• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 6 TRILHAS MAPEADAS, MALAS PRONTAS, ESTRADA

6.4 Problematizando a concepção de natureza das ciências por meio da sétima

6.4.3 Problematizando as visões das ciências da natureza com I am Legend

sou a Lenda)

I am Legend (Eu sou a lenda) tem em sua primeira cena a divulgação na mídia televisiva, por meio da fala de uma cientista, a Dra. Alice Krippin, de um novo feito científico: a cura para o câncer. Mas em seguida ficamos sabendo que, ao invés disso, a humanidade foi infectada por um vírus mortal.

Ester: No começo do filme, na cena de abertura mostra que o vírus que dizima toda a humanidade surge da experiência que uma médica faz em busca da cura do câncer, modificando geneticamente o vírus do sarampo para o desenvolvimento de uma vacina. O que é essa doença afinal? Como ela surge?

Ester: O que foi? Estão tímidos hoje, é?

Alice: Não, professora. É porque eu acho que ninguém sabe dizer exatamente como surge o câncer.

Ester: Não precisa dizer exatamente, Alice. Gostaria apenas de saber se vocês têm alguma noção sobre como essa doença surge. Mas... vamos começar de maneira diferente então. O que vocês sabem sobre o câncer?

Rosalie: É um tipo de tumor.

Jasper: É uma doença causada pela tristeza... isso é o que minha mãe sempre me falou.

Esme: Acho que é um tipo de cisto. Minha madrinha teve um no útero, aí tirou o útero, os ovários, fez radio e quimioterapia e conseguiu se curar.

Leah: Eu sei o que é. Só que não tô conseguindo explicar. Jessica: A gente já estudou sobre isso? Eu não me lembro.

Angela: Acho que é quando uma célula de qualquer parte do nosso corpo começa a se dividir sem uma ordem, aí vai formando um monte de células que crescem demais, tipo um nódulo. Quando tem muito tempo que a pessoa tem a doença, já era... não dá pra salvar porque já invadiu um monte de órgão se espalhando pelo corpo todo.

Carlisle: Eu acho que é uma doença que pode ser causada de dentro pra fora e de fora pra dentro.

Ester: Como assim, Carlisle? O que você quis dizer com “de dentro pra fora e de fora pra dentro”?

Carlisle: Ué, professora. É mais ou menos assim ó: de dentro pra fora é quando é causado pelo próprio corpo. Por exemplo: se a mãe tem câncer, a filha dela tem uma grande chance de ter por causa da genética. Já de fora pra dentro, eu tava me referindo a fatores do ambiente, como por exemplo, a exposição à radiação, o hábito de fumar.

Nos primeiros minutos da história do filme, há referências diretas ao câncer. Questionei os educandos acerca do que sabiam a esse respeito. A maioria demonstrou desconhecer por completo os mecanismos de surgimento da doença, assim como apresentava pouco (ou nenhum) conhecimento sobre ela, o que penso possa ilustrar a dificuldade que os educandos, por algumas vezes, têm de correlacionar conteúdos das ciências da natureza com questões cotidianas.

Fundamentada em Oliveira (2005), penso que essa “descoberta” da cura para o câncer, mesmo sendo um elemento fictício presente no filme permite sejam levantados questionamentos sobre as ciências, assim como reflexões sobre os valores, a ética, a finalidade (JÖRG, 2003; MARTINS, 2006) e o papel das ciências da natureza na sociedade (GIL-PÉREZ et al, 2001; KOSMINSKY & GIORDAN, 2002) contemporânea, em que muitas vezes os meios justificam os fins.

Ester: No primeiro filme vocês disseram que o trabalho do cientista era desenvolvido em laboratórios e que era solitário. No segundo filme alguns de vocês disseram que perceberam um trabalho em equipe e não tão ligado ao laboratório. E no filme de hoje, como é o trabalho do cientista?

Emmet: Num tem como falar como é o trabalho do cientista, professora, porque nesse filme a gente vê os dois lados: o lado do bem e o lado do mal.

Ester: Como assim, Emmet, o lado do bem e o lado do mal?

Emmet: O lado do bem é com o Neville e o lado do mal é com aquela médica que anuncia a cura do câncer no início do filme.

Ester: Sei...Vocês concordam?

Angela: Aham. Eu só acho que num é exatamente o lado bom e o lado mal, mas são formas de mostrar que a ciência tem um efeito direto na sociedade e esse efeito sim pode ser positivo ou negativo.

Jessica: É isso mesmo. Quando o filme começa, mostra em 2009 o efeito maléfico da ciência na população nova-iorquina porque aquela médica... eu acho que ela

não fez tanto teste assim pra garantir que quando o governo obrigasse toda a população a se vacinar nada de ruim pudesse acontecer. Aí depois, já mostra o Neville, sozinho, fazendo um monte de teste num laboratório “high tech” pra encontrar a cura pra mutação que aconteceu quando o povo foi vacinado. Mas ele só chega a cura mesmo em 2012.

