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CAPÍTULO 6 TRILHAS MAPEADAS, MALAS PRONTAS, ESTRADA

6.4 Problematizando a concepção de natureza das ciências por meio da sétima

6.4.2 Problematizando as visões das ciências da natureza com The Omega

O cientista Robert Neville, do filme The Omega Man (A última esperança sobre a

Terra), na visão dos educandos, demonstrou um lado menos humano dos cientistas, pois não tinha família e parecia não sentir tanta falta de ter esposa e filhos.

Apesar disso, para eles, Neville não fazia, por completo, a linha do “cientista obstinado” por seu trabalho, que se esquecia da vida, deixando de lado tudo o que não estivesse ligado ao seu trabalho e às suas pesquisas, o que poderia ser demonstrado por algumas cenas do filme que apresentam Neville em atividades de lazer e entretenimento, como por exemplo: (1) no tempo de 0h:06min:21seg, em que mostra Neville indo ao cinema para assistir ao festival de Woodstock; (2) no tempo de 0h:07min:12seg, em que mostra Neville dublando as falas presentes na película sobre o festival por havê-las decorado dada a quantidade de vezes que já assistiu a mesma fita e (c) no tempo de 0h:64min:06seg, em que mostra Robert Neville em um “encontro amoroso”.

Durante a exibição de The Omega Man (A Última Esperança sobre a Terra) era notório o burburinho dos educandos acerca de algumas temáticas levantadas pelo filme. Ao término da exibição do mesmo, durante a roda de conversa, os educandos continuaram os questionamentos e acirraram as discussões acerca do real papel das ciências da natureza na sociedade, fazendo citações como:

Jasper: Professora, apesar de ter gostado muito mais do primeiro filme por causa da atmosfera de mistério e suspense dele, esse filme tem uma coisa que eu achei legal e bem diferente: é um dos poucos filmes que eu assisto e que vejo

questionarem a ciência e os reflexos das invenções dos cientistas pra vida das pessoas de forma tão direta.

Jessica: É mesmo, Jasper. Na maioria dos filmes que a gente assiste o cientista é mostrado como heroi e a ciência como algo totalmente benéfico pro mundo. Eu nunca tinha parado pra me perguntar isso, mas agora... será que o que colocam nos filmes, até naqueles que são baseados em fatos reais, como aquele do Lorenzo, é realmente verdadeiro? E no filme “Tropa de Elite”? Tá certo que não tem nada a ver com ciência, mas será que o BOPE era tão bonzinho do jeito que tentaram passar pra gente? Ou será que o que passa nos filmes é só o que interessa pro governo e por isso tem muita coisa manipulada? Tem muita coisa que passa na TV, principalmente no jornal que, sinceramente, eu questiono, porque tem o lance da imprensa marrom e também dos interesses dos donos das emissoras que interferem no que é transmitido pra gente, né? Isso sem falar no “Correio Braziliense”. Eita jornalzinho vendido!

Ester: Então vocês acham que mudou alguma coisa da imagem das ciências da natureza, do cientista e do seu trabalho que foi mostrada no primeiro filme e a que é mostrada no segundo filme?

Carlisle: Com certeza, professora. No primeiro filme é como a gente falou. O Morgan era um homem solitário, mas muito ligado à família. Parece que a única coisa que mantinha ele vivo era o amor que ele sentia pela mulher dele e pela filha que morreram com a peste, e a culpa porque não conseguiu salvar as duas. Mas ele era meio esquisito.

Ester: Esquisito como?

Carlisle: Quando ele tava pensando e criando hipóteses pra teoria dele sobre o germe que causava a peste e como desenvolver uma cura pra isso, ele seguia uma série de passos, né?

Ester: Passos?

Carlisle: É. Cada passo era uma coisa... um procedimento que ele fazia. Mas apesar de toda esquisitice ele era um cara do bem e humano, né? Ele não doou o sangue dele pra tentar salvar a Ruth?

Victoria: Doou sim e você lembra que bizarro? Ele fez isso sem nem testar o sangue pra saber se era compatível com o dela. E se não fosse... ia coagular tudo, né? Carlisle: É. E tipo... nesse filme de hoje eu nem gostei muito porque perdeu todo aquele clima de mistério que tinha no primeiro e os zumbis tavam muito organizadinhos, meio racionais, que é difícil prum morto-vivo, né? Nele o Neville era um cara meio sarcástico, né? Nem parecia um cientista de verdade. Ele não ficava teorizando e seguindo um monte de procedimento que nem o Morgan. Parece que pra ele era tudo muito mais fácil e mais rápido.

Alice: É... mas tem outra coisa que eu percebi que mudou de um filme pro outro. No primeiro o Morgan trabalhava totalmente sozinho. Já nesse que a gente assistiu hoje eu acho que ele não trabalha sozinho porque tem uma parte que mostra ele trocando ideia com aquele carinha amigo da Lisa, o Dutch, naquela parte que ele tava tentando tratar do Richie, o irmão da Lisa, né?

