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A construção dos cenários narrativos individuais, “como foi explicado às participantes, pretendia servir objetivos de autorrepresentação e facilitar a comunicação” e discussão das suas narrativas nas etapas que se seguiriam (Carvalho, Ferro & Franqueira, 2015: 55).

O trabalho de preparação dos materiais e ferramentas necessários, assegurava a exequibilidade da tarefa dentro do tempo definido para cada participante (três sessões de duas a três horas). A flexibilidade e acessibilidade projetadas no processo, técnicas e materiais, apresentaram-se, perante estas mulheres, como convites à apropriação, que estas tomaram de diferentes formas, em diversos momentos e com repercussões distintas. Entre os atributos mais relevantes, estão as pontas soltas do plano de trabalho e das soluções construtivas dos cenários, que permitiram que algumas das participantes tomassem a iniciativa de contribuir de forma substancial, influenciando o trabalho das restantes colaboradoras e os resultados.

Tabela 1. Resultados recolhidos através da ferramenta BOSa integrada na parte final do livrete-sonda

Para melhorar a alimentação da minha família precisava de…

Reduzir Manter Aumentar Eliminar Partilhar Adicionar

AA Fritos Comida mais

saudável Gorduras Peixe (é difícil) BA O meu orçamento CA Apetite Vontade de fazer de comer As tarefas

91 DA Hidratos de carbono (arroz, massas); Gorduras (nas carnes) Manter dieta Comer mais fibras Os meus conhecimentos sobre como aproveitar comida Exercício físico; Fazer dieta equilibrada EA Fritos; Sal Legumes FA Chocolate (filho) Sopa Peixe GA Batatas fritas; Sumos Arroz; Massa Água; Sopa; Peixe Sumos Peixe

“Desta vez, como o trabalho é manual, a boca fica livre para falar de outras coisas e a BA abriu-se mais comigo. (…) Foi-se embora almoçar e agradeceu o momento. Eu agradeci-lhe a ela.” [diário de campo, 26 de Maio de 2015]

“De novo, os trabalhos manuais dão azo à conversa que flui entre o que ela queria falar e o que eu lhe ia perguntando. (…) Ao sair disse ‘é bem melhor [estar aqui] do que ficar em casa a olhar para as paredes’” [diário de campo, 28 de Maio de 2015]

As oficinas de construção dos cenários, proporcionaram momentos de convívio e conversa que impulsionaram para uma relação cada vez mais próxima e aberta com as participantes, resultando num aumento de confiança e crescente desinibição para a participação e apropriação do processo e dos meios (Carvalho, Ferro & Franqueira, 2015). Esta apropriação foi-se denunciando de diferentes formas, em diversos momentos do trabalho e, consequentemente, no resultado. A Figura 26 apresenta as quatro categorias definidas para as manifestações de apropriação observadas e apresenta alguns exemplos das mesmas: (i) soluções apresentadas pelas participantes (a verde); (ii) contributos de terceiros trazidos pelas participantes (a laranja); (iii) manifestações de personalização (a rosa) e (iv) esforços das participantes na aproximação à representação da realidade (a azul). Foram ainda englobadas neste mapeamento as (v) alterações efetuadas por iniciativa da investigadora ao plano inicialmente definido (a vermelho), que resultaram da constatação de falhas.

GA não come à mesa. Mas ao balcão de mármore da cozinha, com a mãe. Tentei simular uma patine de mármore cinza, com ela a ver, para perceber como se fazia. [diário de campo, 25 de Maio de 2015]

Quando lhe menciono os problemas da mesa, ela faz uma sugestão, de colocar um canto recortado de MDF como suporte. Colamos com cola quente e passou a ser a solução para todos os cenários. [diário de campo, 26 de Maio 2015]

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A determinada altura, quando discutíamos como diferenciar o nome de cada refeição do título (carimbos) e da descrição da refeição (letra à máquina de cada uma), a CA deu a ideia de usar-se 1 escantilhão de letras e ao ouvir de mim que seria uma ótima ideia, ela prontificou-se a pedir emprestado ao tio. [diário de campo, 27 de Maio de 2015]

Nas palavras da FA, o tempo voou e ela foi uma colaboradora trabalhadora e com iniciativa, prontificando-se a ir para a rua, em frente de quem passasse, martelar os pedaços de arame de alumínio que se iriam transformar em talheres. Voltou à sala orgulhosa do seu faqueiro forjado. [diário de campo, 28 de Maio de 2015]

Foi a BA que veio e mais uma vez o trabalho correu muito bem. De novo deu uma boa solução para um problema/dilema: para apresentação dos pontos positivos e negativos. [diário de campo, 2 de Junho de 2015]

Numa destas minhas permanências na sala de espera, a AB brincou: “já só me faltam os quartos, a sala e a casa de banho… já tenho cozinha!”, aludindo ao cenário e rindo-se. [diário de campo, 9 de Junho de 2015]

[a amiga] Tentou ajudar a EA na distribuição dos alimentos, mas logo percebi, como já tinha percebido com as outras participantes, que embora não sejam os

frigoríficos, as despensas e os alimentos/marcas exatos que elas utilizam, na arrumação, elas aplicam a lógica que usam em casa. Por isso as ajudas da amiga foram pouco úteis para a EA. [diário de campo, 18 de Junho de 2015]

A AB aparentava alguma pressa, mas depois, quando acabou de fazer o trabalho dela, já não havia pressa e ficou ainda um bom pedaço a conversar connosco e a ajudar as miúdas nas tarefas que ela já tinha realizado, demonstrando brio em mostrar como se faz. [diário de campo, 18 de Junho de 2015]

Figura 26. Mapeamento das manifestações de apropriação segundo as quatro tipologias definidas [fonte: (Carvalho, Ferro & Franqueira, 2015)] (à esquerda) e respetivos exemplos (à direita): (i) apoio para o tampo da mesa e solução para fixar os pontos positivos e negativos foram soluções propostas pela BA; (ii) o desenho e recorte das silhuetas dos elementos do agregado familiar são da autoria da irmã da CA; (iii) todas as participantes deram atenção às combinações de cores em função do seu gosto e para distinção das demais; (iv) a FA trouxe papel autocolante de casa para aplicar malhas de vaca no frigorífico do cenário para se assemelhar com o de casa.

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Esta etapa veio confirmar que a inteligibilidade do processo e meios, associados a conceitos de flexibilidade e acessibilidade, funcionam como convites a diferentes formas de participação (Vines et al., 2013), e que os seis cenários concluídos (Figura 27), são o ponto de partida legítimo para as construções coletivas entre as

participantes e suas histórias no próximo ciclo.

Figura 27. Os seis cenários construídos (pormenor da mesa, rebatimento da mesa e abertura de frigorifico). Fotografias: Abhishek Chatterjee.