Noto que há nesse trecho do diálogo ocorrido durante a roda de conversa, depois de assistir ao filme, um questionamento por parte dos educandos a respeito de aspectos éticos do fazer científico (JÖRG, 2003; MARTINS, 2006), em especial em trecho da fala de Jessica:

“[...] eu acho que ela não fez teste assim pra garantir que quando o governo obrigasse toda a população a se vacinar nada de ruim pudesse acontecer [...]”, o que, de modo semelhante, já

havia sido identificado por Kosminsky e Giordan (2002) em pesquisa desenvolvida sobre o que pensam os estudantes acerca do que vem a ser ciências e de como procedem os cientistas no seu dia-a-dia.

Outro ponto importante que vejo emergir desse diálogo é a retomada de uma discussão que tivemos durante a roda de conversa ocorrida após a exibição do segundo filme a respeito das aplicações das ciências da natureza na sociedade, o que é enfatizado por Angela: “[...] são

formas de mostrar que a ciência tem um efeito direto na sociedade e [...] pode ser positivo ou negativo.”

Parte dos educandos, como Jéssica – “[...] mostra o Neville, sozinho, fazendo um

monte de teste num laboratório ‘high tech’ pra encontrar a cura pra mutação [...]” –

compreende que a visão das ciências da natureza apresentada por esse filme assemelha-se mais à do primeiro, pois mostra a atividade científica como um trabalho realizado por uma única pessoa, Robert Neville, que utiliza de seus conhecimentos “privilegiados” como virologista para o desenvolvimento da solução para o problema. Há, portanto, pelos educandos, a retomada do questionamento da visão empírico-indutivista e elitista (GIL- PÉREZ et al, 2001) das ciências apresentada pelo primeiro filme.

Concomitantemente a essa visão do trabalho solitário e elitista do cientista (Morgan/Neville), está presente no mesmo trecho da fala de Jessica – “[...] Mas ele só chega

a cura mesmo em 2012.” – a ideia de que a construção do conhecimento científico se dá por

meio de um processo lento e gradativo, haja visto que ele iniciou suas pesquisas em 2009 e só chegou à cura em 2012, conforme enfatizado pela educanda.

Angela: Eu não sabia que o governo podia interferir tanto assim na ciência. Não foram os militares que prenderam as pessoas em Manhattan com a quarentena e pressionaram o Neville pra resolver o problema? Por que deixar uns morrerem e salvar outros? Será que a intenção era salvar mesmo? Se bem que aqui a gente também teve um exemplo assim, só não passou por quarentena, né? Aquela revolta da vacina.

Jasper: Isso aí que a Angela falou faz sentido mesmo. Eu lembro que eu tinha perguntado isso pra mim quando eu tava assistindo “Residente Evil 2”. Se o vírus que tinha criado aquelas aberrações ainda tava circulando na cidade e se aqueles monstros tavam à solta, qual o propósito do governo de num deixar ninguém sair nem entrar na cidade, declarando quarentena? Pra mim não é reduzir o número de mortos como eles falam não. Pra mim é justamente o contrário. Eles tão querendo é aumentar a quantidade de mortos e reduzir o número de refugiados pra garantir a sobrevivência de uns poucos e... a gente quem sabe quem são esses poucos, né? Só a nata!

Neste ponto da conversa, Angela revisita pontos já discutidos durante a exibição do segundo filme, trazendo à tona a cena em que Manhattan está sendo colocada em quarentena e parece questionar a neutralidade das ciências, ao citar a interferência do governo e das forças militares para a instauração da quarentena como tentativa de controle da epidemia. A estudante também faz um resgate da história do nosso próprio país, ao citar a revolta da vacina.

Noto também no diálogo que Angela estabelece com Jasper um questionamento claro sobre a interferência de agentes externos à comunidade científica no trabalho de um cientista e no desenvolver de pesquisas, nesse caso em específico, as pressões governamentais.

Ester: Mas... vocês acham que existia algum interesse dos EUA em mostrar, por exemplo, através do cinema, como feito nesse filme, o seu poderio militar com soldados patrulhando as ruas e impondo quarentenas aos cidadãos americanos? Carlisle: Eu não sei se a intenção era exatamente essa não, professora. Mas que pro governo americano era bem vantajoso se mostrar como uma nação potente em termo militar eu acho que sim porque desde aquele lance lá do ataque terrorista às torres gêmeas, os EUA parece que vive em alerta constante de ameaça. Então pra mim isso é mostrar pro inimigo que ele tá sempre um passo à frente. Vai saber até se esse tipo de estratégia num pode evitar um novo ataque ou pelo menos mostrar que o EUA tá preparado pra responder à altura? Eles têm que mostrar que são cientificamente evoluídos e preparados tecnologicamente pra combater em qualquer tipo de guerra, pra vencer de qualquer tipo de arma, seja uma praga biológica ou um ataque terrorista.