Rosalie: É mesmo, Alice. E ele também não trabalhava só no laboratório... tinha muita coisa que ele fazia em casa. Ia pro laboratório só quando precisava de equipamento que ele num tinha em casa.

Durante a roda de conversa, com a problematização de aspectos retratados pelo filme, notei que alguns educandos, como Carlisle – "[...] Quando ele tava pensando e criando

hipóteses pra teroria dele [...] seguia uma série de passos [...]. Nesse filme de hoje [...] não ficava teorizando e seguindo um monte de procedimento [...]" –, Alice – “[...] No primeiro o Morgan trabalhava totalmente sozinho. Já nesse [...] eu acho que ele não trabalha sozinho porque tem uma parte que mostra ele trocando ideia com [...] o Dutch” – e Rosalie –

“[Neville] não trabalhava só no laboratório [...]” – trouxeram à tona o entendimento da

mudança do trabalho do cientista retratada pelos filmes assistidos.

Quando comparamos essa obra com a anterior, percebemos que, em consonância com o que apontou Alice – “[...] tem uma parte que mostra ele trocando ideia com aquele carinha

amigo da Lisa [...]” –, The Omega Man, de maneira sutil, mostra o trabalho em equipe dos

cientistas, em que estes, representados por Neville e Dutch (estudante de medicina) se ajudam, trocam informações e saem dos laboratórios, o que permite demonstrar que o fazer científico não é um trabalho realizado solitariamente, reservado aos “sábios” detentores do conhecimento, o que vai de encontro à visão empírico-indutivista, individualista e elitista das ciências (GIL-PÉREZ et al, 2001) apresentada pelo primeiro filme e trazida à tona por questionamentos dos educandos, conforme abordado na seção anterior.

Ester: Vocês concordam com o que os colegas de vocês falaram? Tem mesmo diferença do cientista e de como as ciências são vistas no primeiro e no segundo filme?

Jessica: Eu acho que tem diferença sim, professora. E também concordo com Carlisle. Também gostei mais do primeiro filme. O Dr. Morgan era mais interessante. O Dr. Neville era meio ... ah, ele se achava, né? Nem parecia que tava passando perrengue por ser o último sobrevivente no mundo.

Angela: Tipo, nesse filme, o Matthias, mesmo já sendo um zumbi, permaneceu lúcido e sempre tinha um discurso totalmente contrário à ciência e ao trabalho do Neville, que representava o cientista. Ele que era o líder da Família via a ciência como uma verdadeira praga.

Esme: Eu tive a impressão de que o Matthias era o líder que controlava as atividades da Família e que todos os outros zumbis obedeciam ele como se tivessem hipnotizados. Engraçado... agora que fui me dá conta disso, mas parece que o Matthias não era tão zumbi assim não. Ele era super inteligente, igual ele eu acho que num tinha nenhum outro. Ele só parecia com os outros porque também era meio albino. Nisso os mortos-vivos do primeiro filme eram totalmente diferentes dos de hoje.

Leah: Pra mim o pessoal da Família, mas principalmente o Matthias, culpava o conhecimento através da ciência, da cultura, das artes, dos livros, por toda aquela praga. Mas ao mesmo tempo... eles agradeciam porque alcançaram a graça da salvação. Eles destruíam tudo através do fogo e de armas toscas. Odiavam tudo que era conhecimento. O Matthias falava que todo mundo devia ser purificado pela destruição ou pela queima através do fogo.

Emmet: Tá... eu até acho tudo isso também, mas pra mim o Neville continua sendo visto como um heroi, principalmente na cena em que ele tá quase morrendo, mas antes de morrer, quase que num último suspiro, entrega o antídoto da peste pro Dutch e morre de braços abertos, que nem Jesus na cruz, como que querendo mostrar que o cientista foi o salvador da pátria.

Noto, por trechos das falas de Esme – “[...] o Matthias, mesmo já sendo um zumbi,

permaneceu lúcido e sempre tinha um discurso totalmente contrário à ciência e ao trabalho do Neville, que representava o cientista [...].” – e Leah – “Pra mim o pessoal da Família, mas principalmente o Matthias, culpava o conhecimento através da ciência [...] por toda aquela praga [...].”, acima transcritos, que outros pontos importantes levantados pelos

educandos foram a questão do embate entre as ciências da natureza, representadas por Robert Neville, e a religião, representada pela “Família”, grupo liderado por Jonathan Matthias, e o reconhecimento de que o filme apresenta as ciências de uma forma pessimista, como sendo motivo de desgraças para a humanidade, o que já havia sido apontado em trabalhos anteriores, como os de Jörg (2003) e Reis; Rodrigues; Santos (2006).

