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Procedimentos de configuração da encenação narrativa

3 O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DA

3.1 O contrato de comunicação estabelecido pelo livro ilustrado de Literatura Infantil

3.2.3 O modo narrativo no conto ilustrado

3.2.3.4 Procedimentos de configuração da encenação narrativa

Os procedimentos de configuração da encenação narrativa estão relacionados à identidade, ao estatuto e aos pontos de vista do narrador na situação de comunicação.

Em relação à identidade, pode-se afirmar, conforme Charaudeau (2008), que, em uma narrativa, só é possível perceber certos aspectos subjetivos do autor-indivíduo. O autor- indivíduo manifesta-se, explicitamente, como um narrador-personagem a partir de marcas discursivas que remetem ao seu contexto sócio-histórico ou às suas concepções ideológicas, atuando como um cronista, observador e testemunha de um fato característico de sua época ou agindo como um contador-testemunha de sua própria vida, expondo suas opiniões pessoais sobre o tema. Esses recursos tendem a produzir um efeito de verismo dos fatos apresentados ou de apelo ao leitor, quando se espera o compartilhamento de ideias.

Segundo Nikolajeva e Scott (2011, p. 157), somente na narrativa verbal é possível fazer interpelações diretas ao leitor ou comentar os eventos e os personagens. Na narrativa visual, a interferência do narrador é extremamente limitada; mas pode ocorrer, por exemplo, se a ilustração trouxer um personagem que olhe diretamente para o leitor ou se os personagens estiverem em um nível abaixo do olhar do leitor. Além disso, o ilustrador-indivíduo apenas pode explicitar ideologias de forma indireta, pois a ilustração é previamente categorizada pela palavra, e é a palavra que se inscreve em formações discursivas distintas, não a ilustração. O que o ilustrador pode fazer é representar um conceito por meio de gestos e de expressões faciais, por exemplo, mas isso não revela nem o foco interno do personagem, nem a subjetividade do ilustrador-indivíduo.

A identidade do autor-escritor, por sua vez, pode apresentar marcas discursivas no próprio corpo do texto que remetam ao fazer da escritura, produzindo relatos em primeira ou em terceira pessoa. Também é muito comum o escritor justificar o seu projeto de escritura em um prefácio. Esses procedimentos causam efeitos de verismo e de cumplicidade com o leitor.

Uma vez que se consegue perceber até a identidade do escritor na narrativa, constatar a presença e a intervenção do narrador é uma tarefa ainda mais exequível. No entanto, esse narrador pode se apresentar sob duas configurações, ora como narrador-historiador, ora como narrador-contador.

O narrador-historiador apresenta marcas discursivas que pretendem apagar a sua subjetividade para fazer o leitor crer que os fatos se impõem por sua credibilidade histórica.

Já o narrador-contador revela-se no modo como organiza a narrativa. Pode manifestar- se, explicitamente, na parcela verbal do texto pelo uso de pronomes pessoais em primeira pessoa e quando implica, diretamente, o leitor por meio de interpelações ou, discretamente, por intermédio de enunciados que possuam valor de reflexão comum.

Segundo Nikolajeva e Scott (2011, p. 156), as quatro maiores evidências do narrador na história são i. a descrição do cenário, ii. a descrição do personagem, iii. o resumo dos acontecimentos e iv. os comentários sobre os acontecimentos ou as ações dos personagens. No conto ilustrado, somente as duas primeiras características podem ser verbais ou visuais, as duas últimas só podem ser verbais.

Em relação ao estatuto do narrador, Charaudeau (2008, p. 194) esclarece que esse é um aspecto importante para a análise da narrativa porque a partir da relação que o narrador estabelece com a história contada é que se pode verificar o ponto de vista por ele adotado. A determinação do estatuto do narrador responde à questão “quem conta a história de quem?” Nessa perspectiva, Charaudeau (2008) descreve três categorias para essa instância, a saber: o narrador que conta a história de outrem, o narrador que conta a sua própria história e a existência de muitos narradores.

O narrador que conta a história de outrem é externo à história, assumindo um comportamento delocutivo. Vale destacar que sua identidade, nesse caso, é a de autor-escritor. Charaudeau (2008, p. 194) destaca que, nessa categoria, o narrador pode apresentar dois estatutos: ou o narrador é totalmente exterior, já que conta uma história da qual é totalmente ausente enquanto personagem; ou o narrador, não sendo o herói da narrativa, apresenta-se como observador ou testemunha dos acontecimentos contados. Em livros ilustrados, de acordo com Nikolajeva e Scott (2011, p.158), em geral, tanto o narrador verbal quanto o visual não participam da história e são oniscientes. Isso conduz à hipótese de um narrador adulto, o que causa certo distanciamento do leitor destinatário. No entanto, com o objetivo de diminuir essa assimetria, tem sido recorrente, nessas obras, o uso de um narrador-contador verbal criança, inserido na história como personagem, inclusive, que constrói uma narrativa em primeira pessoa, tornando-se um narrador que conta a sua própria história.

Esse narrador que conta a sua própria história, por sua vez, está no interior da narrativa, cujo personagem principal é ele mesmo. Ele assume, portanto, um comportamento elocutivo. De acordo com Charaudeau (2008, p. 195), nesse caso, é importante destacar que o narrador pode ser o porta-voz do autor-indivíduo-escritor, ou de outro indivíduo que coincide com ele

mesmo ou do narrador-personagem, que é ao mesmo tempo autor-indivíduo e um indivíduo fictício.

