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“Já não existe nenhum belo problema específico” (Max-Neef, 1991)33 Ainda que pautada de ironia, esta frase de Max-Neef (1991) incorpora essa

complexidade como uma importante circunstância da contemporaneidade, na qual “enfrentamos momentos desconcertantes nos quais entendemos menos e menos”. O mesmo autor avança que, “se não dedicarmos muito mais energia e imaginação à conceção de abordagens transdisciplinares significativas e consistentes, as nossas sociedades continuarão a desintegrar-se. Vivemos num período de transição, o que significa que as mudanças de paradigma não são apenas necessárias, mas

indispensáveis (Max-Neef, 1991)“.34

Design as democracy, social design,design for participation, design for/of/in a democracy, political design/design for politics, design activism”, são exemplos da

crescente relevância social/cívica/política de uma investigação e prática de design descentrados de si mesmo e orientados para a sociedade (Binder et al., 2015). Essa descentralização remete para o conceito de ‘cocriação’ (“co-creation, cocreation”),

30 “technologies of hubris” por “technologies of humility” (Jasanoff, 2003).

31 “ (…) the principal source of injustice in such an epoch is the political approval for the existence of tools which by their nature restrict to a very few the liberty to use them to full advantage (Illich, 1973a: 136).” 32 “(…) the effects of compulsive efficiency do more damage than good to most people in our generation (Illich, 1973a: 138).”

33 “There is no longer any beautiful specific problem (Max-Neef, 1991: 15, aludindo a Marquês de Sade).” 34 “We face bewildering situations where we understand less and less. If we do not devote considerably more energy and imagination to designing significant and consistent transdisciplinary approaches, our societies will continue to disintegrate. We live in a period of transition, which means that paradigm shifts are not only necessary but indispensable (Max-Neef, 1991).”

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como qualquer “ato de criatividade coletiva” (Sanders & Stappers, 2008), que aparenta assumir uma postura mais lúcida da abrangência imposta pelos desafios da

atualidade. Neste sentido, os conceitos “metadesign”, “strategic design” e “design thinking”, também se enquadram na consciência dessa abrangência e realçam que a

trajetória do design tem vindo a aproximar-se do domínio transdisciplinar invocado por alguns autores (e.g. Manzini, 2015; Max-Neef, 1991).

Ao definir o sentido crítico, a criatividade, a capacidade de análise e o sentido prático como as quatro competências humanas que constituem a essência da prática do design, Manzini (2017a) renova o pressuposto segundo o qual todo o ser humano é um designer (Freire, 1976; Papanek, 1971; Potter, 1969; Simon, 1996)35. Contudo, enquanto humanos (homens-designer), estas capacidades são (ou não) desenvolvidas e aplicadas de forma “difusa”, ao passo que, enquanto especialistas (designer-

especialista), as mesmas são cultivadas e otimizadas de forma consciente e sistematizada.

Estes factos permitem remeter para dois fundamentos de empoderamento do

pensamento de Paulo Freire (1979). O primeiro, para a constatação de que o designer é, por princípio, um ator empoderado, isto é, revela capacidades críticas e analíticas que informam e sustentam uma prática, que Freire (1979) chama de unidade dialética entre conscientização e práxis. O segundo fundamento relaciona-se com a

interdependência entre atores na edificação de processos de mudança: “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão (Freire, 1970: 29)”. O designer-especialista só se completa no ato de cooperar e, neste ato, assume a responsabilidade pela visibilidade dos múltiplos discursos e pela

tangibilidade dos processos de interação e ideação (Manzini, 2017c). Os restantes especialistas atuam mediante as suas competências, incluindo os homens-designer que além de despertarem as suas competências latentes de design, fornecem as suas visões e experiências do mundo como enquadramento às atividades de cocriação. Face à complexidade dos problemas e multiplicidade de perspetivas a integrar nos processos colaborativos, a conceção de (eco)sistemas facilitadores de debates e ações em colaboração (Manzini, 2017b) ou, como outros autores lhe chamam, o “ato de infraestruturar” (“infrastructuring”) (e.g. Ehn, 2008; Karasti, 2014; Le Dantec &

DiSalvo, 2013), ou ainda “a encenação do “terceiro espaço” da investigação

colaborativa” (Brandt, Binder & Sanders, 2013), constitui uma das atuais funções do designer-especialista, que destaca “a abertura do processo e do resultado através de uma atenção ao procedimento (Brandt et al., 2013)“.36

Refletindo sobre os procedimentos que este tipo de abordagem do design tem vindo a adotar, a introdução das ‘novas’ tecnologias parece constituir o foco de muitas

intervenções, mesmo quando os contextos de ação não sugerem uma base humana e

35 Paulo Freire utiliza “ser que projeta”.

36 “(…) the openness of both process and outcome through an attention to procedure (Brandt et al., 2013: 172).”