Ester: Hum... pelo visto, com exceção do Emmet, vocês acham mesmo que a visão mudou de um filme pro outro, né? Mas por que será que mudou? Será que tem relação com o que tava acontecendo no mundo, principalmente nos EUA, naquela época? Aliás, o que tava acontecendo?

Rosalie: Eu acho que mesmo que o contexto histórico do mundo fosse diferente naquela época, não vi mudar muita coisa em relação ao primeiro filme não. Pra mim a única coisa que mudou foi que agora tinha o lance das armas biológicas, mas ainda acho que tá muito ligado à guerra fria entre os EUA e a União Soviética. Carlisle: Eu também acho, Rosalie. E pra mim as falas do Matthias deixam isso muito claro. Porque naquela época esses dois países disputavam na ciência e na tecnologia a criação de novas armas, bombas nucleares e pragas biológicas, pra ver quem conseguia mais poder. E não tavam nem aí pro povo. Tudo o que interessava era só o poder político e econômico.

Jasper: Pra mim, naquele tempo, as pessoas ainda viviam com medo do mundo acabar por causa de alguma bomba nuclear, que nem aconteceu com a bomba de Hiroshima.

Diante do exposto, percebo nas falas de Rosalie, Carlisle e Jasper que a visão das ciências da natureza como um corpo de conhecimento socialmente neutro, centrada no bem- estar da humanidade e na imagem dos cientistas como verdadeiros gênios, começou a ser questionada pelos educandos, problematizando a imagem sobre a natureza das ciências, o estereótipo dos cientistas e o fazer científico presente no seu imaginário.

Ester: Ok, meninos! Vocês já me falaram que teve uma mudança dos mortos-vivos do primeiro filme para os mortos-vivos do segundo filme. O que mudou?

Leah: É que nesse filme eles são mutantes e no outro eles não eram mutantes... eles pareciam mais uma coisa lendária mesmo... eu acho que zumbi igual desse filme pode existir, mas zumbi-vampiro que nem o do primeiro não. É forçar muito a barra.

Ester: Mas Leah, você acha que o fato dos mortos-vivos do filme que a gente assistiu hoje serem mutantes tem alguma relação com os conhecimentos científicos da época da produção do filme?

Leah: Eita! Não... Sim... Não sei! Ester: Alguém?

Ester: Vamos lá, pessoal! Deixa eu fazer a pergunta então de um jeito diferente pra ver se fica mais fácil.

Ester: Vocês acham que os conhecimentos científicos da época do primeiro filme são os mesmos da época do segundo filme?

Carlisle: Ah, isso não! Dá pra vê que nesse filme de hoje a ciência já tinha evoluído muito. Não vê que até a explicação pro surgimento dos zumbis é uma coisa mais aceitáve!? É como a Leah falou, eles são mutantes, são o resultado da mutação de um microorganismo que foi usado como uma arma biológica e se espalhou muito rapidamente pela Terra.

Ester: Então pra você, Carlisle, os conhecimentos das ciências na época do segundo filme estavam mais evoluídos que na época do primeiro. É isso?

Carlisle: É isso sim, professora. Se um microorganismo foi usado como arma biológica, então eu acho que ele foi criado no laboratório, né? Aí eu acho que ele já deve ter sido criado pra matar os inimigos de guerra, mas só que quando ele entrou em contato com o organismo humano, sofreu uma mutação e algumas pessoas não morriam, mas se adaptavam à bactéria. A única coisa é que tinham umas alterações no corpo, como a sensibilidade exagerada à luz e o embranquecimento da pele. Ester: Mas em 1964 não era possível criar armas biológicas em laboratório? Carlisle: Sei não... eu acho que até podia, mas a genética não era tão desenvolvida assim, né não?

Ester: Mas pra chegar a esses conhecimentos, os cientistas desprezaram o que já se sabia sobre o assunto “mutação” em 1964?

Carlisle: Eu acho que não. Acho que eles pegaram aquilo como base e só melhoraram o que já se sabia.

Durante a roda de conversa e as problematizações propiciadas pela leitura crítica que os educandos fizeram do filme, percebi que, apesar de a grande maioria deles possuir uma visão empírico-indutivista das ciências, da imagem do cientista e do fazer científico, parte deles reconhece que o conhecimento científico não permanece igual ao longo dos anos, sendo, portanto, passível de alterações de acordo com a época sócio-histórico-cultural em que está vigente.

O que é considerado hoje como satisfatório para explicar determinados fatos ou fenômenos, pode não o ser mais daqui a alguns anos. Essa noção de evolução ficou bastante evidente no discurso de Carlisle que, a despeito de reconhecer o caráter provisório do conhecimento científico, compartilha de uma visão acumulativa de crescimento linear dos conhecimentos científicos (GIL-PÉREZ et al, 2001).