio emana da qualidade da reserva absoluta da lei, que inadmite qualquer criação de norma penal fora da competência a ela reservada.

Desse modo, a competência para criação desde tipo de legislação é absoluta e explícita na Constituição Federal. Por esse motivo, cita como exemplo a Medida Provisória (MP), que pode ter força de lei, mas não pode criar no âmbito do Direito Penal, uma vez que a matéria é indelegável. Acaso algum órgão que tenha a competência dos órgãos constitucionais para as MP assim o fizessem, estariam invadindo a separação dos Poderes do Estado (CAPEZ, 2014).

Além disso, a Constituição Republicana de 1988 (BRASIL, CRFB, 2017) é bem clara nesse sentido. Segundo o seu art. 62, § 1º, inc. I, é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito penal, processual penal e processual civil.

Dessarte observamos uma ideia da força do princípio em comento, que reserva a matéria tão somente ao Poder Legislativo.

Bitencourt (2012, p. 90) explica que este dogma delimita que determinadas matérias devem ser feitas obrigatoriamente por meio de lei formal, conforme as previsões da Constituição.

Subsequentemente indica que deste preceito emana do princípio da taxatividade, que é uma garantia para a segurança jurídica da estrutura criminal, indo ao encontro da ideia do autor precedente que também considera que só os legisladores é que tem atribuições para poderem determinar condutas puníveis (BITENCOURT, 2012, p. 90).

Nesse sentido, Capez (2014, p. 59) alvitra que a lei penal delimita uma conduta lesiva, apta a colocar em risco um bem jurídico importante, e decreta-lhe uma conduta punitiva. E, quando faz isso, proíbe que uma atitude assemelhada ou próxima possa ser considerada crime. Assim, considera que a taxatividade decorre do princípio da legalidade, uma vez que inexiste delito sem lei anterior que precisamente o qualifique.

Insta mencionar, de forma breve, que existem doutrinadores, como por exemplo, o citado anteriormente [Bitencourt], que consideram esta característica como um princípio. A vantagem da taxatividade, é que ela inibe o emprego da analogia in malan partem no direito criminalístico, em tópico que será criado para elucidar a questão futuramente.

Sobre a anterioridade da lei penal, este é também é um dos cânones do Direito Penal. Sua importância é tamanha que não poderia ficar de forma alguma distante de comentário neste trabalho, mormente por ser uma garantia à liberdade do indivíduo.

A Lei Maior (BRASIL, CRFB, 2017) expressamente prevê, em seu art. 5º, inc. XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Além disso, o Código Penal, em seu artigo 2º, preconiza que:

Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica- se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

Assim, nitidamente, a norma demonstra que nenhuma conduta humana pode ser penalizada sem ter no ordenamento predisposição anterior que a vede, para que iniba a produção do resultado, que afete bem jurídico tutelado pelo Estado.

Como exemplo, trazemos um julgado do Egrégio Tribunal de Santa Catarina, que trancou ação penal por meio de habeas corpus, assim entendendo:

Habeas Corpus. ATENTADO CONTRA A SEGURANÇA DE SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA (ART. 265 DO CÓDIGO PENAL). PLEITO VISANDO AO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGADA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CABIMENTO. MANIFESTA ATIPICIDADE DA CONDUTA. COMUNICAÇÃO POR MEIO DO APLICATIVO WHATSAPP SOBRE A OCORRÊNCIA DE BLITZ POLICIAL. CONDUTA QUE NÃO SE AMOLDA AO TIPO PENAL IMPUTADO. ATUAÇÃO ESPORÁDICA E OCASIONAL DA POLÍCIA QUE NÃO PODE SER ENTENDIDA COMO SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA PARA OS FINS DO ART. 256 DO CP. AINDA, AUSÊNCIA DE PERIGO CONCRETO DA AÇÃO E DOLO DE FRUSTAR O SERVIÇO. ALÉM DO MAIS, PROJETO DE LEI QUE VISA PUNIR A

CONDUTA QUE AINDA SE ENCONTRA EM TRAMITAÇÃO.

IMPOSSIBILIDADE DE PUNIÇÃO ANTECIPADA, SOB PENA DE OFENSA

CONSTRANGIMENTO ILEGAL DEMONSTRADO. WRIT CONHECIDO E ORDEM CONCEDIDA PARA O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.

(SANTA CATARINA, TJSC, 2017)

No julgamento em apreço, o acusado havia realizado a conduta de avisar, por meio do aplicativo WhatsApp, que havia uma blitz policial em determinado local.

Ocorre que não há tipo penal para este caso, tendo somente um projeto de lei para a criminalização da atitude em comento.

Posto isso, a ação não teve justa causa para a continuidade. Isto porque a atitude do réu era, na época, conduta não criminalizada, sendo, pois, fato atípico.

Assim sendo, temos que toda conduta delitiva deve estar expressamente prevista em lei para assim daquele modo ser considerada. A reserva legal é um preceito que explana serem, somente as condutas expressamente previstas na lei, consideradas delitos.

Ela impede que a lei penal possa ser vista de outra forma, senão de maneira evidente ou demonstre alguma imprecisão, devendo ser, também, um parâmetro de absolvição no caso de dúvida.

Parece uma questão relativamente clara, uma vez que aparenta ser simplório este preceito. Contudo, veremos que, por algumas vezes, isto não é tão límpido para a nossa jurisprudência. Dependendo do caso a situação é mais atribulada do que parece, criando diversos debates, os quais são o objeto de estudo deste escrito.

Sobre a anterioridade, esta inibe que, se a conduta não estiver presente no ordenamento, no momento da execução do ato, ainda que o comportamento possa ter certo grau de reprovabilidade, não poderá ser punido o agente que a tiver cometido.

Já a taxatividade decorre da reserva legal. Ou seja, se a tipicidade é a figura deve estar por lei descrita, por certo somente ela é que delimita as condutas punitivas, tornando o rol de crimes previsto na lei algo taxativo.