Quando existem muitos narradores, a narrativa é um jogo de encaixe de histórias, cada uma tendo o seu próprio narrador. Contudo, há sempre um narrador primário, que corresponde ao autor-escritor, e um ou mais narrador(es) secundário(s), cuja história integra-se à principal. Segundo Nikolajeva e Scott (2011, p. 155), “a narratologia faz uma distinção essencial entre voz narrativa (quem fala) e ponto de vista (quem vê)”. Isso quer dizer que a parcela verbal do texto pode apresentar perspectivas e pontos de vista fixos ou variáveis, como se pode ver nas categorias que descrevem o estatuto do narrador quanto à voz narrativa; mas a parcela visual só pode expressar uma perspectiva e um ponto de vista fixos, imposto pelo ilustrador. Por isso, as autoras afirmam que, em um livro ilustrado, as palavras transmitem primordialmente a voz narrativa, enquanto o ponto de vista é transmitido, primordialmente, pela imagem.

Os pontos de vista do narrador estão relacionados ao saber que ele possui sobre os personagens. Apesar de esse ser um aspecto já bastante estudado pela Teoria da Literatura, Charaudeau (2008) salienta que não é plausível categorizar as narrativas por meio de um ponto de vista único, já que é bastante difícil o narrador mantê-lo ao longo do texto. Por isso, com o objetivo de determinar os componentes que constituem a organização narrativa de um texto, Charaudeau (2008, p.199) aposta na distinção entre dois pontos de vista: externo e interno, que, se combinados com as outras categorias da narrativa, organizam esse modo de discurso.

O ponto de vista externo, objetivo, é aquele em que o narrador expõe a exterioridade do personagem, sua aparência física, seus fatos e gestos visíveis, tudo o que é possível de ser percebido pela visão ou verificado pelo saber. O ponto de vista externo pode ser verificado tanto na parcela verbal quanto na parte visual do livro ilustrado.

Já o ponto de vista interno, subjetivo, é aquele em que o narrador expressa os sentimentos, os pensamentos e os impulsos interiores do personagem, os quais podem não ser verificados por um outro sujeito diferente do narrador, se estivesse no lugar dele. O ponto de vista interno não pode ser tratado pela parte visual do conto ilustrado de forma direta; por isso, o uso de introspecção é limitado nessas obras.

É bastante comum que, em um conto ilustrado, o ponto de vista na parcela visual não coincida com a voz narrativa na parte verbal do texto. Fazer uso de um narrador criança, por exemplo, que narre sua própria história em primeira pessoa, só é possível na parcela verbal, pois na visual, ele jamais poderia ser visto pelo leitor. Só assim o ponto de vista do leitor seria o mesmo do narrador. Por isso, o que comumente ocorre, é que a parte visual do conto ilustrado

traz o ponto de vista sofisticado do narrador adulto. Essa discrepância pode acarretar certa dificuldade de identificação entre um leitor iniciante e esse “eu” da parcela visual.

A fim de paliar a discrepância entre o adulto e a criança, por exemplo, algumas obras de potencial destinação infantil apresentam estratégias discursivas de captação, como investir em autores infantis, por exemplo, simulando um contrato menos assimétrico, pois, se os interlocutores são crianças, partilham imaginários sociodiscursivos semelhantes e, por isso, estariam legitimados a falar um ao outro com propriedade.

No mercado editorial independente, essa é uma estratégia bastante recorrente, como se pode constatar em Ana e suas pérolas (2015), por exemplo, publicado em 2015, em formato digital16, escrito e ilustrado por uma menina, aos nove anos de idade. Outros exemplos da presença de crianças na instância de produção são as recentes autobiografias, escritas por atrizes adolescentes, nomeadamente, O Diário de Maisa (2016) e O Diário de Larissa Manoela (2016). Essa última recebeu o Prêmio Avena Publish News, na categoria Literatura infantojuvenil, devido ao recorde de vendas.

No entanto, a presença da criança na instância de produção não garante a autenticidade de um projeto de influência social proveniente do universo infantil, já que parece não ser possível impedir a interferência do adulto, ou seja, não é assegurada à criança liberdade para a criação de um mundo ficcional a partir de seu próprio ponto de vista, de suas necessidades, de seus questionamentos, ainda mais se for dissonante dos valores éticos e sociais vigentes.

Há bastante tempo que se percebe essa tentativa (frustrada) de encobrir a perspectiva do adulto na Literatura Infantil. É recorrente o uso de um personagem criança como narrador- contador e herói de sua própria história com a finalidade de promover a identificação do leitor jovem com a obra, caracterizando uma estratégia discursiva de captação. Dessa forma, aquela assimetria típica do contrato de Literatura Infantil parece ser atenuada, já que o enredo resulta, aparentemente, do ponto de vista de uma criança.

Em “Meus dois pais” (CARRASCO, 2010), por exemplo, se observa o aceite romantizado de uma criança ao relacionamento homoafetivo de seu pai. Após uma crise de rejeição ao namorado do pai, o menino ainda atribui a ele uma paternidade parcial.

Cortei a primeira fatia do bolo. Botei num pratinho. De repente, senti uma tremenda coragem. E um sentimento incrível explodiu dentro de mim. Estendi o braço e dei a primeira fatia do bolo para o Celso, dizendo em voz bem alta:

- Você também é meu pai! (CARRASCO, 2010, p.36)

Desse modo, percebe-se o que Noldeman e Remeir (2003, p.97) afirmam,

children’s literature, then, represents an effort by adults to colonize children: to make them believe that they ought to be the way adults would like them to be, and to make them feel guilty about or downplay the significance of all the aspects of their selves that inevitably don’t fit the adult model.17