Carlisle conseguiu exercer certa criticidade ao fazer a leitura do filme, em especial da cena em que se representa Manhattan sendo posta em quarentena, pois estabeleceu conexões de uma estória com características fictícias a realidades histórico-sociais já vivenciadas pelos EUA em outros momentos da década de 2000, dando demonstrações de como a produção cinematográfica expressa a visão da sociedade acerca das ciências e da tecnologia (OLIVEIRA, 2005; ARAÚJO & SCHEID, 2010).

Em relação à imagem da Dra. Alice Krippin, responsável pela “descoberta” da cura para o câncer, os educandos expressaram seus questionamentos acerca da sua postura como cientista:

Emmet: Ah, tá na cara que essa Dra. Alice tava mais interessada na fama, no poder e no dinheiro que a descoberta da cura do câncer ia trazer pra ela do que a cura em si. Não viu a cara dela enquanto tava divulgando o resultado da pesquisa dela pra imprensa. Eu quase vi os dólares brilhando nos olhinhos dela. (risos)

Alice: Eu também achei ela muito estrelinha pro meu gosto. Parecia uma modelo dando entrevista e tendo um textinho muito bem decorado, dizendo só aquilo que ia agradar o povo.

Jasper: Só não mostrou, mas ela deve ter ganhado uma nota por causa dessa descoberta, né? Nenhum problema um cientista ganhar dinheiro, mas eu acho que antes do dinheiro, em primeiro lugar sempre deve vim o que isso vai trazer de bom pras pessoas.

Com os discursos de Emmet e Jasper, noto que parte dos educandos reconhece que alguns cientistas não exercem a sua profissão de maneira ética, buscando apenas poder, prestígio e dinheiro, sem analisar as consequências, muitas vezes catastróficas para a vida da sociedade, dos resultados das suas pesquisas, conforme pontuado por (JÖRG, 2003; REIS; RODRIGUES; SANTOS, 2006).

Outros educandos retomaram alguns questionamentos do segundo filme e lembraram do Matthias criticando o trabalho dos cientistas e algumas invenções das ciências, como a bomba atômica, as armas de fogo e as armas biológicas.

Esses comentários sobre o comportamento ético dos que trabalham com ciências (JÖRG, 2003; MARTINS, 2006; REIS; RODRIGUES; SANTOS, 2006) propiciaram reflexões interessantes sobre o que é ética e o que é esperado para o comportamento de um cientista na comunidade científica.

Com os questionamentos levantados pelos educandos percebi a importância de, na sala de aula, no ensino em e sobre as ciências da natureza, oportunizarmos situações para problematizar, dialogar e refletir sobre esses e outros aspectos que estão envolvidos na construção dos conhecimentos científicos e, através disso, fazer com que venham à tona as várias imagens da natureza das ciências que podemos encontrar em uma sala de aula e, a partir do compartilhamento dessas visões, buscar construir outras mais realistas e pautadas em uma visão histórica, humanística, problematizadora e contextualizada das ciências.

Ester: E os mortos-vivos desse filme, são iguais aos outros dois filmes que assistimos?

Emmet: Fala sério, professora! Não dá nem pra comparar. Aqui eles são verdadeiros mutantes, são aberrações genéticas ambulantes. Dá pra ver que eles são inteligentes.

Alice: É. E eu também acho que não tem aquela visão vampiresca do primeiro filme não. Eles só não podem andar nas ruas durante o dia porque sua condição de mutantes não permite. Acho que eles são muito sensíveis ao sol. Só por isso que têm que ficar escondidos.

Ester: Por que será essa diferença da forma de mostrar os zumbis?

Carlisle: Eu não sei o que tava passando pela cabeça do carinha que fez o roteiro do filme não, mas acho que não tinha como em 2007 fazer um filme mostrando os zumbis daquele jeito toscão do primeiro porque a ciência evoluiu muito daquela

época pra agora. Já tinha muita coisa que a engenharia genética tinha explicado e aí acho que mostrar um morto-vivo daquele jeito não ia prender a atenção de ninguém porque era algo muito, mas muito fantasioso mesmo.

Angela: E não é só isso não, Carlisle. Já fazia muito tempo que vinha passando na mídia a questão da manipulação genética em alimentos, a clonagem de animais, até de humanos, e eu acho que, de algum modo, o filme precisava acompanhar essa discussão da sociedade sobre a bioética.

Os discursos de Carlisle e Angela revelam que os educandos compreenderam que, como pontuou Kuhn (2005 [1962]), a produção científica de determinada época se dá em resposta tanto a agentes internos quando a agentes externos à comunidade científica, como por exemplo, os contextos histórico, social e cultural em que estão inseridos os cientistas e suas pesquisas.

Além disso, parecem ter compreendido que o cinema e os filmes comerciais refletem o ideário da sociedade de uma determinada época, sobre várias questões, dentre as quais, as ciências, a tecnologia e o conhecimento científico (OLIVEIRA, 2005; NAPOLITANO, 2008).