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tecnológica capaz, convertendo estas iniciativas de desenvolvimento em ações de capacitação para o uso da tecnologia (e.g. Campbell, 2004; Sabiescu, 2013). Uma importante aprendizagem extraída da investigação em design em contextos de deficiência, pode ser extrapolada para esta discussão. A reorientação do foco das incapacidades para as capacidades da pessoa portadora de deficiência, desencadeou processos de inovação que superaram as expectativas mais convencionais (Cassim, 2007, 2014; Pal, 2017b). Deste modo, as competências locais deverão ser

reconhecidas como os recursos mais básicos e os únicos indispensáveis nos

processos de desenvolvimento. A omissão desta consciência ao nível dos contextos mais desfavorecidos, onde se organizam tentativas de imposição das (novas) tecnologias, insinua uma prepotência semelhante à que Lucy Suchman (2011)

reconheceu nas palavras de um tecnólogo de Silicon Valley em entrevista radiofónica, quando este declarou “o futuro chega mais cedo aqui”. A par da prepotência, esta visão ilustra a “conceção de tempo linear que domina a modernidade ocidental (Santos, 2012: 37)” e, consequentemente, do desenvolvimento que este comporta.

Figura 3. Cenas do filme “Kitchen Stories” (Hamer, 2003) (Fontes: https://www.taxidrivers.it e https://www.milanodesignfilmfestival.com).

São infinitas as recomendações passíveis de serem adotadas na investigação e prática do design (e não só) para a obtenção de resultados mais fidedignos. A título de exemplo, o filme “Kitchen Stories” (Hamer, 2003) contempla inúmeras situações em

torno da relação entre investigador e objeto de investigação (utilizador), num estudo que visava aumentar a eficiência no uso das cozinhas domésticas. Este filme é uma sátira que relata os esforços dum investigador na recolha de dados, numa fase de evolução do paradigma ‘centrado no utilizador’ que despertou para a importância do estudo dos desempenhos dos utilizadores nos seus contextos reais.

Todavia, a questão que se pretende realçar vai um pouco mais além da pertinência que o filme expõe. A coerência entre propósitos (declarados) e os processos e recursos explorados constitui o busílis desta reflexão. Se, por um lado, urge pensar sobre o impacto dos projetos em função do consumo de recursos e deterioração ambiental (Cannan, 2000; Illich, 1973a, 1973b; Kenny, 2016; Mayo, 2016; Papanek, 1971; Sanoff, 2008), por outro constata-se um aparente paradoxo entre desígnios de

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empoderamento e exploração de recursos que não são do domínio da população em causa, que expõem iniciativas de design e de desenvolvimento ao fracasso e aumento de lixo.

Em tempos de abundância (ainda que fragmentada), um dos desafios para o design, prenunciado por Ivan Illich (1973a) há mais de 40 anos, relaciona-se com a ideia que este chamou de “sociedade convivial”, que aspira à “busca constante de novas maneiras de ter uma percentagem ainda maior da população unida para fazer ainda mais com cada vez menos”37. O desfecho para a desigualdade, ainda que

aparentemente “absurdo” por “ser contrário à experiência” de muitos, reside na “escolha de limites para todos em vez de promessas de igual consumo (Illich, 1973a)”38. Esta visão ‘convivial’ acentua o potencial e apela à sublimação das

competências humanas identificadas na base da atividade do design (Manzini, 2017a). Illich refere que as circunstâncias para esta decisão são inevitáveis, uma vez que o desenvolvimento tecnológico desvinculado de um sistema político que regule e proteja um acesso igualitário a tecnologia ‘convivial’ irá numa primeira instância conduzir ao agravamento das desigualdades entre ricos e pobres e, por último, conduzir ao inescapável destino imposto pela extinção dos recursos (Illich, 1973a, 1973b). Indo ao encontro dessa extinção de recursos, Chatterjee (2017) decompõe casos de design ‘difuso’ ou espontâneo em contextos predominantemente desfavorecidos, e afere que as “respostas naturais, como queixas, medo, resignação e pressentimento”, inibem o arrojo necessário para “enfrentar situações de extrema necessidade e

alcançar mudanças radicais”. Ao passo que, a capacidade dos indivíduos para se libertarem desse estado de “consternação” os abastece de novas visões de si e das suas capacidades, uma “compreensão de vários limiares do potencial individual, bem como a [nossa] capacidade de exercer controlo situacional, apesar de falta de

recursos ou ajuda externa (Chatterjee, 2017)“.

Deduz-se assim que, a relação de dependência perante as ferramentas ou outros recursos materiais, em lugar do uso sublimado das capacidades humanas intrínsecas (i.e., sentido crítico, criatividade, capacidade de análise e sentido prático), é um atributo que está na essência de um ser oprimido e não de um ser empoderado. No retraimento de cenários extremos, o design(er) incorpora a resignação e o pessimismo que atuam no sentido oposto à sua essência, apesar de serem essas as

circunstâncias que constituem oportunidades para o design(er) ‘transcender’ o status quo (Brandt et al., 2013) e apresentar contributos relevantes na convergência

transdisciplinar para futuros mais equitativos e sustentáveis.

37 “(…) the constant search for new ways to have an even larger percentage of the population join in doing even more with ever less (Illich, 1973a: 174).”

38 “(…) the possibility that a majority of voters anywhere would choose limits for all rather than promises of equal consumption is contrary to their experience and therefore seems absurd to them (Illich, 1973a: 137).”

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